Por Lorena Bulhões e Giovanna Barreto - Graduandas em Relações Internacionais pela PUC-SP e membros do PET-RI
Fonte: https://noticias.r7.com/brasil/stf-retoma-julgamento-do-marco-temporal-entenda-o-caso-01092021
O que é Marco Temporal?
Está em pauta atualmente o julgamento no Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário 1.017.365 com repercussão geral (RE-RG), no qual os ministros devem decidir se a tese do “marco temporal” para demarcação de Terras Indígenas deve ou não entrar em voga. Essa tese tem como base a ideia de que as terras só podem ser consideradas como terras indígenas se estivessem sob posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação na Constituição. No entanto, existem diversas problemáticas em torno desse marco temporal, que é em sua primazia defendido por setores ruralistas e combatido pelas populações indígenas e seus apoiadores.
A ideia do marco temporal surgiu inicialmente quando o STF decidiu em favor da criação de uma reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, afirmando que a criação da reserva era legítima pois os povos indígenas residiam ali desde a época da Constituição de 1988. No entanto, em 2017, a Advocacia Geral da União (AGU) afirmou que o caso abria uma jurisprudência e deveria valer para todas as reservas indígenas. Assim, adotando a tese do marco temporal, defende-se que os povos que não residiam nas terras indígenas durante a CF de 1988 ou não tem como comprovar a residência neste período, devem perder suas reservas. Já a jurisdição do STF reitera que a questão do Marco Temporal foi usada somente na situação específica do caso da Raposa Serra do Sol.
Atualmente, acontece a tramitação do Recurso Extraordinário no STF sobre um conflito de terras indígenas em Santa Catarina, no qual o TRF-4 de Curitiba encerrou a demarcação da reserva indígena feita pela Funai para o povo Xokleng. A área não era ocupada durante a CF de 1988 pelos indígenas, que foram expulsos da região em 1914 e realocados em outra localidade, de modo que a decisão do TRF-4 segue a tese do Marco Temporal. Em decisão do dia 11 de abril de 2019, o plenário do STF reconheceu por unanimidade a “repercussão geral” do julgamento do RE 1.017.365. Isso significa que o que for julgado nesse caso servirá para fixar uma tese de referência a todos os casos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do Judiciário, ou seja, definindo se a tese do Marco Temporal deve ter validade ou não.
Por que a possível aprovação do Marco Temporal é algo problemático?
A Constituição de 1988 estabelece que as terras indígenas são bens da União, que tem por obrigação promover a demarcação desses territórios em favor de seus habitantes tradicionais, sendo a primeira no Brasil a reconhecer que os indígenas são os primeiros e verdadeiros donos das terras ocupadas por eles antes da chegada dos não-indígenas. Assim, a Constituição garante o direito originário dos indígenas de exercer sobre essas terras a posse permanente e o usufruto do solo, dos rios e todos os recursos naturais essenciais à manutenção de seus modos de vida. A tese do Marco Temporal vai de encontro a essa garantia dos direitos indígenas e coloca em risco a demarcação das terras.
Além disso, existe a problemática de que ao se estabelecer um Marco Temporal, ignora-se todas as violências que aconteceram antes da data da Constituição, apagando uma história de luta dessas populações contra injustiças, violações e abusos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos reiterou sua preocupação com a tese jurídica do "marco temporal" e advertiu que esta poderia ter sérios efeitos sobre o direito de propriedade coletiva dos povos indígenas e tribais do Brasil. Ademais, a CIDH reafirma que a aplicação desta tese contradiz as normas internacionais e interamericanas de direitos humanos, em particular a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Em particular, porque não leva em consideração os inúmeros casos em que os povos indígenas foram deslocados à força de seus territórios, muitas vezes com extrema violência, razão pela qual não estavam ocupando seus territórios em 1988.
Evidencia-se também o risco de que não só as terras que ainda serão demarcadas mas também as que já foram demarcadas podem ficar inseguras. Há no Brasil 1298 terras indígenas, dessas, 63%, ainda apresentam alguma pendência para a finalização do processo demarcatório. Assim, além do grande número que ainda está na fase de finalização, as que já estão demarcadas podem ficar em estado de insegurança pois muitas delas ainda estão em disputa judicial. Aponta-se também que essas terras podem ficar mais suscetíveis a invasões por grileiros e garimpeiros que que veem nos territórios de indígenas uma fonte de lucro ainda inexplorada, engrossando a já crescente estatística de conflitos fundiários.
