Governo Lugo: eleição, mandato e impeachment
O processo de impeachment do então presidente paraguaio, Fernando Lugo, promovido dentro de pouco mais de 30 horas, demanda posicionamentos e reações imediatas dos governos da região, dos partidos do país, da população paraguaia e da comunidade internacional como um todo. Certamente, a manifestação de tais atores trará repercussões para a configuração e a estabilidade das relações, tanto internacionais, quanto domésticas, a serem desenvolvidas pelo novo governo.
Em 2008, Fernando Lugo foi eleito a partir de uma aliança com os liberais, sucedendo o Partido do Colorado, que permaneceu no poder por 60 anos. Ainda que não se saiba afirmar, definitivamente, o marco do início da crise política no Paraguai, é possível dizer que o estopim da crise foi constituído pelo distanciamento do ex-presidente em relação ao PLRA (Partido Liberal Radical Autêntico) ao longo de seu mandato, somado ao conflito agrário ocorrido em 15 de junho deste ano e à consequente substituição do ex-ministro do Interior do país (do LRA) por um novo ministro, membro do Partido do Colorado e que todos esses fatos representaram a perda do respaldo de uma força política componente da história do país e enraizada, pelo menos em alguma medida, na sociedade paraguaia (a do partido liberal).
Nesse contexto, as acusações feitas a Lugo foram objeto de concordância entre os parlamentares e os senadores. Na quinta-feira, 21 de junho, 76 de 80 parlamentares aprovaram a abertura do processo de impeachment (apenas 1 ficou do lado de Lugo) e no sábado, 23 de junho, 39 dos 45 senadores validaram as acusações. As denúncias que justificaram o processo de impeachment incluem, principalmente, a responsabilidade pela violência no país e o conflito entre policiais e sem-terra.
Considerados evidências de mau desempenho das funções da presidência, tais fatores legitimaram o impeachment, pelo menos, aos olhos da constituição paraguaia, visto que, para muitas figuras da comunidade internacional, o processo desenvolvido no Paraguai pode ser considerado um golpe de Estado. Alí Rodríguez, secretário-geral da Unasul, caracterizou o ocorrido nos últimos dias como “uma nova modalidade de golpe de Estado, supostamente constitucional”; o Itamaraty o considerou como uma “ruptura da ordem democrática”; o secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, referiu-se ao impeachment como um “atropelo do Estado de Direito”, “altamente questionável”.
Ainda que Canadá, Espanha, Alemanha e Vaticano tenham reconhecido o novo governo paraguaio, sob o argumento de que Lugo aceitou a decisão do Congresso de retirá-lo do poder, em geral, percebe-se que a maioria dos governos da América Latina concorda que, apesar de a constituição ter sido seguida e respeitada, não houve respeito ao direito de defesa de Lugo. Tais países latino-americanos, liderados pelo Brasil, posicionaram-se a favor da permanência de Lugo, fazendo declarações oficiais que condenam o novo governo paraguaio, promovendo ameaças de sanções e retirando seus embaixadores do país. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, não apenas, ordenou a retirada de seu embaixador em Assunção, mas também suspendeu o envio de petróleo ao Paraguai em resposta à deposição do ex-presidente. Outras reações negativas marcaram os últimos dias: a possibilidade de afastamento do Paraguai das instituições e fóruns multilaterais, da Unasul e do Mercosul começou a concretizar-se. O bloco comercial Mercosul suspendeu, no domingo, a participação do Paraguai na próxima cúpula regional que o grupo realizará nesta semana (de 25 a 29 de junho).
Resposta brasileira
O Brasil é um dos países que protestou contra o processo de impeachment, interessado em manter relações amigáveis com o país com quem mantém a maior usina geradora de energia do mundo, a hidrelétrica binacional de Itaipu. No entanto, cabe ao Brasil respeitar a soberania paraguaia, o que complica, ainda mais, a situação. Justamente por isso, ela é o primeiro grande teste de atuação da presidente Dilma internacionalmente. A falta de capacidade dos diplomatas brasileiros de detectarem a possibilidade de golpe e a expectativa a respeito da capacidade de Dilma de fazer pressão ao Paraguai de forma multilateral marcam esse desafio.
