Por Lana Moreira, graduanda em Relações Internacionais pela PUC-SP e bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET-RI)
No contexto contemporâneo, o termo capitalismo verde está muito presente em diversos âmbitos da economia. O capitalismo verde é uma abordagem que tem como objetivo a redução das emissões de carbono, e ao mesmo tempo, o aumento da eficiência no uso de recursos. Assim, os serviços do capitalismo verde se tornam lucrativos ao transformar a natureza em uma commodity (AQUINO; CENCI, 2019).
Este termo, cunhado para caracterizar uma abordagem que se coloca como diferente do capitalismo tradicional, surge a partir de uma necessidade de mudança nas atividades econômicas para evitar o colapso climático e o desequilíbrio ecológico extremo. Tendo em vista o contexto emergencial do meio ambiente, o capitalismo verde, em teoria, visa atender às demandas dos consumidores (MALAR, 2023) e do ativismo socioambiental, ou seja, procura contemplar as reivindicações tanto do âmbito socioeconômico quanto do âmbito político. Dessa forma, a principal demanda desses setores é calcada na ideia de sustentabilidade ambiental que se configura como a “utilização dos bens naturais de forma que não agrida o meio ambiente natural e possibilite a utilização do mesmo nas gerações futuras” (AQUINO; CENCI, 2019, p.5). Nessa lógica, o capital financeiro é organizado ao redor de bens naturais que não expressavam valor econômico anteriormente. Sendo assim, como coloca Packer, advogada da Terra de Direitos-Organização de Direitos Humanos:
“a problemática ambiental torna-se central para o setor corporativo industrial e agrícola, o que pode ser claramente observado com a massiva presença das corporações transnacionais, não apenas em espaços de costumeira presença do setor, como a World Trade Organisation (WTO), mas também nas Convenções ambientais” (PACKER, 2012, p. 12).
A emergência do capitalismo verde escancara a contradição entre os objetivos de cunho ambiental e a ambição do crescimento econômico. Assim, os objetivos econômicos se mantêm pautados essencialmente pela lógica capitalista, que por fundamento se configura como predatória e exploratória do meio ambiente (CARDOSO, 2021). O principal objetivo de cunho ambiental é a sustentabilidade no sistema econômico para preservar os recursos naturais e o meio ambiente, mas isso ocasiona em uma diminuição dos lucros nas atividades econômicas, sendo portanto o maior impasse para a economia (AQUINO; CENCI, 2019).
Entretanto, o capitalismo verde, que surge como essa abordagem que converge com as demandas dos movimentos ambientais, não se confere na prática. Nesse raciocínio:
“O pressuposto de que a valoração econômica da biodiversidade e a regulamentação dos direitos de propriedade sobre bens comuns são as únicas saídas para o uso sustentável e a conservação da natureza se mostra inviável não apenas pela própria natureza destes bens comuns, que não expressam valor monetário como mercadoria, como pela comprovada derrota histórica da aplicação destas correntes economicistas à problemática ambiental e do desenvolvimento humano. Ao contrário, são exatamente estas opções as causas estruturais das crises pelas quais passa a humanidade.” (AQUINO; CENCI, 2019, p. 4).
Um exemplo explícito do abismo entre teoria e prática são as brechas existentes no sistema econômico que permitem a não realização prática da abordagem propagada pelo capitalismo verde. Essa questão pode ser ilustrada pelo caso da utilização do sebo bovino como matéria prima para a produção de biodiesel, que teoricamente é menos danoso ao meio ambiente do que os combustíveis fósseis. O sebo bovino é classificado como um resíduo do abate proveniente da pecuária, e, assim, essa artimanha retórica induz à falsa ideia de que o biodiesel utiliza uma matéria prima que seria destinada a lixões ou aterros sanitários, ou seja seria apenas descartada. No entanto, a trajetória que produz o sebo bovino contém diversos problemas socioambientais. Dessa forma, para obter esse “resíduo” é necessário a atividade pecuária, que tem papel fundamental nas emissões de carbono e no aumento do desmatamento. Portanto, a cadeia produtiva como um todo não é contabilizada, e assim através de brechas, como a classificação do sebo bovino, surge uma nova cadeia de produção prejudicial ao meio ambiente, mas que é apresentada como ecológica (HARARI; HOFMEISTER, 2022). Nesse raciocínio, ao observar o regulamento acerca dos biocombustíveis e matérias primas da União Europeia, fica clara a brecha explicitada acima, marcada pela não rastreabilidade da cadeia produtiva como um todo:
“A política de biocombustíveis da União Europeia possui um mecanismo preventivo para evitar que a produção de biocombustíveis tome lugar da vegetação nativa. Esse mecanismo é chamado Diretiva para Energias Renováveis da União Europeia. [...] Segundo os critérios adotados pela Diretiva, o sebo de boi é considerado um resíduo
e não uma matéria-prima primária.” (HARARI; HOFMEISTER, 2022, pg 11).
