Final do Governo Boric e a promessa frustrada: duplo fracasso constitucional e a questão previdenciária
- PET-RI PUC-SP

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Por Luiza Eberlein, graduanda em Relações Internacioanis na PUC-SP e participante do PET -RI

O governo do chileno Gabriel Boric está se aproximando do fim, com eleições presidenciais previstas para o fim de 2025. O presidente foi eleito em 2021 como a expressão política do Estallido Social e procurou erguer seu governo a partir da esperança em enterrar o legado das políticas de Pinochet ainda enraizadas na sociedade chilena. Entretanto, o saldo deste mandato é revelador na medida em que expõe os limites desta busca pela refundação estrutural do Chile. O que outrora ergueu o espírito do início do governo de Boric, revelou um problema: o presidente, eleito para "enterrar" o legado da ditadura pinochetista, viu a estrutura de 1981 persistir, e o que foi de fato conquistado neste mandato, pode ser interpretado como resultado negociado e mitigado, como é o caso da Reforma da Previdência.
Primeiramente, é imprescindível compreender o duplo fracasso da constituinte neste governo como grande indicador desta limitação estrutural. A ascensão de Gabriel Boric à presidência foi impulsionada pela crise social que irrompeu no Chile em 2019, o Estallido Social, que representou a explosão da indignação da população chilena frente às condições de vida que o modelo de políticas públicas chilenas, profundamente neoliberalizante, oferece desde os tempos de ditadura. Diante deste cenário, o mais jovem presidente de esquerda do país, Gabriel Boric, é eleito e inicia seu mandato em 2022 com a principal promessa de refundação ampla e estrutural do Chile via nova Constituição, buscando substituir o texto elaborado em 1981 durante os anos Pinochet.
Todavia, o processo constituinte decorrido ao longo do governo foi marcado por duas fases, ambas derrotadas em plebiscito. Em setembro de 2022, 61,9 % rejeitaram o texto de cunho progressista elaborado pela Assembleia Constituinte com maioria de esquerda, que propunha profundas mudanças sociais. Já em dezembro de 2023, outro plebiscito foi realizado, em que 56% rejeitaram o texto agora elaborado pelo Conselho Constitucional, dominado pela direita, ultraconservadores e pelo partido de oposição a Gabriel Boric. Assim, este segundo fracasso reforçou o limite da transformação estrutural do país via Carta Magna, e principalmente, revelou que, com a falha em obter uma reforma abrangente do sistema, o governo foi forçado a mudar sua estratégia, direcionando seus esforços para as reformas específicas que poderiam ser institucionalmente negociadas.
Portanto, o fracasso impôs um teto às ambições reformistas de Boric, forçando-o a negociar mudanças dentro das regras do jogo. A partir disso é que a Reforma da Previdência ganha destaque no governo Boric. Em negociação deste 2022 e aprovada no início de 2025, é possível enquadrar o projeto como uma válvula de escape para a vazão deste anseio de transformação social que não conseguiu encontrar respaldo na sociedade chilena.
Com isso, é preciso enquadrar o Chile como o primeiro país a privatizar sua previdência, de forma que o sistema previdenciário chileno foi fundado no período ditatorial pinochetista também em 1981, e operava a partir da lógica neoliberal, como grande parte daquilo pensando para o país naquele contexto. Desse modo, era um sistema administrado pelas AFPs (Administradoras de Fundos de Pensão) e que deixava exclusivamente na mão dos trabalhadores a responsabilidade de financiar suas aposentadorias. Isto significa que neste modelo, cada trabalhador era obrigado a depositar uma porcentagem de seu salário em uma conta pessoal, gerida por uma AFP privada. O dinheiro era assim investido no mercado financeiro, e o valor da aposentadoria era determinado quase que exclusivamente pelo montante acumulado nessa conta individual e pelo rendimento dos investimentos. Desta forma, é visível que este modelo operava dentro da lógica do neoliberalismo no país, que retirava o Estado da sua função de garantidor, transferindo a responsabilidade e o risco da aposentadoria para o indivíduo.
Diante disso, o modelo previdenciário chileno focalizou grande parte das indignações vociferadas pelo Estallido Social, pois a promessa de pensões elevadas, baseada no desempenho do mercado, não se concretizou para a maioria da população. Os valores das aposentadorias vinham caindo progressivamente, dados do O Globo afirmam que metade dos aposentados do país recebem cerca de 350 dólares por mês, valor duas vezes menor que o salário mínimo do país de 500 dólares. Com isso, a proposta do governo de Boric em 2022 visava pôr fim ao sistema de capitalização individual e buscava criar um fundo misto, almejando principalmente acabar com as AFPs.
