Por Hadassa Silva e Maria Eduarda Alonso - graduandas em Relações Internacionais pela PUC-SP e membras do Programa de Educação Tutorial (PET-RI)
O exército estadunidense ensaia sua retirada total do Afeganistão, removendo os 2500 soldados que permaneciam no território após vinte anos de invasão. Depois de duas décadas de guerra e esforços para a desarticulação dos grupos considerados terroristas, como o Talibã e Al-Qaeda, e presença militar ostensiva no país, observa-se um resultado incipiente frente aos objetivos norte-americanos e sua guerra ao terror. Por que os Estados Unidos invadiram o Afeganistão? Quais eram seus objetivos? Qual a razão para retirada das tropas?
Disponível em: www.sueddeutsche.de. Acesso em: 24 abr. 2021.
O Talibã continua no território afegão e não possui menos membros do que tinha antes do início da guerra. Em 2001 o grupo dominava 90% do território do Afeganistão, enquanto em 2018 estima-se que ainda ocupavam 70% do território. Os ataques de grupos terroristas não são menos numerosos do que eram antes do 11 de setembro e tampouco a produção e exportação de ópio diminuiu no país. Aliás, produção esta que sustenta uma elite econômica criminosa e intocável, criada pela guerra ao terror e da qual os Estados Unidos dependem para combater o Talibã. O presidente afegão Ashraf Ghani teme o fracasso das negociações com o Talibã e uma pressão ainda maior da organização com a retirada das tropas estadunidenses. E, apesar de manter relações pacíficas com a Al Qaeda, grupo terrorista responsável pelo ataque às Torres Gêmeas, o Talibã nunca promoveu ataques para além do Afeganistão. Diante de quais resultados os EUA anunciaram sua saída?
Motivações para a ocupação
A invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos foi motivada pelos ataques do 11 de setembro de 2001, realizados pela Al Qaeda. Apesar de nenhum dos envolvidos serem afegãos, a invasão foi justificada pois o Talibã não somente teria fornecido abrigo a organização responsável pelo ataque, como também teria se recusado a entregar Osama Bin Laden.
No entanto, não há razões claras para que a ocupação tenha se estendido por quase 20 anos. Ainda que nos anos iniciais as tropas estrangeiras conseguiram por fim na dominação do Talibã no país, a organização conseguiu se reestruturar com o passar dos anos. O terrorismo não foi dizimado e a opinião pública estadunidense há anos já não se mostrava favorável a permanência de tropas americanas em território afegão.
Negociações
As negociações se iniciaram durante o governo Trump, que afirmava já ter intenções de retirar as tropas desde o princípio de seu mandato, ainda anteriormente que tivesse optado por ações contrárias a seu discurso. O acordo com o Talibã herdado por Biden previa a retirada das tropas até 1 de maio de 2021, porém já era esperado que atrasos pudessem ocorrer.
Nota-se certa urgência quanto à evolução das condições para o fim da ocupação. Os primeiros acordos, realizados no início de 2020, determinavam o retorno rápido de apenas metade das tropas, enquanto o resto sairia aos poucos num período de 5 anos. Um cessar-fogo também era discutido com o Talibã. No entanto, a resolução final consta apenas com a retirada total das tropas estadunidenses e da OTAN até a nova data estipulada, sob a afirmação de Biden de que um retorno baseado em condições específicas é um dos grandes empecilhos para o término da guerra.
O governo afegão é deixado de lado no processo decisório, e o Talibã se mostra pouco disposto a diálogos internos com as autoridades afegãs, não participando da conferência na Turquia para a negociação de paz.
Guerra custosa e resultados parcos
A máquina de Guerra norte-americana gastou cerca de 975 bilhões de dólares no Afeganistão, e o contingente de soldados já atingiu a marca de 110 mil em 2011. Os Estados Unidos é o país da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) com maior número de baixas, sendo 909 mortos e 20.771 feridos. Já as baixas nas tropas do Afeganistão são ocultadas pelo governo e estima-se que o número de civis mortos esteja entre 32 mil a 60 mil.
Disponível em: www.bbc.com. Acesso em 24 abr. 2021.
