Foto em destaque: Carolina Ito | Divulgação/MAB
Por Letícia Marinho
O recrudescimento da onda de privatizações da década de 90 reconfigurou os modelos de energia e de mineração brasileiro. Com isso, as corporações transnacionais assumiram o controle da construção de grandes projetos, como a instalação de barragens, e como consequência, os casos de violação de direitos humanos aumentaram consideravelmente, em especial, o das mulheres. O artigo visa, portanto, aprofundar o debate sobre a violência contra mulheres atingidas por barragens e suas novas formas de agência e resistência, como as arpilleras, que denunciam a violência de gênero sob a perspectiva de movimentos sociais.
O papel das corporações transnacionais na violação de direitos
A exaustão dos modelos energético e minerador centralizados na década de 1990, a partir dos programas de desestatização e das novas leis de tarifas e concessões, resultou no processo de ampliação das privatizações e na inserção de corporações transnacionais no Brasil. Diante deste contexto, tais empresas passaram a assumir papel central no país, em especial no que diz respeito a instalação de grandes projetos como os de barragens de hidrelétricas e rejeitos. Das 24 mil barragens registradas, apenas cerca de 20% pertencem ao Estado[1].
Os projetos de instalação de barragens, contudo, causam transformações que, além dos impactos ambientais e ecológicos, resultam em uma série de violações de direitos humanos das populações atingidas. Dentre as violações, as mais comuns são: a remoção de núcleos urbanos e rurais, que geram episódios de migrações compulsórias; a precarização da força de trabalho; a não indenização dos atingidos e atingidas; e, a tentativa de controle e perseguição de sindicatos de trabalhadores[2].
De modo geral, de mais de 1 milhão de atingidos no país, 70% não receberam nenhum tipo de indenização e o quadro de violação de direitos só piorou com as privatizações iniciadas na década de 90[3]. Em vista disso, os projetos de barragens de energia e mineração provocam não apenas a remodelação da paisagem física, mas também, a desestruturação de aspectos sociais e culturais das populações atingidas. No entanto, cabe ressaltar que as mulheres são atingidas de forma mais grave e encontram maiores obstáculos para a recomposição de seus meios e modos de vida[4].
A título de exemplo, funcionários e trabalhadores da Vale, mineradora brasileira, além de estarem envolvidos em casos de violência contra mulheres em território nacional, também são acusados de cometer tais violações de maneira sistemática nos 31 países em que a empresa possui subsidiárias, como a África do Sul. De acordo com o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas ” na África do Sul foi constatado que, nas áreas de mineração em Rustenburg, 1 em cada 4 mulheres já foi estuprada […] Esse fenômeno, recorrente em locais de barragens de empresas como a Vale, é chamado de Filhos da Mineração” (IBASE, 2016).
Mulheres: as mais atingidas
Frente a este cenário de violação de direitos por parte das empresas transnacionais, as mulheres são, portanto, o grupo mais vulnerável e afetado pelas construções e rompimentos de barragens. De acordo com uma cartilha formulada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), as violações mais frequentes no Brasil dizem respeito: ao mundo do trabalho; atuação política; relação com as empresas; convivência familiar e comunitária; direitos sexuais e reprodutivos; e acesso a políticas públicas[5].
A invisibilidade do trabalho das mulheres, principalmente nas atividades suplementares de renda, como a doméstica e do campo, são problemas usuais, assim como a não adaptação ao mercado de trabalho urbano, quando há deslocamentos humanos. Com relação à política, a ausência das mulheres nos espaços deliberativos e a carência de serviços básicos que viabilizem a mobilização e participação das atingidas, até mesmo nos próprios movimentos sociais, são comuns. Somando-se a isso, nas últimas décadas, também se observa um crescimento da criminalização, ameaças e assassinatos de líderes militantes mulheres, como o da Dilma Ferreira Silva, do MAB, em 2019.
Mulher amazônica, Dilma doou seu tempo e trabalho para construir a organização coletiva das famílias atingidas por barragens (Foto: Acervo MAB)
Além disso, o não reconhecimento das mulheres como atingidas, baseando-se no núcleo familiar patriarcal, e os constantes casos de coação e assédio por parte dos funcionários das empresas são violações habituais. A convivência familiar e comunitária também é prejudicada e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, em especial com a mercantilização dos corpos com a prostituição e exploração sexual de crianças e adolescentes, são violações frequentes. Por fim, o acesso a políticas públicas, como energia elétrica e saneamento básico, são escassos.
Contudo, apesar das mulheres atingidas serem as principais vítimas das violações promovidas pelas empresas transnacionais, elas também possuem poder de agência. No MAB, por exemplo, elas são atrizes ativas do processo político e organizativo do movimento e constroem formas de contestação muito particulares. O Coletivo de Mulheres do Movimento dos Atingidos por Barragens, por exemplo, ensinou em oficinas por todo o país uma técnica de bordado denominada arpillera como forma de resistência.