O relator especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, Francisco Cali Tzay, fez um apelo para que o STF garanta os direitos dos povos indígenas a suas terras e negue o Marco Temporal, afirmando que “a aceitação de uma doutrina de marco temporal resultaria em uma negação significativa de justiça para muitos povos indígenas que buscam o reconhecimento de seus direitos tradicionais à terra.” Além disso, apontou que “se o STF aceitar o chamado Marco Temporal em sua decisão sobre a demarcação de terras, no final deste mês, poderá legitimar a violência contra os povos indígenas e acirrar conflitos na floresta amazônica e em outras áreas".
Mobilização Indígena
No dia 25 de agosto, a maior mobilização de povos indígenas do Brasil desde a redemocratização marchou rumo à Brasília para protestar contra o marco temporal. Mais de 6.000 indígenas de 170 povos diferentes se juntaram em um acampamento organizado denominado “Luta pela Vida”, cuja data inicial era de 22 a 28 de agosto. Porém, devido ao adiamento da votação para o dia 9 de setembro, cerca de mil lideranças decidiram permanecer no acampamento até o dia 2 de setembro. O acampamento foi montado na Praça da Cidadania e um grande telão permitiu que os indígenas acompanhassem a votação do Supremo Tribunal Federal. Apesar do fim do acampamento, indígenas continuam se mobilizando e marcando presença em Brasília, como ocorreu no dia 15 de setembro, quando mais de 150 lideranças acompanharam o julgamento na Praça dos Três Poderes.
No dia 25, eles marcharam pela Esplanada dos Ministérios a caminho do STF levando cartazes, incluindo 1,3 mil faixas com os nomes de todas terras indígenas no Brasil. Os manifestantes também acenderam a mensagem “Brasil Terra Indígena” em um letreiro de led. A programação do acampamento contou com plenárias, manifestações culturais e agenda política. Segundo a Apib (Articulação dos povos indígenas brasileiros), todos os protocolos sanitários de prevenção contra a Covid-19 foram respeitados, e uma equipe de assistência médica estava presente no local.
Além das questões de demarcação de terras relativas ao Marco Temporal, os manifestantes também denunciavam a agenda anti-indígena do governo Bolsonaro, o desmatamento na Amazônia, as violências e ameaças vindas principalmente de garimpeiros, assim como exigiram a garantia de seus direitos previstos na Constituição.
Ainda durante a votação do Marco Temporal, 4.000 mulheres indígenas de 150 etnias se juntaram aos mais de 1.500 indígenas que ainda estavam acampados em Brasília para a realização da segunda edição da Marcha das Mulheres Indígenas. A marcha é organizada pela Apib e tem como tema “Mulheres originárias: reflorestando mentes para cura da Terra”. A mobilização deveria ter começado no dia 9 de setembro, mas devido à presença de grupos bolsonaristas que participaram das manifestações pró-governo durante o dia da independência, a organização adiou o início do evento para o dia 10, visando garantir a segurança das mulheres e crianças. Além da questão do marco temporal, essas mulheres denunciam a violência de gênero, através de diversos tipos de atividades pautadas na força ancestral das mulheres originárias.
Terras Indígenas e Agronegócio
A principal alegação dos defensores do projeto do Marco Temporal é que a demarcação de terras indígenas prejudica o agronegócio, atividade mais importante da economia brasileira. Segundo o Observatório Jurídico do Agro, ligado ao Instituto Pensar Agro, braço técnico da bancada ruralista no Congresso, uma decisão contrária ao marco temporal pode ocasionar a extinção de 1,5 milhão de empregos e prejudicar as exportações brasileiras, juntamente com aumento do preço dos alimentos. Vale ressaltar que o estudo que forneceu tais dados é confidencial, portanto, não pode ser averiguado. O presidente Jair Bolsonaro declarou que, caso haja revisão do marco temporal, o setor será prejudicado, principalmente no centro-oeste do país. “Vai simplesmente acabar com o agronegócio”, declarou.
Porém, segundo o diretor da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), a decisão contrária não afeta o agronegócio. Seu principal argumento é que o crescimento do setor não depende apenas do tamanho da área cultivada, mas também da produtividade. Além disso, há outras terras no país disponíveis para o crescimento agropecuário. O diretor ainda falou em outras maneiras de expandir a agropecuária, principalmente através da eficiência do uso da terra, ou seja, a partir da utilização de técnicas como a integração lavoura-pecuária. Marcello Britto, presidente da ABAG (Associação Brasileiro do Agronegócio) também discorda da afirmação do presidente. Para ele, “o agro não precisa invadir terra indígena para crescer”.
