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Cooperação Repressiva EUA–El Salvador e a Produção de Vidas Descartáveis

  • Writer: PET-RI PUC-SP
    PET-RI PUC-SP
  • 13 minutes ago
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Por Layla Teixeira da Costa Capato



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Em 2025, Kilmar Abrega García, um jovem salvadorenho de 23 anos, foi deportado dos Estados Unidos para seu país de origem e encarcerado no Centro de Confinamento do Terrorismo (CECOT), a maior prisão da América Latina. Kilmar havia fugido da violência das gangues em San Miguel e vivia legalmente em Maryland, sob o status de “withholding of removal”, que o protegia da deportação devido a ameaças comprovadas. Ainda assim, foi removido ilegalmente por agentes da ICE (Immigration and Customs Enforcement) e entregue às autoridades salvadorenhas, desaparecendo em meio a milhares de presos. Seu caso, denunciado por organizações internacionais de direitos humanos (AMNESTY INTERNATIONAL, 2021), tornou-se símbolo de uma política de cooperação transnacional que mistura interesses econômicos, controle migratório e autoritarismo.


Embora apresentado inicialmente como um episódio isolado, o caso de Kilmar Abrego García revela uma dinâmica muito mais ampla: a consolidação de um mecanismo de cooperação entre EUA e El Salvador que opera à margem das garantias constitucionais e dos tratados internacionais de direitos humanos. A deportação de um indivíduo legalmente protegido, mesmo diante de uma ordem judicial explícita, é um sintoma de um sistema que privilegia interesses políticos e estratégias de segurança em detrimento do devido processo legal. Assim, o caso Kilmar funciona como uma porta de entrada para compreender como decisões executivas podem se sobrepor às instituições judiciais e como essa colaboração bilateral produz um espaço cinzento de legalidade, no qual migrantes são transformados em instrumentos de agendas autoritárias e de controle transnacional.


Importa destacar ainda que há três anos, o presidente Nayib Bukele declarou uma "guerra contra as gangues" em El Salvador, implementando um "estado de exceção" que suspendeu garantias constitucionais e concedeu poderes extraordinários às forças de segurança. Essa política tornou-se a pedra angular de seu governo, consolidando seu poder e garantindo-lhe altíssimos índices de popularidade interna, apesar das crescentes críticas de organizações internacionais. A narrativa oficial sustenta que a suspensão de liberdades civis é um preço aceitável a pagar pela desarticulação de grupos criminosos.


Os resultados do estado de exceção são, ao mesmo tempo, impressionantes e alarmantes, alterando fundamentalmente o tecido social e o sistema judicial de El Salvador. Cerca de 85.000 pessoas foram detidas desde o início do estado de exceção, o que representa aproximadamente 1,4% da população total do país. Este número elevou El Salvador à nação com a maior taxa de encarceramento per capita do mundo. O estado de exceção suspende proteções constitucionais fundamentais, como o devido processo legal. A legislação foi alterada para permitir julgamentos em massa de até 900 réus simultaneamente, e a idade de responsabilidade criminal por crimes relacionados a gangues foi reduzida para 12 anos. Organizações como Human Rights Watch, Cristosal e Amnesty International documentaram graves e generalizadas violações. Relatórios concluíram que a tortura se tornou uma "política de Estado" e que seu uso é "sistemático" nas prisões. Além disso, mais de 350 pessoas morreram sob custódia do Estado devido a traumas por força contundente, estrangulamento e negação de tratamento médico. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2024)


Sobretudo, o símbolo máximo dessa política é o Centro de Confinamento do Terrorismo (CECOT), a "mega-prisão" de Bukele, construída para abrigar 40.000 detentos. As condições dentro do CECOT são descritas como intencionalmente cruéis e desumanas. Celas superlotadas, projetadas para abrigar dezenas de presos, não possuem janelas, ventilação ou colchões e contam com apenas dois banheiros. Os detentos são confinados 24 horas por dia, com apenas 30 minutos de exercício em um corredor sem luz solar, e as visitas de familiares e advogados são proibidas. A decisão de deliberadamente abrigar membros de gangues rivais na mesma cela, uma quebra da política prisional das últimas duas décadas, é interpretada por analistas de direitos humanos não como uma decisão logística, mas como uma forma de aquiescência estatal à tortura e à violência, em violação direta das convenções internacionais das quais El Salvador é signatário.


