Por Nicolle Palharini, graduanda em Relações Internacionais pela PUC-SP e bolsista pelo PETRI
Introdução
A primeira parte do estudo "Trabalho escravo no café: das fazendas às multinacionais" (2024), lançada pela Conectas em 1º de outubro de 2024, faz parte do projeto global “Mind the Gap”, liderado pela organização holandesa SOMO. O estudo tem como objetivo identificar e compreender as estratégias utilizadas por corporações para evitar a responsabilização por violações de direitos humanos e impactos ambientais negativos em suas cadeias produtivas. No contexto da cafeicultura brasileira, o relatório revela como grandes empresas, mais especificamente multinacionais, continuam ligadas a práticas de trabalho análogo à escravidão, evidenciando falhas no sistema de fiscalização e proteção aos trabalhadores. Tal realidade reflete uma dinâmica mais ampla de desigualdade que retoma a Divisão Internacional do Trabalho (DIT), na qual o Sul Global, como o Brasil, se posiciona como fornecedor de matérias-primas para o consumo global, em uma cadeia que se sustenta às custas de condições de trabalho precárias.
No caso do café, uma das commodities mais exportadas pelo Brasil, a dependência do país em cadeias produtivas globais controladas por grandes corporações perpetua essa assimetria proveniente da DIT. O Brasil ocupa um papel central na estrutura produtiva global, mas essa posição não se traduz em melhores condições de trabalho para sua força de trabalho rural. Ao contrário, o país segue inserido em uma lógica de exploração que reforça a marginalização dos trabalhadores do Sul Global, enquanto as empresas do Norte Global acumulam os lucros, distantes das consequências sociais e ambientais de suas operações.
Dividida em três partes (há duas remanescentes que serão lançadas nos próximos meses), a publicação da Conectas aborda, na primeira seção, as lacunas fundamentais na legislação e nos mecanismos de governança no Brasil, que dificultam a responsabilização das empresas e o acesso à justiça. Apesar de instrumentos importantes como a “Lista Suja” e a definição jurídica de “trabalho em condições análogas à de escravo”, o relatório aponta que a ausência de leis que forcem maior transparência nas cadeias produtivas e a devida diligência em direitos humanos tornam os mecanismos de controle insuficientes. Ao contrário de países como Reino Unido, Austrália e Alemanha, que adotaram legislações como o “Modern Slavery Act” para obrigar empresas a relatarem seus esforços no combate ao trabalho escravo, o Brasil ainda carece de normas específicas nesse sentido. Essa lacuna permite que empresas operem sem uma devida responsabilização por condições de trabalho abusivas em suas cadeias de fornecedores, o que compromete a proteção dos trabalhadores e dificulta o avanço em direção a cadeias produtivas mais justas e transparentes.
Contextualização
O projeto “Mind The Gap” responsável pelo relatório em análise se consolida como um consórcio de organizações da sociedade civil ao redor do mundo com o objetivo de atingir justiça para indivíduos e comunidades que foram prejudicados pelas práticas corporativas de multinacionais. Para tal, eles se utilizam de uma estratégia de responsabilização voltada a empresas continuamente impunes por seus atos de violação dos direitos humanos ou degradação ambiental.
Como forma de entender esse mecanismo, o consórcio desenhou um framework que elenca as cinco principais estratégias corporativas por trás da impunidade e, mais ainda, aponta que:
[...] economic liberalisation and globalisation policies combined with existing governance gaps and other systemic barriers to justice have fostered an environment that is conducive to corporate misconduct and impunity for environmental damage and human rights abuses (Mind The Gap, 2020, p. 1).
Dentre as estratégias mencionadas estão: 1) construir negação; 2) evitar responsabilização através de estratégias judiciais; 3) distrair e ofuscar; 4) subestimar defensores e comunidades; e 5) utilizar o poder de Estado.
É a partir dessas lentes que o relatório irá então se construir a partir da análise das brechas na governança corporativa da cadeia produtiva cafeeira no Brasil. O foco se dá nas lacunas regulatórias e legislativas nacionais - o que se enquadra principalmente na estratégia corporativa “utilizar o poder de Estado” para explorar os vácuos de governança e para evitar regulações por meio de lobby corporativo. Inicialmente, o relatório dispõe uma conceituação de trabalho escravo a partir da legislação brasileira, contemplando desde o Código Penal, até à própria Constituição Federal:
O artigo 149 do Código Penal do Brasil qualifica o trabalho escravo - legalmente definido como “condição análoga à de escravo” - como qualquer uma das quatro práticas: trabalho forçado; horas de trabalho exaustivas; condições de trabalho degradantes; e/ou restrição, por qualquer meio, à liberdade de circulação de um trabalhador através da dívida com o empregador ou um representante desse empregador (Conectas, 2024, p. 9).