Ademais, a impossibilidade desse tipo de capitalismo, de acordo com os moldes propostos pelos movimentos ambientais, é intencional. Existe a tentativa de conciliar o crescimento econômico com o desenvolvimento sustentável, porém sem o estabelecimento de limites que contribuam com a mitigação da crise ecológica de fato. Dessa forma, os lucros não são limitados, mas ao contrário, se expandem. Nesse sentido, os interesses dos Estados capitalistas e das grandes corporações seguem a lógica capitalista expansiva e baseada na acumulação através da exploração (CARDOSO, 2021), mesmo que essa exploração se mostre predatória a ponto de tornar o planeta inabitável. Assim, esse Estado capitalista, ou de mercado, se preocupa com os processos e desencadeamento da competição econômica, priorizando a eficiência e negligenciando questões tidas como secundárias, como as questões ambientais (DURAND apud JOHNSON, 2021).
O modo de produção capitalista é guiado por uma dinâmica expansiva e segue os objetivos de acumulação, assim a necessidade de obter riqueza através das atividades produtivas na forma de capital é um elemento constitutivo do sistema capitalista (CARDOSO, 2021). Na contemporaneidade, a classe capitalista transnacional exerce papel fundamental na formulação de um discurso e de uma prática de desenvolvimento sustentável, que na realidade resulta na despolitização do conceito de sustentabilidade e conduz os focos dos problemas ambientais para soluções baseadas no mercado (SKLAIR, 2019). Assim, é de interesse dos detentores de poder e das corporações que o capitalismo verde não seja possível na prática, mas esta “fachada” é necessária, justamente, devido às demandas mundiais dos próprios consumidores e dos ativistas ambientais.
Dessa maneira, o capitalismo verde continua seguindo as lógicas que definem a essência do capitalismo e mantendo as mesmas bases no que se refere ao modo de produção, exploração e consumo que geram escassez de recursos e resíduos (OLIVEIRA; OLIVEIRA apud PACKER, 2020). Assim, esta abordagem é “mais uma das etapas da acumulação capitalista, que se baseia na aplicação da propriedade privada, apropriação privada, circulação e financeirização de bens comuns” (PACKER, 2020). Portanto, o capitalismo verde pode ser considerado, ao mesmo tempo, uma abordagem teórica e uma estratégia de marketing. Nesse raciocínio, o capitalismo verde é capturado pelas elites capitalistas ao redor do mundo em ambos os âmbitos.
Nessa lógica, através de uma perspectiva teórica crítica acerca do capitalismo é possível observar como o próprio conceito do capitalismo verde é em si uma falácia. Sendo assim, uma postura crítica e ambientalmente responsável implicaria em uma reorganização das cadeias produtivas globais e de seus processos constitutivos, ações que demandam investimento e tempo (MALAR, 2023), e que não se traduzem na abordagem do capitalismo verde, que é colocado como ambientalmente responsável. Nesse capitalismo ocorre a mercantilização dos bens naturais, que acaba se confundindo com o desenvolvimento sustentável, pois nessa situação existe uma regulamentação dos Estados e das organizações internacionais, por exemplo, para o uso teoricamente sustentável dos recursos naturais (AQUINO; CENCI, 2019). Assim, os impactos das atividades econômicas não são contabilizados na economia e o livre mercado desenfreado, relacionado diretamente com o modo como as atividades econômicas são realizadas, é uma afronta à justiça socioambiental e à democracia (RINALDI, 2022).
Em síntese, uma economia "sustentável" que mantém o padrão atual de crescimento econômico insustentável, baseado nas cadeias globais produtivas e calcadas no modo de produção capitalista, além da existência de abordagens como o capitalismo verde, tornam inviável a conservação e a preservação ambiental plena, e concomitantemente agravam a crise ecológica.