Um pilar central da campanha e do governo de Donald Trump foi a promessa de uma repressão rigorosa à imigração. Essa postura se traduziu em uma série de políticas concretas que visavam limitar drasticamente o acesso ao asilo, acelerar as deportações e redefinir a abordagem dos EUA à crise migratória na fronteira sul. Essa política de imigração dos EUA sob a administração Trump reflete essa doutrina de "mão de ferro". Além disso, a administração encerrou as proteções do TPS para milhares de cidadãos de países como Afeganistão e Camarões, que anteriormente podiam permanecer nos EUA temporariamente devido a condições inseguras em suas nações de origem. Agentes de fronteira foram instruídos a recusar pedidos de asilo sem audiências, e uma nova regra tornou inelegíveis os migrantes que não solicitaram asilo em um país seguro pelo qual transitaram a caminho dos EUA.


Outrossim, a administração Trump justificou publicamente o endurecimento das regras com o argumento de que a maioria dos migrantes da América Central são "migrantes econômicos" e não refugiados genuínos que fogem de perseguição. Essa visão permitiu ao governo enquadrar a questão como um problema de segurança e exploração do sistema, em vez de uma crise humanitária, legitimando assim a adoção de políticas mais restritivas. Essa doutrina de imigração, focada na dissuasão e na deportação, levou a administração Trump a buscar ativamente parceiros internacionais dispostos a externalizar os custos legais e humanitários de sua agenda, encontrando no governo de Nayib Bukele um aliado ideológico e operacional ideal.


A convergência ideológica entre as abordagens de "mão de ferro" de Donald Trump e Nayib Bukele materializou-se em um acordo de deportação "sem precedentes". Este pacto formalizou a colaboração entre os dois governos, permitindo que os EUA enviassem deportados diretamente para as prisões de El Salvador, incluindo a notória mega-prisão CECOT. A aliança não foi apenas uma parceria diplomática, mas a fusão de duas estratégias autoritárias que se reforçam mutuamente, criando um sistema de controle transnacional.


Este acordo foi percebido como mutuamente benéfico, alinhando os interesses políticos e estratégicos de ambos os líderes. Ao delegar a custódia de deportados para El Salvador, a administração Trump não apenas projeta uma imagem de ação decisiva, mas cria um "buraco negro" legal e midiático. Esta estratégia transfere a responsabilidade por violações de direitos humanos para fora da jurisdição dos tribunais dos EUA e do escrutínio da imprensa americana, isolando efetivamente as autoridades americanas de repercussões legais e políticas diretas. Os ganhos para El Salvador são muitos, primeiramente, há um claro incentivo financeiro, com o governo salvadorenho recebendo US$ 20.000 por deportado por ano. Essa taxa totalizou aproximadamente US$ 6 milhões para um grupo recente de deportados, ilustrando a escala do incentivo. Em segundo lugar, a aliança confere a Bukele um valioso capital político em Washington, reduzindo a pressão internacional sobre as violações de direitos humanos em seu país. Por fim, o acordo oferece controle estratégico sobre membros de gangues deportados, que poderiam, em tribunais americanos, testemunhar sobre negociações secretas entre o governo Bukele e lideranças de gangues.


É neste contexto que o caso de Kilmar Abrego Garcia emerge, não como uma anomalia, mas como a consequência humana inevitável de um sistema projetado para operar fora do estado de direito, personificando as falhas legais e éticas desta aliança. O caso de Kilmar Abrego Garcia serve como um microcosmo da colisão devastadora entre a política de imigração da administração Trump e o sistema penal de El Salvador. Sua deportação, admitida pelo próprio governo dos EUA como um "erro administrativo", não é apenas uma falha burocrática, mas uma demonstração explícita do desprezo de ambos os executivos pelas instituições judiciais e pelo devido processo legal.


Em outubro de 2019, um juiz de imigração dos EUA concedeu a Garcia uma "suspensão de remoção" (withholding of removal), uma ordem judicial que proibia legalmente sua deportação para El Salvador, com base em um "medo bem fundamentado" de perseguição pela gangue rival Barrio-18. As alegações de que Garcia era membro da MS-13 basearam-se em evidências frágeis, como o uso de um boné do Chicago Bulls e tatuagens comuns. Especialistas e seus advogados contestaram essas alegações, destacando que ele não possuía condenações criminais nos EUA ou em El Salvador. Apesar da ordem judicial que o protegia, Garcia foi deportado em março de 2025 e enviado para a prisão CECOT. Mesmo após a Suprema Corte dos EUA decidir que o governo americano deveria "facilitar" seu retorno, as administrações Trump e Bukele recusaram-se a cooperar. Trump afirmou que Garcia "nunca mais viverá" nos EUA, enquanto Bukele declarou ser "absurdo" pedir que ele liberte um suposto "terrorista". O caso revela uma estratégia política em que o poder executivo dos Estados Unidos e de El Salvador se sobrepõe às instâncias judiciais de ambos os países. Ao classificar a deportação de Kilmar Abrego Garcia como um “erro administrativo” e recusar-se a corrigi-la, mesmo após decisão da Suprema Corte, o governo norte-americano expôs como o acordo bilateral cria um vácuo legal que enfraquece a soberania judicial e coloca a aliança política acima da lei.


