Por Fernanda Samea e Beatriz Ferreira
PUC-SP 17/08/2017 às 18h
No dia 17 de agosto, como parte do Festival da Cultura da PUC-SP, realizou-se o evento intitulado “Cozinha, Identidade e Cultura”, contando com a participação de quatro mulheres cujas perspectivas sobre comida superam a normalidade cotidiana. Indo além dos aspectos físicos, sensoriais e técnicos da culinária, suas apresentações mostraram diferentes visões sobre esse assunto pouco estudado na área acadêmica e visto, geralmente, como algo banal do dia a dia. As abordagens realizadas pelas palestrantes giraram em torno da comida a partir de questões culturais, políticas e até mesmo econômicas.
As quatro palestrantes da esquerda para a direita: Eladia Martín, Ana Carolina Fiuza, Maria Conceição Oliveiras e Fabiana Sanches. Foto de Fernanda Dourado.
A primeira dessas palestrantes foi Maria Conceição Oliveira, que cursa pós graduação em gestão de alimentos, é bacharel em Gastronomia pela Faculdade Método de São Paulo (FAMESP), cozinheira, pesquisadora independente da cozinha negra e Afro Brasileira e membro do Conselho da Associação Slow Food Brasil. É interessante apontar que o termo “slow food” se refere a um movimento fundado na Itália nos anos 1980 que incentiva a comida local e modos mais tradicionais de se cozinhar, tendo ganhado espaço no Brasil na última década. Tendo como foco a oralidade de cozinheiras negras e seus cadernos de receitas, Oliveira expôs sua pesquisa sobre esse grupo de mulheres a partir do século XIX. Ela ainda mostrou como sua história pessoal dialoga de forma simbiótica com seu objeto de estudo ao revelar que as entrevistadas eram também pessoas próximas como sua avó e avós de amigas.
Na busca pelas informações desejadas, Oliveira descreveu como cadernos de receitas contam histórias e são fortes tradições familiares, podendo ser vistos como um resgate de memórias. Sua pesquisa também revelou a falta de informações e reconhecimento da comida do negro, que, segundo ela, é historicamente auto sustentável e autossuficiente.A palestrante, então, falou sobre o efeito que sua pesquisa ocasionou em sua vida e como isso a fez voltar a cozinhar e se dedicar a escrever um livro sobre o assunto. Escrever seu livro sobre a cozinha africana e a história de seu passado foi para ela uma “ressignificação enquanto mulher negra”, atingida por meio da memória e de uma antropologia da alimentação.
A segunda palestrante foi Ana Carolina Fiuza, cozinheira e mestranda do programa de pós-graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente, seu foco como pesquisadora gira em torno da comida e da bebida como símbolos que marcam a identidade e a resistência política do povo palestino, como demonstrado por seu trabalho no restaurante Al Janiah, na cidade de São Paulo. Sua pesquisa começou como crítica do que se aprende na academia gastronômica, a qual ensina que comida é apenas técnica e de origem europeia, tornando-se um negócio econômico. Para enfrentar tais pressupostos, Fiuza encara a comida como um discurso que carrega a identidade e a história de quem a faz. Por isso, para ela, a comida não se limita somente à receita, mas precisa ser vista como a marca de uma memória dinâmica, sempre em fluxo, e que rompe com as ordens identitárias e fronteiriças.
A comida também é fortemente influenciada por mudanças que acontecem no cotidiano daqueles que cozinham, tanto geográfica quanto pessoalmente, pelas diferentes experiências vividas a cada dia. Fiuza declara que a comida feita no restaurante Al Janiah é uma comida política que passa por um processo de apropriação cultural de ambas as partes: dos refugiados que cozinham o que é de sua terra e também dos brasileiros que a recebem e modificam. Por isso, a comida leva a história de quem a faz, um peso político que cruza fronteiras culturais. Assim, através da multiplicidade dos seres humanos, Fiuza mostra que a comida tem movimento e é uma produção para além do que ela realmente é, possibilitando buscar novas identidades a partir de um cruzamento entre fronteiras culturais e geográficas.
A terceira palestrante a apresentar seu trabalho foi Fabiana Sanches, formada pela Escola Wilma Kovesi de Gastronomia, líder do convívio Como Como do Slow Food, conselheira titular do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional da cidade de São Paulo (COMUSAN-SP), membro do Movimento Urbano de Agroecologia de SP (MUDA-SP) e membro da Rede Permacultura Social Brasileira (PSB). Sua fala girou em torno da Ecogastronomia, um movimento que objetiva colocar o homem em contato com a natureza através da comida, ou seja, revelar as fortes relações entre prato e planeta por meio de adaptações a práticas sustentáveis e integração do setor alimentar nos processos restaurativos de ecossistemas e da economia. Devido à finitude de recursos existentes no planeta e à infinitude das necessidades de consumo atuais, o movimento também busca implementar tais valores em agendas de políticas públicas e econômicas.
A aproximação do modo de vida humano com a natureza se dá também por meio da ação e prática do Slow Food, mostrando que comer é interior e exterior, material e imaterial ao mesmo tempo que valoriza e reconhece o território em que se cultiva e seus saberes, respeitando os ciclos naturais utilizando menos recursos, sem prejuízos e sem abrir mão dos prazeres da comida. Foi interessante ver na fala de Sanches que o movimento campesino brasileiro como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pequenos agricultores abraçam a causa da agroecologia, buscando lucratividade por meio de produções locais ecológicas preocupadas com a segurança alimentar.
Assim, como ativista da causa ecogastronômica, Sanches expõe que o objetivo de seu trabalho é mostrar que a Ecogastronomia é lucrativa e a ecoagricultura é viável. Ela pode ser realizada através de eventos organizados para a venda de pratos feitos apenas com o que é produzido pela população campesina parte do movimento e também pela venda de orgânicos a preços justos e acessíveis para que possa atingir todas as classes sociais brasileiras por meio da capacitação e empreendimento dentro da economia solidária.
A quarta e última convidada foi Eladia Martín, que é formada em História da Arte pela Universidade de Salamanca, na Espanha, e é também chefe de cozinha. Em sua fala, ela apresentou um projeto que já havia realizado anteriormente, intitulado “Vamos comer Almodóvar”. Nele, Martín mostrou a forte relação existente entre os filmes do diretor espanhol Pedro Almodóvar e a questão da comida. Por meio de trechos selecionados de alguns filmes de Almodóvar, como “La piel que habito”, ela argumentou que pratos estão presentes em toda a cinematografia do diretor, revelando a cozinha do dia a dia e como isso é significativo dentro da cultura espanhola.
As quatro palestrantes conseguiram demonstrar, por meio de perspectivas diferentes, como a questão da comida e da culinária está inserida em contextos culturais e identitários. As duas primeiras apresentação foram mais políticas em sua natureza em relação às duas últimas, abordando o pouco estudado tema dos cadernos de receita de mulheres negras brasileiras e as dinâmicas de um restaurante palestino em São Paulo. De qualquer forma, as falas das quatro convidadas serviram como um forte argumento para se estudar a comida de maneira mais aprofundada dentro do campo acadêmico.
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