Os custos da Guerra, são expressivamente altos, sobretudo se comparados ao número de baixas civis e a baixa efetividade em combater os talibãs e ter no governo afegão um simpatizante das forças ocidentais. Mais além, o Talibã não só permaneceu atuando no Afeganistão e tem mais membros do que antes da invasão, como também detém um poderio econômico superior ao que detinham no início do conflito graças ao comércio ilegal de ópio.
As forças da OTAN não só falharam em seus objetivos de combater os terroristas e trazer estabilidade política, mas também indiretamente alimentaram a organização terrorista. Quer dizer, em 2008 estima-se que o número de insurgentes estava em torno de 15 mil pessoas, e hoje é de que exceda 60 mil combatentes.
Ópio e tráfico internacional de drogas
Uma outra sequela da presença dos Estados Unidos no Afeganistão é a criação de uma elite política e econômica que se mantém através do narcotráfico internacional. Os mujahidin, grupo que durante a Guerra Fria combatia a presença soviética no país, utilizou recursos norte-americanos para o cultivo de papoula, processamento de drogas e tráfico internacional de ópio. Os campos de papoula foram brevemente dominados pelo Talibã, que também financiou suas atividades através do tráfico internacional do ópio, que nas mãos do grupo cresceu consideravelmente até o fim da década de 90.
Disponível em: outraspalavras.net. Acesso em: 24 abr. 2021.
Com a coalizão que em 2002 causou a debandada de talibãs dos campos de produção de papoula e com o vácuo deixado, um grupo que enriqueceu com a guerra e o financiamento da CIA toma conta da produção de ópio. A nova elite se insere em papéis de destaque no governo afegão e expande a produção de ópio em suas regiões de influência. Em 2004, o Afeganistão tornou- se responsável pela produção de 87% do ópio produzido mundialmente. A elite se fortalece e se blinda de ações de combate às drogas, à medida que faz frente ao Talibã. De modo que, os EUA criam e contribuem para a consolidação do poder econômico, político e influência de uma elite inatingível, sobretudo para o frágil governo central.
Admissão da Derrota?
Em seu discurso, Biden baseia a retirada das tropas na insustentabilidade de continuar a estender um conflito motivado por um ataque realizado a mais de 20 anos, não se deve mais esperar por condições ideais para que a retirada fosse planejada. Ele afirma acreditar que o propósito principal da ocupação, a garantia de que novos ataques vindos do Afeganistão não aconteçam, foi cumprido.
Porém, esse discurso é enganoso. Entre os 17 terroristas do grupo Al Qaeda envolvidos no 11 de setembro, não havia nenhum afegão, Similarmente, o Talibã não fazia parte de nenhum ataque direcionado aos Estados Unidos, suas ações se concentravam no território do Afeganistão e seus objetivos eram nacionalistas, e se restringiam ao que era necessário para atingir o objetivo de fundar um Estado muçulmano, livre da influência de potências ocidentais. De modo, que a justificativa invadir para defender-se de novos ataques afegãos é simplesmente incoerente.
Ademais, Biden ainda afirma que não vê sentido em concentrar tropas em um único país uma vez que a ameaça terrorista se espalhou para outros. O presidente americano garante que a ajuda diplomática e humanitária americana continuará.
Disponível em www.wsj.com. Acesso em: 24 abr. 2021.
O presidente assume riscos ao planejar também a retirada de redes de inteligência, sem deixar claro se haverá ferramentas substitutas para o monitoramento do país contra insurgências terroristas, o que causa insegurança em outros agentes do governo americano. A coleta de informações fica mais difícil, mas a CIA afirma ainda ser possível prever possíveis reestruturações de organizações terroristas, como a Al Qaeda, no país.
O cenário afegão após 20 anos de conflitos pintam um quadro de completo fracasso das ações militares dos Estados Unidos e da OTAN. O combate aos Talibãs e ao narcotráfico, a instabilidade gerada pela guerra civil e pela presença de grupos armados, bem como a fragilidade do governo central não só permanecem, como se intensificaram. E uma elite narcotraficante germina em decorrência das políticas norte-americanas. A narrativa utilizada para a invasão de que o Talibã, devido aos laços com o Al Qaeda, realizaria ataques no Ocidente, - o que há vinte anos já era fortemente questionável - hoje com o desenvolvimento do caráter nacionalista do grupo não se sustenta, sobretudo diante das perdas financeiras e humanas. Seria a debandada do Afeganistão sem acordos ou contrapartidas mais questionável que a invasão?
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