Além disso, a presidente deverá se preocupar com os brasiguaios que vivem no Paraguai. A exemplificar a necessidade de tal preocupação está o comentário do pecuarista paranaense Rui Rosa, que vive no Paraguai desde 1982: “Antes de falar bobagem, ela deveria pensar em quantos brasileiros moram aqui”, a fim de que não seja ainda mais reforçada, entre os paraguaios, a visão de que o Brasil age de forma imperialista com o vizinho: “quando cheguei aqui, os brasileiros eram bem vistos. Hoje, o paraguaio gosta mais dos argentinos do que de nós”.
Opinião pública, direitos individuais e o valor da democracia
Tais comentários representam apenas uma pequena amostra da grande dimensão que as repercussões das decisões políticas podem tomar no cotidiano da população, no caso, paraguaia. Logo, é imprescindível a reflexão a cerca dos discursos que, em nome da democracia, defendem a necessidade da aplicação de sanções contra um país e sua população.
De quinta-feira, quando as primeiras acusações formais foram levantadas pela câmara, a sábado, quando ocorreu o impeachment, houve tempo suficiente para serem avaliadas as possíveis consequências à população paraguaia de se aplicar sanções ao país? Houve tempo suficiente para estimar os efeitos da exclusão ou saída do Paraguai do Mercosul ou da Unasul na taxa de empregados e desempregados e na qualidade de vida dos cidadãos paraguaios ou brasiguaios?
Tais questionamentos devem, necessariamente, ser indagados e seriamente considerados se o objetivo é tomar uma posição política; afinal, a represália promovida pelos países integrantes do Mercosul contra o Paraguai pode representar somente um primeiro indício das sanções que estão por vir e que podem refletir negativamente na garantia dos direitos individuais, portanto valores democráticos, de muitos cidadãos, sejam paraguaios ou brasiguaios. Ainda assim, a maioria das notícias publicadas, nos últimos dias, contenta-se em abordar somente as decisões de líderes políticos, de maneira a negligenciar a opinião pública e as possíveis repercussões negativas das grandes decisões e suas implicações na vida das pessoas.
No entanto, analisar a veracidade das acusações feitas a Lugo é, também, de extrema importância, ainda mais quando se percebe que algumas delas carecem de coerência. O Paraguai enfrenta o mesmo problema que a maioria dos países da América Latina, a desigualdade social: 1% dos proprietários rurais detém 77% das terras, e 350 mil famílias vivem em barracas, enquanto 351 proprietários são donos de 9,7 milhões de hectares. A ocorrência de um conflito agrário não pode ser total nem automaticamente atribuída a uma pessoa, e caso essa acusação fosse reafirmada, deveria, pelo menos, ser acompanhada de evidências empíricas suficientemente confiáveis e convincentes.
Talvez, Fernando Lugo possa ser justamente acusado de não ter cumprido o prometido (reforma agrária) e de não ter tentado evitar o conflito citado acima, mas uma denúncia de tamanha pertinência, como a feita na semana passada, requer, no mínimo, mais tempo para ser devidamente desenvolvida, mais conscientização da população e participação da sociedade civil no debate e mais rigor na avaliação das consequências perversas que um impeachment pode trazer à realidade dos paraguaios.
Um olhar menos politizado, uma perspectiva de quem compõe a sociedade civil e uma opinião de quem sente as decisões que são tomadas no alto da estrutura da sociedade paraguaia, mas que têm efeitos na sua base, deveriam ser as ferramentas mais importantes a influenciar as escolhas feitas nos últimos dias e as que deverão ser realizadas no futuro próximo. Em prol da democracia, a viabilidade e o grau da representatividade deveriam ser os primeiros critérios a legitimarem a ambição do novo governo.
Não tendo certeza a respeito dos valores e da ética que vai, realmente, pautar os momentos de decisão política a partir de hoje, a única garantia é de que os nove meses a seguir, até que seja realizada a próxima eleição no Paraguai, constituirão um período de turbulência, principalmente nas relações internacionais.
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