A técnica nasceu no Chile, nas periferias de Santiago, onde as mulheres faziam bordados nos sacos de batata para complementar a renda, e como forma de denunciar a repressão ocorrida durante a ditadura militar, colocando cartas escondidas entre os desenhos. O MAB, em 2016, produziu um documentário chamado “Arpilleras: atingidas por barragens bordando a resistência” que retrata a estória de dez mulheres atingidas por barragens que utilizam as agulhas como forma de relatar sua dor, luta e superação frente às violações sofridas.
Arpilleras denunciam violação de direitos contra mulheres atingidas através dos bordados (Fotos: documentário MAB).
A articulação das mulheres em movimentos sociais
É possível perceber, portanto, que ao passo que o processo de ampliação das barragens desfaz relações ao promover a expulsão do lugar, a desterritorialização e a marginalização do fator humano no espaço, também cria relações na medida em que as mulheres, mais atingidas de modo geral, organizam-se no âmbito de movimentos sociais a fim de resistir aos impactos negativos dos modelos elétrico e minerador.
Assim, criado em meados da década de 70, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) é um dos principais núcleos de organização popular com ampla participação de mulheres que denuncia a ofensiva das empresas transnacionais e dos bancos mundiais sobre o campo nos países latino-americanos. Seu lócus de atuação também reivindica a garantia de direitos humanos e a construção de políticas nacionais que asseguram medidas de reparação de perdas para os atingidos e atingidas.
De modo semelhante ao MAB, o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), organizado em 2012 por um conjunto de militantes ligados a Via Campesina, conta com a participação de mulheres que dedicam-se contra os projetos de exploração e escoamento da mineração e as construções de barragens de rejeitos, reivindicando, desse modo, a participação popular na mineração[6].
No entanto, a busca pela garantia de direitos das mulheres nos movimentos anti-barragens é, muitas vezes, restringida pela carência de mecanismos que responsabilizem e julguem as empresas transnacionais pelo descumprimento da lei, violação de direitos humanos e falta de suporte às comunidades atingidas. Do ponto de vista jurídico, não há um órgão oficial – fórum, corte ou tribunal, por exemplo – que julgue os crimes relacionados à construção de barragens cometidos por corporações internacionalizadas.
A necessidade de criar tais instrumentos jurídicos surge, desse modo, uma vez que essas empresas atuam e cometem violações contra mulheres de modo sistemático em nível global, não limitando-se, desse modo, às fronteiras do território nacional, como exemplificado com o caso da Vale na África do Sul. Nesse sentido, diversos movimentos sociais constituíram, ao longo dos anos, uma série de redes transnacionais de solidariedade para denunciar desastres socioambientais e humanos em tribunais de opinião e de julgamento simbólicos. O Tribunal Permanente dos Povos (TPP), por exemplo, ainda que não possa aplicar punições oficialmente, é um órgão independente que condena, ante a opinião pública mundial, casos nos quais as justiças tanto nacional quanto internacional falham em apurar.
Citando caso análogo e retomando a Vale, a Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAV) é uma rede Sul-Sul que congrega, desde 2009, diversos grupos como sindicalistas, ambientalistas, ONGs, associações de base comunitária, grupos religiosos e acadêmicos do Brasil e do mundo a fim de promover estratégias, em rede, de enfrentamento aos impactos socioambientais, como a violência contra mulheres, vinculados à empresa. De modo geral, como observado com o TPP, o Estado, assim como movimentos sociais isolados, não conseguem administrar as violações de atores econômicos globais, apenas de casos individuais, e com isso, a atuação em rede de movimentos sociais em tribunais simbólicos de julgamento torna-se um fenômeno cada vez mais comum.
Considerações Finais
Em suma, o artigo destacou o papel das corporações transnacionais na violação de direitos humanos dos atingidos e atingidas por barragens e como, diante desse avanço capitalista no campo, a população impactada não encontra mecanismos de defesa a não ser através de sua própria organização em redes de movimentos sociais. Neste contexto, as mulheres são as mais vulneráveis e, em vista disto, desenvolveram meios de reivindicação singulares, como os bordados das arpilleras. Desse modo, é importante que “nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”[7]. Por isso a relevância da articulação das mulheres em redes a fim de reivindicar condições de vida e trabalho dignas e livres de violência.
Referências Bibliográficas
[1] Agência Nacional de Águas (ANA). (2017). Relatório de Segurança de Barragens. Brasília.
[2] Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). (2016). Mulheres e mineração no Brasil. Rio de Janeiro.
[3] Marcha Mundial das Mulheres. (26 de Fevereiro de 2018). O modelo energético brasileiro e a violação dos direitos das mulheres. Fonte: Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA): http://fama2018.org/2018/02/26/o-modelo-energetico-brasileiro-e-violacao-dos-direitos-das-mulheres/
[4] Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH). (2015). Comissão Especial “Atingidos por Barragens”. Brasília.
[5] MAB. (2011). O modelo energético e a violação dos direitos humanos na vida das mulheres atingidas por barragens. São Paulo.
[6] Sempreviva Organização Feminista (SOF). (2014). Trabalho, corpo e vida das mulheres: uma leitura feminista sobre as dinâmicas do capital nos territórios. São Paulo.
[7] Beauvoir, Simone. O segundo sexo. (1949). Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro.
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