Em uma linha temporal histórica, foi em 2003 que o Governo Federal adotou o 1º Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo que contemplava 76 medidas de implementação - dentre elas a criação da “lista suja”, um cadastro público de empregadores que foram flagrados utilizando mão de obra escrava. De tal maneira, segundo o relatório, o sistema brasileiro já foi considerado o melhor do mundo no combate à escravidão moderna. Todavia, a prática de exploração das lacunas regulatórias ainda são utilizadas pelo setor privado. Em primeira instância, isso se dá diante da escassez de regulações de enforcement dos marcos legais, ou que garantam sua implementação. Há também uma ausência de leis brasileiras sobre transparência de cadeias produtivas, o que representa uma lacuna significativa na regulação da transparência corporativa e na descoberta de irregularidades.
Em adição, destaca-se o enfraquecimento das políticas públicas de combate ao trabalho escravo - acelerado nos últimos dez anos principalmente diante do desmonte do Ministério do Trabalho em 2019 e de cortes orçamentários: “mecanismos de monitoramento foram sucateados; e reformas foram aprovadas para flexibilizar direitos trabalhistas, dificultando a tipificação do trabalho análogo à escravidão” (Conectas, 2024, p. 24). Atualmente, o Brasil se encontra em um cenário de precarização crescente, totalizando um número de 3.190 pessoas resgatadas do trabalho escravo somente em 2023 - o maior número desde 2009.
Como consequência, outro relatório intitulado “Pragas na lavoura: Escravidão moderna na insdústria cafeeira” (2024) aponta que, recentemente, vieram à tona vários casos de escravidão moderna, especialmente em Minas Gerais, o principal estado produtor de café do Brasil. Entre 1996 e 2023, a Secretaria de Inspeção do Trabalho do Brasil identificou 3.700 trabalhadores em condições análogas à escravidão em plantações de café de todo o Brasil. Em outubro de 2023, 39 dos 471 empregadores na ‘Lista Suja’ eram produtores cafeeiros (Conectas, 2024, p. 3).
Nos últimos dez anos, a Conectas Direitos Humanos e a Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais (ADERE-MG) registraram dezenas de casos de escravidão moderna em plantações de café. Os trabalhadores relataram diversas violações de direitos humanos nas fazendas, incluindo condições análogas à escravidão, ausência de contratos formais, irregularidades nos pagamentos, demissões ilegais, instalações inadequadas para refeições e higiene, além da falta de fornecimento de equipamentos de proteção individual. Ainda de acordo com eles, o café produzido nas fazendas de onde foram resgatados fazia parte da cadeia de fornecimento de grandes marcas e varejistas internacionais, em sua maioria originadas no Norte Global, como Illy (Itália), Jacobs Douwe Egberts (JDE) (Países Baixos), Nestlé (Suíça), e as norte-americanas Dunkin’ Donuts, McDonald’s e Starbucks. As investigações realizadas pela Conectas e ADERE-MG revelaram diferentes níveis de vínculo entre essas empresas e as práticas de escravidão moderna. Nestlé e Starbucks tinham relações comerciais diretas com as fazendas envolvidas, enquanto JDE, Illy, Dunkin’ Donuts e McDonald’s estavam ligadas às fazendas por meio da Cooperativa Regional de Cafeicultores (Cooxupé), localizada em Guaxupé (MG).
Com apoio da Conectas e da ADERE-MG, os trabalhadores se reuniram para denunciar as seis multinacionais ao Ponto de Contato Nacional (PCN) da OCDE. As denúncias apontaram a falta de diligência dessas empresas para identificar e prevenir violações de direitos humanos em suas cadeias de fornecimento. Embora as empresas possuam políticas no papel, como auditorias e códigos de conduta, as denúncias destacaram a falta de transparência e a ausência de ações efetivas para enfrentar a escravidão moderna. Apesar das provas apresentadas, os resultados foram limitados.
Algumas empresas, como JDE e McDonald 's, recusaram mediações. A Nestlé aceitou, mas os compromissos assumidos permanecem confidenciais. O sistema de PCNs da OCDE, um dos poucos mecanismos para tratar violações de direitos humanos por empresas nas cadeias produtivas, mostrou-se ineficaz. Falhas na implementação das Diretrizes da OCDE e a falta de adesão das multinacionais mantêm os trabalhadores rurais vulneráveis, gerando ceticismo na sociedade civil sobre o potencial desse mecanismo em promover justiça.
Análise crítica da conjuntura internacional por trás do café
A Divisão Internacional do Trabalho (DIT) é um processo econômico que estabelece as funções produtivas específicas que cada nação desempenha no sistema global, influenciando diretamente a organização econômica interna de seus territórios. Conforme Milton Santos (1996), essa divisão não apenas estrutura a produção, mas também determina a distribuição de recursos materiais e imateriais, ampliando desigualdades entre nações e internamente dentro dos países. No caso do Brasil, a inserção histórica na DIT reflete uma condição de subordinação a interesses externos, com foco na exportação de commodities agrícolas e industriais (Pereira, 2010).
