Por Victoria Ennser - graduanda em Relações Internacionais pela PUC-SP e integrante do PET-RI
Fonte: Reuters
Apesar da confirmação de diversas suspeitas por parte de observadores do mundo todo - sustentadas na postura intervencionista já conhecida da política externa dos EUA - a admissão de que o país agiu na Venezuela para fins políticos causou surpresa ao ser admitida por parte da própria administração pública em uma auditoria interna sobre a intervenção da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) no país latino-americano. O documento, publicado na quinta-feira (29) de abril, revela falhas graves de alinhamento com os valores humanitários durante a operação levada a cabo em 2019.
A ajuda dos EUA à crise humanitária na Venezuela foi enviada poucas semanas após o governo de Donald Trump reconhecer Juan Guaidó como presidente interino do país, em oposição ao regime de Nicolás Maduro; e já produzia desconfiança junto às partes críticas à autoproclamação de Guaidó em 23 de janeiro de 2019. Dado o apoio dos EUA ao governo provisório, a intervenção decorrida semanas depois, não pretendia apoiar Maduro, senão enfraquecê-lo; tomando medidas, através da operação, para sustentar Guaidó no poder.
A auditoria de 34 páginas, desenvolvida pelo Escritório de Inspeção Geral (OIG, na sigla em inglês) da própria USAID e que tem o propósito de avaliar e recomendar alterações aos processos internos da agência, baseou-se na operação realizada na Venezuela para delinear a necessidade de aprimoramentos de diretrizes para operações futuras da USAID.
Apesar de não ter a função direta de condenar ou aclamar os processos da agência, o documento afirma inúmeras falhas de adesão aos princípios humanitários (humanidade, imparcialidade, neutralidade, independência e alocação de recursos proporcionalmente à necessidade) delimitados pelo Manual de Relações Exteriores (FAM, na sigla em inglês) do Departamento de Estado, ao qual a USAID é subordinada.
O que diz a auditoria?
Em primeiro lugar, constatou-se que, mesmo subordinada às orientações do Departamento de Estado e do Conselho de Segurança Nacional, a USAID carecia de diretrizes documentadas para fundamentar suas ações, tendo as comunicações sido realizadas de forma verbal durante reuniões. Após um pedido da FFP e da OFDA (Office of Food for Peace e Office of U.S. Foreign Disaster Assistance, respectivamente) - as duas frentes oficiais de assistência humanitária da operação - a administração da USAID disponibilizou uma carta, em caráter ad hoc, enfatizando o apoio ao Governo Interino como prioridade máxima para o Governo dos EUA e orientando a disposição de mercadorias humanitárias fora da Venezuela.
Na mesma lógica, foi averiguado que das 368 toneladas de bens humanitários destinados à operação, apenas 8 toneladas foram entregues na Venezuela; as outras foram destinadas à Somália e regiões não fronteiriças da Colômbia, além de não considerarem critérios de necessidade reais para a alocação de determinados produtos.
Em contrapartida, a USAID assinou um acordo de doação em espécie diretamente com Guaidó em fevereiro de 2019, com a finalidade de fornecer $334.000 em mercadorias humanitárias para transporte de Cúcuta, na Colômbia, para a Venezuela. Dias depois, inclusive, os caminhões que transportavam essas mercadorias foram barrados e incendiados na fronteira pelas forças de segurança venezuelanas controladas por Maduro, o que resultou em ferimentos a civis e na destruição de aproximadamente $34.000 em mercadorias da USAID. Em resposta à tentativa de entrega de bens humanitários da USAID na Venezuela, Maduro fechou a fronteira da Venezuela com a Colômbia em fevereiro de 2019, o que reiterou a manifestação de Maduro em contrariedade à ajuda externa, já rejeitada anteriormente.
Fonte: AFP/Raul ARBOLEDA
Fora isso, comprovou-se que o uso de aeronaves militares não era justificado pelas necessidades operacionais, visto que havia disponibilidade de transporte comercial e a custos mais baixos. Por fim, a administração da USAID orientou o OFDA e o FFP a alinharem suas decisões de concessão para que “reforçassem a credibilidade do Governo Interino''. Ambas minimizaram o financiamento às agências da ONU, ignorando suas infraestruturas de distribuição já existentes dos bens humanitários na Venezuela. A escora na ONU, assim sendo, representava uma preocupação aos apoiadores de Guaidó, pois a organização manteve-se ao lado de Maduro, não reconhecendo a autoproclamação do opositor.
Motivações políticas vs. humanitárias
Não é a primeira vez que os EUA empregam esforços contra o governo bolivariano na Venezuela e o contexto de crise humanitária é visto como a justificativa perfeita para a intervenção estadunidense nas questões políticas do país latino-americano; oportunidade que representa a concretização de objetivos da política externa dos EUA, historicamente opositor ao regime chavista e com fortes interesses econômicos nas reservas de petróleo venezuelano.
Fonte: Sputnik News
De acordo com a mesma auditoria, já em janeiro de 2019 o governo dos EUA havia identificado a assistência humanitária da USAID para os venezuelanos, também como uma ferramenta chave para elevar o apoio ao governo provisório da Venezuela e aumentar a pressão sobre o regime Maduro, orientando ações que contrariam os princípios humanitários.
O reconhecimento de Guaidó como presidente interino pelo Parlamento, nesse contexto, correspondeu aos interesses estadunidenses, cujos representantes acionaram o Conselho de Segurança da ONU poucos dias depois para exigir que a Venezuela autorizasse o acesso à ajuda humanitária. Outros episódios como o congelamento de ativos venezuelanos em território americano, no mesmo ano, denunciam que apesar das necessidades humanitárias enfrentadas pela população venezuelana e das outras operações simultâneas da USAID ao redor do globo, os EUA sustentam um discurso contrário sólido em relação ao regime de Maduro, dando enfoque indispensável a questões político-estratégicas na operação na Venezuela.
Fonte: The New York Times
Ajuda pouco eficaz, e agora?
Do ponto de vista humanitário é preciso reconhecer que Maduro impediu inúmeras tentativas de ajuda externa - o que afetou diretamente os venezuelanos necessitados - e que a intervenção da USAID corroborou ainda mais com a instabilidade política no país, além de não entregar o que havia prometido.
O interesse político, apesar de tudo, continua sendo pano de fundo para outras questões na relação EUA-Venezuela, caso que fica claro, por exemplo, na série de sanções econômicas levadas a cabo em 2020 pela administração de Trump à Maduro. O evento, que não somente mina o governo - em acordo com as intenções estadunidenses - mostra poucas preocupações com o agravamento ainda mais profundo da situação precária de grande parte da população venezuelana; um cenário que inevitavelmente reafirma a primazia do interesse político ao humanitário.
Por fim, é interessante destacar que no último mês, após uma mudança progressiva de postura, Maduro assinou um acordo com o Programa Mundial de Alimentos da ONU que promete beneficiar 185 mil crianças neste ano e cerca de 1,5 milhão até o final do ano letivo 2022-2023. Quanto a novas tentativas de ajuda por parte dos EUA, ainda é cedo para afirmar qual será a atitude de Maduro em relação ao governo Biden, assim como o papel que Guaidó desempenhará para este último. Estas variáveis, como visto aqui, são fatores-chave na ação externa dos EUA, até mesmo em matéria de ajuda humanitária.
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