Entretanto, o resultado conquistado em 2025 foi diferente do almejado no início do mandato, que buscava desmantelar as AFPs como símbolo do pilar neoliberal. O governo sendo minoria parlamentar na Câmara dos Deputados e, principalmente no Senado, viu sua proposta ser neutralizada pelas bancadas de direita e centro-direita, que atuaram como veto players essenciais. Esta oposição forçou Boric a abandonar o objetivo de refundação do sistema, aceitando a manutenção das AFPs e focalizando a reforma na criação de um "mecanismo solidário", vinculado à contribuição patronal, e na regulação.
Além disso, os grupos empresariais por trás das AFPs são um dos principais atores de resistência contra a mudança almejada por Boric. O portal Fastcheck anunciou que em 2024, foram gastos mais de 11 mil milhões de pesos chilenos em campanhas de propagandas por parte das AFPs, de modo que enquadram na opinião pública percepções como o temor de uma crise econômica para deslegitimar a reforma mais profunda do sistema previdenciário. Assim instauraram o alerta de que a eliminação das AFPs desestabilizaria o mercado de capitais chileno, já que os fundos de pensão são os maiores investidores institucionais do país. Dessa maneira, o veículo chileno Ex-Ante enquadrou o resultado da reforma previdenciária como um fracasso, visto que o projeto original de Boric, que previa o fim do modelo das AFPs e a reorganização do mercado, na realidade deixou as Administradoras “absolutamente intocáveis”. O artigo assim conclui que, apesar dos avanços sociais, a reforma falhou em desmantelar a estrutura central neoliberal.
Diante disso, a aprovação conquistada em janeiro de 2025 estabeleceu um sistema misto que modifica o modelo de capitalização individual. Seus pontos centrais são a criação de um Pilar de Solidariedade com uma nova contribuição de 6% do salário paga pelos empregadores, destinada a um fundo comum. Além disso, a reforma introduz um novo ator público (Administrador Previdenciário Nacional) para gerir fundos e promover competição com as AFPs privadas, sem, contudo, eliminá-las. Desse modo, o governo estima que com o novo modelo, o valor das aposentadorias aumenta entre 14% e 35%.
Sendo assim, de certa forma, a aprovação da reforma previdenciária pode ser considerada uma vitória parcial. Isto é, existe uma vitória por ter conseguido modificar a previdência após 40 anos, mas o projeto de 2022 e o resultado de 2025 foram muito diferentes, principalmente no símbolo em que a manutenção das AFPs no sistema representa, mesmo que sob regulamentação mais rígida e com concorrência de entes públicos. A ambiguidade, dessa forma, recai justamente na representação do fim deste sonho de refundação, que foi prenunciado pelo Estallido e almejado por Boric.
Portanto, o governo do presidente que foi eleito sob o ímpeto de reformar as estruturas chilenas, na realidade desnudou os limites das estruturas enraizadas no país, tanto no mercado de capitais, como no caso das AFPs, quanto na política. Desse modo, o duplo rechaço dos novos textos constitucionais serviu como quadro geral limitador das amplas ambições reformistas do governo, que então foram direcionadas para projetos mais específicos, como foi o caso da Reforma da Previdência, que ainda sim manteve parcialmente o status quo do país.
REFERÊNCIAS:
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BORGES SANTOS, Paula. A rejeição da constituição refundacional chilena. Relações Internacionais, Lisboa, n. 78, p. 81-94, jun. 2023. Disponível em: https://ipri.unl.pt/images/publicacoes/revista_ri/pdf/RI78/RI_78_NET_Paula_Borges_Santos.pdf. Acesso em: 9 nov. 2025.
CARTA CAPITAL. A promessa não cumprida dos protestos de 2019 no Chile. 18 out. 2023. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/mundo/a-promessa-nao-cumprida-dos-protestos-de-2019-no-chile/. Acesso em: 9 nov. 2025.
CARTA CAPITAL. Boric descarta nova Constituinte no Chile. 18 dez. 2023. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/mundo/boric-descarta-nova-constituinte-no-chile/. Acesso em: 9 nov. 2025.
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O GLOBO. Sob pressão, Boric apresenta projeto de reforma da previdência do Chile. 3 nov. 2022. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2022/11/sob-pressao-boric-apresenta-projeto-de-reforma-da-previdencia-do-chile.ghtml. Acesso em: 9 nov. 2025.
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