Como a direita do Uruguai se posiciona sobre a eutanásia?
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Reflexões sobre a aprovação do projeto de lei da morte digna
Por Helena Winter

O Uruguai é conhecido por ser um dos países mais progressistas da América Latina no campo dos direitos civis e das políticas sociais, de acordo com a Agence France-Press (AFP): foi pioneiro na legalização do aborto (2012) , no reconhecimento do casamento gay (2013) e na regulação da maconha (2012) . No caso da pauta da eutanásia, não foi diferente. Dia 15 de outubro 2025, o país reafirmou essa tradição ao se tornar o primeiro da América Latina a aprovar uma lei que legaliza a eutanásia e o suicídio medicamente assistido.
No campo internacional, países como Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Canadá e Espanha legalizaram o procedimento sob condições específicas, enquanto outros, como Colômbia e Equador, o descriminalizaram por decisão mediante pedidos na justiça por pacientes com casos específicos. No contexto latino-americano, a decisão do Uruguai representa uma inovação, uma vez que a aprovação ocorreu por via legislativa e contou com amplo debate parlamentar e público. No eixo europeu, a Suíça já transformou em prática o que muitos países ainda viam como dilema moral, ou seja, direito de decidir o próprio fim. Foi lá que figuras como Antônio Cícero e Jean-Luc Godard encontraram uma forma consciente e planejada de encerramento da vida; onde reconheceram que, apesar de estarem com doenças debilitantes, mantinha, a lucidez necessária para compreender sua condição. Godard, um dos nomes centrais da Nouvelle Vague, reafirmou assim o princípio de que a liberdade e a lucidez também fazem parte do fim da vida.
A nova lei estabelece que apenas pessoas maiores de idade, mentalmente capazes e portadoras de doenças incuráveis ou degenerativas podem solicitar a eutanásia; o procedimento deve ser voluntário, documentado e supervisionado por equipe médica. A lei garante ainda o direito à objeção de consciência dos profissionais de saúde, mas obriga o Estado a assegurar o acesso ao procedimento. O reconhecimento da eutanásia como um direito é uma pauta tradicionalmente da esquerda, mas, no caso uruguaio, o projeto de lei inicial foi proposto por um deputado da direita moderada, Ope Paquet, do Partido Colorado, A posição dos partidos de direita sobre o tema, com votos conflitantes entre si, foi curiosa, exatamente por que o texto foi originalmente proposto pelo maior partido conservador do país: o Partido Colorado. O que esse debate revela sobre a relação entre religião, moralidade e política no país?
No debate ético-político sobre a eutanásia, como afirma o jurista Alexandre Reis, duas dimensões fundamentais precisam ser explicitadas. A primeira delas é que a eutanásia e o suicídio assistido não são questões exclusivamente médicas, mas antes questões políticas no sentido mais rigoroso. Isso significa que cabe ao Estado legislar, proteger, definir salvaguardas e criar processos deliberativos transparentes. A segunda dimensão é que legalizar adequadamente não reduz a importância dos cuidados paliativos; ao contrário, quando a legislação é clara, ela tende a estimular investimentos em cuidados paliativos, ampliando seu acesso e fortalecendo o compromisso público com seu desenvolvimento.
Reis insiste que o Uruguai se torna, hoje, um modelo relevante para países como o Brasil porque demonstra que não é preciso evitar o tema do sofrimento por meio da negação do debate público. O processo legislativo uruguaio mostra que um Estado laico pode, ao mesmo tempo, respeitar convicções religiosas, garantir a autonomia individual e assegurar aos profissionais de saúde o direito à objeção de consciência, desde que isso não inviabilize o acesso de quem deseja exercer esse direito.
O Partido Colorado, apesar de ser um partido de direita tradicional, possui uma matriz liberal e laica que historicamente defende a autonomia individual , explicando seu apoio majoritário à lei. Já o Partido Nacional apresentou uma divisão interna, com parte da bancada defendendo salvaguardas mais rígidas. O Cabildo Abierto, de orientação conservadora e nacionalista, foi integralmente contrário à proposta, mobilizando argumentos de proteção dos vulneráveis e críticas ao papel do Estado.
A lei foi originalmente proposta em 2020 por Ope Pasquet, do Partido Colorado, e aprovada em 2025 após intensas discussões legislativas, quando o projeto foi reapresentado por membros da coligação Frente Ampla, o partido à esquerda que hoje governa o Executivo. Na Câmara, obteve 57 votos a favor e 39 contra; no Senado, 20 votos favoráveis e 11 contrários. A aprovação se deu pelo apoio integral da Frente Ampla, apoio majoritário Partido Colorado e uma maior resistência dentro do Partido Nacional, além da desaprovação completa do partido da nova direita, o Cabildo Abierto.
Entre os partidos de direita, o Partido Colorado foi o que mais se alinhou à proposta. De tradição liberal e reformista, o partido apoiou a lei como uma expressão da liberdade individual e do humanismo que marca a cultura política uruguaia. O comitê executivo do partido assumiu uma posição a favor da aprovação da lei e incentivou que os membros da sigla seguissem na mesma linha: "é um projeto do Partido Colorado , que o partido apoia e que obteve consenso suficiente para ser aprovado no Parlamento ". O senador Ope Pasquet afirmou que a lei representava o espírito laico e racionalista do país, retratando uma direita moderada, que preserva valores de autonomia em sintonia com o Estado laico.