Referências bibliográficas:
AQUINO, A. L. A.; CENCI, D. R. “CAPITALISMO VERDE”; E A SUSTENTABILIDADE. Salão do Conhecimento, [S. l.], v. 5, n. 5, 2019. Disponível em: https://www.publicacoeseventos.unijui.edu.br/index.php/salaoconhecimento/article/view/12167. Acesso em: 30 out. 2023.
BUDINI, Terra. Espacialidade e territorialidade nas RI: Aula 8 - O local e o global: seguindo as trilhas da globalização. 2023. Slides. Disponível em: https://docs.google.com/presentation/d/141HPfH-45OJJNVPy76_Sd2iaOIDqL4CB/edit#slide=id.p1. Acesso em: 30 out. 2023.
BUDINI, Terra. Espacialidade e territorialidade nas RI: Aula 10 - Terra, resistência e meio ambiente no capitalismo contemporâneo. 2023. Slides. Disponível em: https://docs.google.com/presentation/d/1VPD5z2ZILjeBi8rSUm-jNvRe5kAKB2UD/edit#slide=id.p1. Acesso em: 30 out. 2023.
DURAND, Cédric. O capitalismo “verde” atado em seu nó ambiental: Mesmo muito tímidas, ações para descarbonizar economias já provocam inflação e escassez. Lógica dos mercados é caótica, avessa ao planejamento e incapaz de arbitrar transições rápidas. Volta a despontar opção de um socialismo democrático. OUTRASPALAVRAS, [s. l.], 3 dez. 2021. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/capitalismo-verde-atado-em-seu-no-ambiental/. Acesso em: 30 out. 2023.
MALAR, João Pedro. Greenwashing: o que é e como identificar a prática da falsa sustentabilidade: O greenwashing é uma ameaça para o mundo por diversos aspectos. Entenda o conceito, os danos e impactos causados no meio ambiente e exemplos praticados. CNN Brasil, [s. l.], 14 abr. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/greenwashing-o-que-e-e-como-identificar-a-pratica-da-falsa-sustentabilidade/. Acesso em: 30 out. 2023.
HARARI, Isabel; HOFMEISTER, Naira. O COMBUSTÍVEL “VERDE” QUE DESMATA: Como a produção de biodiesel com gordura bovina, apesar de premiada por programas de combate às mudanças climáticas, utiliza matérias-primas que contribuem para o problema. Monitor #14 - Repórter Brasil, [s. l.], p. 1 - 37, out. 2022. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2023/01/Monitor_SeboBovino_POR.pdf. Acesso em: 31 out. 2023.
PACKER, LARISSA. Economia verde é "falácia miraculosa" para tempos de destruição, diz Larissa Packer: Para advogada socioambiental Larissa Packer, economia verde traz soluções errôneas que intensificam crise ambiental. Entrevista concedida a OLIVEIRA, Caroline; OLIVEIRA, Sheila. Brasil de Fato. [s. l.], 21 set. 2020. Disponível em:https://www.brasildefato.com.br/2020/09/21/economia-verde-e-falacia-miraculosa-para-tempos-de-destruicao-diz-larissa-packer. Acesso em: 30 out. 2023.
PACKER, Larissa Ambrosano. COMO FUNCIONA O CAPITALISMO “VERDE”: MECANISMOS JURÍDICOS E FINANCEIROS PREPARAM O BRASIL PARA UM NOVO MODELO DE ACUMULAÇÃO. Terra de Direitos, [S. l.], p. 1 -20. 2012. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/wp-content/uploads/2012/07/regula%C3%A7%C3%A3o-nacional-para-nova-fase-de-acumula%C3%A7%C3%A3o-papel-do-estado-1.pdf. Acesso em: 30 out. 2023.
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RINALDI, Augusto. Diálogos Críticos em Relações Internacionais: Aula 5 - Globalização e seus descontentes. 2022. Slides. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1jpOxGyFgjbnPSHsMQog_wyg5OL8ohde-. Acesso em: 30 out. 2023.
SKLAIR, L. The corporate capture of sustainable development and its transformation into a ‘good Anthropocene’ historical bloc. Civitas: revista de Ciências Sociais, [S. l.], v. 19, n. 2, p. 296–314, 2019. DOI: 10.15448/1984-7289.2019.2.31970. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/31970. Acesso em: 30 out. 2023.
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