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Kast, o Herdeiro de Trueba: A Batalha pela História do Chile

  • Writer: PET-RI PUC-SP
    PET-RI PUC-SP
  • 18 hours ago
  • 4 min read

Por Alice Cavalheiro Barbosa


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A memória da ditadura de Augusto Pinochet permanece um elemento central na arena política do Chile, que hoje vivencia um ressurgimento da polarização. Essa batalha histórica é personificada no líder da extrema-direita, José Antonio Kast, cuja projeção política está intrinsecamente ligada à forma como seu movimento ressignifica a memória do período pinochetista, integrando-a a uma narrativa de ordem e futuro.

Diante disso, é possível perceber como esse tema se relaciona à dialética entre o passado registrado e o passado construído. Essa análise, notadamente a dialética entre "documento" e "monumento" de Jacques Le Goff, serve como chave para contrastar a narrativa de Kast com a reflexão sobre o trauma e a superação presente no clássico A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende. 


A Estratégia do Monumento: A Narrativa de Kast e a Ressignificação do Passado

Para o historiador Jacques Le Goff, a História é a ciência crítica que se debruça sobre os documentos (vestígios e evidências do passado), enquanto a Memória é a faculdade social de recordar, frequentemente moldada pelo poder em monumentos. Estes são vestígios intencionalmente forjados para perpetuar uma visão específica, servindo a um projeto de poder.

A narrativa política de José Antonio Kast opera precisamente nessa transformação do documento em monumento. O período da ditadura de Pinochet, documentado por relatórios como Rettig e Valech, que detalham violações massivas de direitos humanos, tortura sistemática e desaparecimentos, é meticulosamente reescrito. 

Kast defende as reformas econômicas do regime e promove uma narrativa justificadora da violência, exaltando um "passado heroico" que retrata a ditadura como uma ação necessária de "salvação nacional" contra uma suposta ameaça comunista.Essa estratégia possui duas vertentes interligadas: o negacionismo e o conservadorismo moral. 

O negacionismo desqualifica a memória das vítimas e minimiza os crimes de Estado. O conservadorismo moral enxerta essa visão em uma plataforma de "ordem e família". A declaração de Kast de que "o que tinha que ser feito, foi feito" desresponsabiliza o regime e constrói uma História-Monumento alicerçada na premissa da autoridade inflexível.

Essa monumentalização do passado tenta implantar uma "democracia inercial", onde vestígios autoritários, como a Constituição de 1980 (que Kast defende), são mantidos para enfraquecer o consenso democrático pela verdade e justiça. A disputa eleitoral torna-se, assim, uma disputa pelo direito de contar a história e de legitimar o passado que deve alicerçar o presente.


A Casa dos Espíritos e a Memória como Reparação

Diante da visão rígida da história promovida pelo discurso de extrema-direita, a memória literária surge como um contraponto fundamental. A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende, ultrapassa o campo da ficção para se consolidar como uma das elaborações narrativas mais significativas sobre o trauma chileno. A saga da família Trueba, que atravessa o século XX e culmina no golpe militar, ilustra a dimensão humana e o ciclo de violência que percorre a história chilena.

A figura do patriarca Esteban Trueba é central para decifrar a sombra que a ditadura ainda projeta. Trueba, um homem de "ordem e progresso", é o arquétipo do defensor ferrenho da propriedade privada e da hierarquia social. Ele vê o caos com desprezo e, por isso, saúda o golpe militar como uma restauração necessária.

Nesse sentido, Kast é um herdeiro político do espírito de Esteban Trueba, ecoando sua ênfase na família tradicional e sua visão de um país onde uma concepção rígida de "ordem" se sobrepõe à complexidade social. A manipulação da memória operada por Kast reside em evocar esse "espírito" enquanto apaga suas consequências, as mesmas que são dolorosamente ilustradas no arrependimento amargo e na solidão de Trueba, destruído pela violência que ajudou a semear quando ela atinge sua própria família.

Contra essa tentativa de apagamento, ergue-se um dos temas mais poderosos do romance: a memória como herança e resistência. Clara, com seus cadernos de anotar a vida, e Alba, que os herda e os completa, são as guardiãs da verdade. Elas escrevem para que a história não seja apagada pelos vencedores. O papel da literatura, neste sentido, é o de uma "aventura do possível", nas palavras de Paul Ricoeur. Enquanto a visão defendida por Kast procura obliterar certas memórias, a literatura cumpre o papel de desvelar as experiências humanas que o regime tentou suprimir, assim como os registros de Clara resistiam ao esquecimento.

A resolução do romance se dá quando Alba, grávida e marcada pelo trauma da tortura, decide "amar sem rancor" e quebrar o eterno retorno da violência. Este gesto é o oposto moral e político da proposta de Kast: enquanto o líder da extrema-direita instrumentaliza a memória do passado autoritário para reabrir feridas e polarizar o presente, a narrativa de Allende aponta para a necessidade de processar o trauma com verdade e justiça como pilares da reconstrução democrática. O livro oferece a memória de baixo, a memória das vítimas, contra a memória de cima, a memória do poder que Kast tenta reinstalar.


Conclusão 

A disputa pela presidência no Chile, com a presença de José Antonio Kast, demonstra que a consolidação democrática não é um processo garantido. A sua capacidade de mobilizar eleitores por meio da nostalgia da ditadura e da manipulação da memória é um indicador de que os fantasmas de Allende e Pinochet continuam pairando sobre o país.

A retórica de Kast, ao transformar a ditadura em um monumento de glória e ordem e, simultaneamente, ao deslegitimar a experiência traumática das vítimas (o documento histórico), mina a verdade histórica e o consenso democrático. A reabilitação de Pinochet no espaço público é, em última análise, uma tentativa de deslegitimar a transição democrática e propor um novo projeto de bases autoritárias sob as vestes democráticas. A eleição é uma batalha decisiva pela interpretação do passado, definindo se o Chile avançará com base na memória como reparação ou na memória como ferramenta de autoritarismo.


REFERÊNCIAS

ALLENDE, Isabel. A casa dos espíritos. 67. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2025

KINZ, Marinês. A casa dos espíritos: memória e história. Revista Textura (Porto Alegre : Univ. Luterana do Brasil), n. 19-20, p. 113-130, 2009. Disponível em: http://www.periodicos.ulbra.br/index.php/txra/article/download/1005/781. Acesso em: 1 nov. 2025.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1990. Disponível em: https://pesquisahistoricaurca.wordpress.com/wp-content/uploads/2013/10/le_goff_historiaememoria.pdf. Acesso em: 3 nov. 2025.

SOARES, Giovana Mylena Silva; BARBIERI FARINHA, Maria Cllara. Narrativas autoritárias na nova extrema-direita latino-americana: Bolsonaro, Kast e Milei em perspectiva. Revista Eletrônica da ANPHLAC, v. 25, n. 39, p. 09-39, 2025. Disponível em: https://revista.anphlac.org/anphlac/article/view/4238. Acesso em: 1 nov. 2025.



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