O “Modelo Bukele”, criado em El Salvador, tornou-se símbolo de um autoritarismo disfarçado de eficiência. Apresentado como solução contra o crime, ele promove a erosão democrática e a violação sistemática dos direitos humanos (THE GUARDIAN, 2025a). Com o apoio dos Estados Unidos, esse modelo ganhou força internacional, servindo como exemplo para outros governos que buscam justificar práticas repressivas sob o pretexto da segurança pública (HUMAN RIGHTS WATCH, 2025).


Ao terceirizar a detenção de migrantes e financiar prisões superlotadas como o CECOT, o governo norte-americano legitima políticas que violam tratados internacionais e normaliza o uso da violência estatal (AMNESTY INTERNATIONAL, 2024). Em troca, El Salvador obtém prestígio e recursos, aprofundando um sistema de controle baseado no medo e na repressão (BBC NEWS, 2025). Assim, o “Modelo Bukele” representa um precedente perigoso para a América Latina, ao reforçar a ideia de que segurança pode justificar a perda de liberdades fundamentais. Essa parceria entre Bukele e os EUA ameaça consolidar um padrão de governança autoritário, enfraquecendo as instituições democráticas e exportando um manual de repressão para toda a região (THE GUARDIAN, 2025b).



REFÊRENCIAS

AMNESTY INTERNATIONAL. El Salvador: Mil días del régimen de excepción, un modelo de seguridad a costa de derechos humanos. [S.l.], dec. 2024. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/latest/news/2024/12/el-salvador-mil-dias-regimen-excepcion-modelo-seguridad-a-costa-derechos-humanos/. Acesso em: 10 nov. 2025.

AMERICAN CIVIL LIBERTIES UNION (ACLU). Immigration Detention and Abuse Reports. Nova York: ACLU, 2023. Disponível em: https://www.aclu.org. Acesso em: 03 nov. 2025.BBC NEWS. EUA assinam acordo de asilo com El Salvador. Londres: BBC, 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-latin-america-48991301. Acesso em: 10 nov. 2025.BBC. Artigo em português sobre El Salvador (czj3wdr92gzo). [S.l.], [2025?]. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/czj3wdr92gzo. Acesso em: 10 nov. 2025.BBC NEWS (Live). Cobertura ao vivo: El Salvador. [S.l.], [2025?]. Disponível em: https://www.bbc.com/news/live/cwy03j9vddlt. Acesso em: 10 nov. 2025.HUMAN RIGHTS WATCH. Declaration on prison conditions in El Salvador – JGG v. Trump case. Nova York: HRW, 20 mar. 2025. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2025/03/20/human-rights-watch-declaration-prison-conditions-el-salvador-jgg-v-trump-case. Acesso em: 10 nov. 2025.HUMAN RIGHTS WATCH. El Salvador: Leaked database points to large-scale abuses. Nova York: HRW, 27 jan. 2023. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2023/01/27/el-salvador-leaked-database-points-large-scale-abuses. Acesso em: 10 nov. 2025.THE GUARDIAN. El Salvador: Donald Trump, modelo Bukele. Londres: The Guardian, 19 abr. 2025. Disponível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2025/apr/19/el-salvador-donald-trump-model-nayib-bukele. Acesso em: 10 nov. 2025.THE GUARDIAN. El Salvador: Nayib Bukele, modelo Trump. Londres: The Guardian, 6 maio 2025. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2025/may/06/el-salvador-nayib-bukele-model-trump. Acesso em: 10 nov. 2025.THE GUARDIAN. El Salvador: CECOT mega-prison Trump. Londres: The Guardian, 30 abr. 2025. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2025/apr/30/el-salvador-cecot-mega-prison-trump. Acesso em: 10 nov. 2025.UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES (UNHCR). Central America Refugee Situation Report. Genebra: UNHCR, 2022. Disponível em: https://www.unhcr.org. Acesso em: 03 nov. 2025.


 
 
 

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