Outro discurso utilizado pelo setor para defender o marco temporal é a afirmação de que há “muita terra para pouco índio”. Porém, de acordo com o Instituto Socioambiental, os indígenas ocupam 13% do território brasileiro, enquanto o latifúndio ocupa 20%. Nesse sentido, evidencia-se a concentração latifundiária do país, quando apenas 1% das propriedades rurais ocupa 1/5 do território nacional. Além disso, 98% das terras indígenas estão localizadas na Amazônia Legal, sendo que essa área não tem aptidão para o desenvolvimento de pecuária extensiva. Dessa forma, a maior parte das terras demarcadas não se encontram nos estados que concentram as atividades do setor agropecuário. Os ruralistas também argumentam que o território indígena no Brasil, mesmo com o marco temporal, é muito maior do que em qualquer outro país do mundo. Entretanto, dados do Diário Oficial da União comprovam que hoje 13,8% do território é composto por terras indígenas, sendo que a média mundial é de 15%, de acordo com estudos da Nature Sustainability de 2018. Produtores rurais ainda afirmam que o marco temporal deve ser mantido para manter a segurança jurídica e estabilidade nas relações sociais do país. Porém, não cabe a essa jurisdição pacificar ou resolver conflitos. A decisão dos juízes deve seguir uma interpretação da Constituição coerente e de acordo com os Direitos Humanos.
A demarcação das terras indígenas é essencial para a preservação ambiental, já que impede o desmatamento e o avanço da agropecuária na fronteira com a floresta Amazônica. A preservação da floresta colabora para a regulação do clima e prevenção contra desastres climáticos. As reservas indígenas também contribuem para o regime de chuvas, que garante a irrigação das plantações em todo Brasil. Ademais, as terras indígenas mantêm um sistema de produção rural e economia, que é feita de maneira sustentável com a preservação do ecossistema. O líder indígena, ambientalista e escritor brasileiro Ailton Krenak afirma que “caso isso seja negado, nós vamos acrescentar mais uma crise social e ambiental — que envolve interesses não só das comunidades indígenas, mas do mundo inteiro.” Ele ainda acrescentou que se o marco for aprovado “vamos estar fazendo a maior privatização de terras no nosso país, que nunca aconteceu na história do Brasil”.
A questão do Marco Temporal está em processo de julgamento pelo STF. O juiz Edson Fachin foi o primeiro a votar, tendo se declarado contra a tese no dia 9 de setembro. No dia 15 de setembro, quando o julgamento foi retomado, o ministro Nunes Marques fez voto favorável ao marco temporal. Durante a sessão, o ministro Alexandre de Moraes pediu mais tempo para analisar o caso, por isso, o julgamento foi suspenso, sem data fixada para ser retomado.
Além do marco temporal, também está em tramitação o projeto de Lei 490, o qual prevê alterações na maneira de demarcação de terras indígenas e possui conteúdo semelhante ao marco temporal. O PL foi protocolado em 2007, porém foi engavetado três vezes. Neste ano, o projeto foi retomado e aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Ele será encaminhado para o plenário para votação na Câmara dos deputados. Segundo este PL, as demarcações devem ser feitas pela União através da abertura de um processo administrativo, com acompanhamento de uma equipe técnica. Assim como o marco temporal, o projeto presume que são consideradas terras indígenas aquelas ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição. Além da perda de terras, o PL abre brecha para que povos indígenas isolados na Amazônia possam ser contatados contra sua vontade por certas entidades, o que coloca em risco a sua sobrevivência. Outro problema é a provável presença de atividades de garimpo e de mineração ilegal em terras indígenas caso o projeto vire lei.
Portanto, a partir dos pontos apresentados, fica evidente a importância da demarcação das terras, entendendo o direito originário e refutando a tese dessa data limitante. A mobilização em relação ao tema vem acontecendo tanto nacional quanto internacionalmente, sendo que ela ganha mais relevância no atual momento do país, no qual os direitos dos povos indígenas estão sendo constantemente ameaçados enquanto o setor agropecuário é privilegiado. Logo, o marco temporal não só compromete a questão ambiental, mas principalmente a luta e resistência dos povos originários, que têm seus direitos sistematicamente violados há mais de 500 anos.
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