Esse modelo é exemplificado pelo agronegócio de exportação, que reafirma o papel do Brasil como fornecedor de produtos primários, como café, soja e milho. Tal realidade reflete a histórica dependência do país em relação ao mercado internacional. Esse papel é consequência de um desenvolvimento limitado das forças produtivas nacionais, que restringe a capacidade do país de diversificar sua economia e agregar valor a seus produtos industrializados. No contexto das relações capitalistas mundiais, essa dependência reforça a hegemonia do capital comercial exportador, que tem predominado, especialmente, na economia cafeeira (Gareis, 1991).
O impacto do mercado internacional é evidente na organização da economia brasileira, onde as exportações agrícolas, como o café, não apenas moldaram a estrutura produtiva, mas também consolidaram uma economia subordinada. Esse modelo favorece a manutenção de grandes propriedades voltadas para exportação, enquanto o mercado interno é negligenciado. O resultado é a concentração de terras e recursos nas mãos de elites, agravando dinâmicas de exploração que favoreçam o lucro do mercado internacional, como a escravidão moderna nas lavouras do café.
A economia cafeeira ilustra como o comércio internacional influencia a totalidade da economia brasileira. O papel predominante do café nas exportações ao longo do século XIX e XX é um reflexo direto da dominação do capital comercial. Esse modelo de dependência estrutural não apenas perpetua a posição subalterna do Brasil na economia mundial, mas também limita seu desenvolvimento autônomo e sustentável: “é pelo trabalho realizado por multinacionais de diferentes setores produtivos que países como o Brasil aparecem hoje com uma maior participação na divisão internacional do trabalho” (Pereira, 2010, p. 350).
Conclusão
A análise do relatório "Trabalho escravo no café: das fazendas às multinacionais" evidencia como a cafeicultura brasileira reflete e perpetua as desigualdades históricas e estruturais da Divisão Internacional do Trabalho. Apesar de ocupar uma posição central na produção global de café, o Brasil permanece inserido em uma lógica de exploração que prejudica seus trabalhadores e favorece multinacionais estrangeiras, reforçando um sistema de impunidade corporativa. As lacunas na legislação e na fiscalização permitem que práticas de trabalho análogo à escravidão continuem a ocorrer, demonstrando a necessidade urgente de maior transparência, devida diligência e fortalecimento de mecanismos de governança.
A análise do relatório e consonância ao panorama conjuntural do café na economia brasileira sublinha que, enquanto o Brasil luta contra o desmonte de políticas públicas e a precarização do trabalho rural, empresas globais acumulam lucros, frequentemente distantes das consequências socioambientais de suas operações. Esse cenário ressalta a importância de ações conjuntas entre sociedade civil, organizações internacionais e governos para responsabilizar corporações e promover cadeias produtivas mais justas e sustentáveis. Só assim será possível romper com a lógica de subordinação do Sul Global e avançar na proteção dos direitos humanos no contexto da economia globalizada.
Referências bibliográficas:
CONECTAS. Trabalho escravo no café: das fazendas às multinacionais. São Paulo: Conectas, 2024. Disponível em: <https://www.conectas.org/publicacao/trabalho-escravo-no-cafe-das-fazendas-as-multinacionais/>. Acesso em: 18 nov. 2024.
CONECTAS. Trabalho análogo ao escravo persiste em lavouras de café brasileiras, aponta estudo. 2024. Disponível em: <https://www.conectas.org/noticias/trabalho-analogo-ao-escravo-persiste-em-lavouras-de-cafe-brasileiras-aponta-estudo/>. Acesso em: 18 nov. 2024.
GAREIS, M. da G. S. . (1991). A expansão cafeeira e a modernização da economia brasileira. Raízes: Revista De Ciências Sociais E Econômicas, (8), 89–112. 1991. Disponível em: https://doi.org/10.37370/raizes. Acesso em: 18 nov. 2024.
MIND THE GAP. Holding corporations accountable. Disponível em: <https://www.mindthegap.ngo/>. Acesso em: 18 nov. 2024.
REPÓRTER BRASIL. Produtores da maior exportadora de café do Brasil entram na ‘lista suja’ do trabalho escravo. 2024. Disponível em: <https://reporterbrasil.org.br/2024/04/produtores-exportadora-cafe-brasil-lista-suja-trabalho-escravo/>. Acesso em: 18 nov. 2024.
PEREIRA, João. Divisão Internacional do Trabalho e Desenvolvimento Econômico no Brasil. Sociologias, v. 18, n. 41, p. 332-358, jan./abr. 2010. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/sn/a/SHBvQFnZdz4qbnxdZpTFYDw/>. Acesso em: 18 nov. 2024.
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