O Partido Nacional, de perfil liberal-conservador, apresentou resistências significativas e, por sua vez, adotou uma posição mais cautelosa e dividida. Embora parte de seus parlamentares tenha apoiado a lei, a maioria votou contra, sob o argumento de que o texto apresentava falhas jurídicas e médicas. O senador Martín Lema afirmou que o projeto não oferecia garantias suficientes e que a morte antecipada não poderia ser considerada uma solução humana. Apesar do tom conservador, os argumentos do Partido Nacional não recorreram explicitamente à justificativas religiosas, muito comuns quando a pauta em discussão é a morte digna.
Para ser aprovada, a lei precisava de maioria simples: 50 votos, entre 99, na Câmara, e 18 votos, entre 31, no Senado. O resultado final, de 57 a 39 na Câmara e 20 a 11 no Senado, demonstra que o apoio do Partido Colorado foi decisivo. Para muitos de seus integrantes, a lei reforça valores como autonomia individual, constitutivas de seu projeto político. Assim, apoiar a eutanásia não representou ruptura, mas uma continuidade com sua visão de Estado. Mesmo com resistências significativas do Partido Nacional e rejeição completa do Cabildo Abierto, a coalizão formada pela Frente Ampla (governo), Colorado e independentes ultrapassou com margem confortável o mínimo necessário.
O Cabildo Abierto, fundado em 2019 sob a liderança do general Guido Manini Ríos, assumiu a posição mais contrária à lei, com todos os parlamentares votando em oposição ao projeto. Para Manini Ríos, a aprovação da eutanásia deixava “os mais frágeis ainda mais indefesos” e, no lugar de criar um novo direito, criaria mais um tipo de condenação. Outros integrantes do partido, como os deputados Eduardo Lust e Silvana Pérez Bonavita, argumentaram que o projeto concedia ao Estado uma “licença para matar”, focando na ideia de aumentar acesso aos cuidados paliativos no lugar de aprovar esse novo projeto. Segundo a deputada Pérez Bonavita, sem acesso a tratamento digno, a escolha pela eutanásia não seria uma decisão livre, mas uma imposição social.
Algumas hipóteses ajudam a explicar por que setores da direita uruguaia apoiaram ou rejeitaram a proposta. No caso do Partido Colorado, pesou a tradição de laicidade e o compromisso histórico com reformas institucionais. Já o Partido Nacional, por ser mais heterogêneo, reflete tensões entre conservadorismo moral e liberalismo, o que produziu votos divididos. Por outro lado, o Cabildo Abierto representa uma nova direita com forte presença militar, mais sensível a discursos de ordem, proteção e moral tradicional, o que justificou sua oposição integral. Além das ideologias, também influenciaram o debate pressões de associações médicas, entidades de pacientes e grupos pró-direitos civis, que possuem uma influência maior no Uruguai do que instituições religiosas, dentro dos espaços de formulação política.
A igreja católica também se posicionou no debate, com uma oposição parcial à aprovação do projeto. A Arquidiocese de Montevidéu manifestou-se contrária à aprovação, afirmando que “a vida sempre vale, ainda que precise de outros para se sustentar”. O cardeal Daniel Sturla Berhouet e outros líderes católicos expressaram preocupação de que a legislação enviasse a mensagem de que algumas vidas teriam menor valor ou poderiam ser descartadas. No entanto, de acordo com reportagem do jornal Brasil de Fato, alguns padres aprovaram a ideia quando nada mais é possível fazer para que a pessoa tenha uma vida digna. O Conselho de Representatividade Evangélica do Uruguai (Creu) se posicionou como integralmente contrário à legalização da eutanásia; o pastor Louder Garabedian, presidente do Creu, se pronunciou dizendo queconsidera o projeto de lei “moralmente errado” e afirmou que a organização visitou o presidente do país para dizer “não à eutanásia”.
Apesar dessas manifestações, a capacidade de mobilização da Igreja no Uruguai mostra-se limitada. A cultura política uruguaia é marcada pela forte separação entre religião e Estado. Desde a criação da Constituição de 1917, onde o país consolidou juridicamente sua laicidade, o Uruguai eliminou símbolos e feriados religiosos das instituições públicas. Pesquisas recentes do Latinobarómetro mostram que cerca de 40% da população uruguaia se declara sem religião, o que faz do país o mais secularizado da América Latina. Essa característica é um fator que nos ajuda a entender como o debate sobre temas bioéticos como a eutanásia e o aborto não são tão moldado por argumentos teológicos, como geralmente ocorre em países com maioria religiosa, como o Brasil.
Quando pensamos na articulação da direita uruguaia na questão da eutanásia, entendemos uma maior maturidade institucional, que se dá muito pela tradição laica do país.
A situação brasileira
Enquanto o Uruguai e outros países avançam na regulamentação da morte assistida, o Brasil permanece preso a um modelo jurídico consolidado na década de 1940, que trata a vida como valor absoluto, mesmo diante de sofrimentos considerados insuportáveis pelos próprios pacientes. A medicina tem caminhado de uma forma que consegue, hoje, permitir a existência para além dos limites suportáveis da dignidade; proteger a vida também implica respeitar a vontade de quem a vive.
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