Por Laísa Nakamura
Introdução
“O rap é o portal do sofrimento do negro, do sujeito que vive na favela!” AMARAL, 2013
A frase acima, elaborada por um grupo de jovens frequentadores da ONG Casa do Zezinho, zona sul de São Paulo, expressa uma das principais características do Rap brasileiro: a incorporação da denúncia e do confronto ao racismo presente na sociedade brasileira.
O ativismo político por meio da música possui um longo histórico, podendo ser observado do MPB de resistência à ditadura militar ao folk nacionalista irlandês – crítico à dominação inglesa. Assim, as chamadas “músicas de protesto” são um elemento central para a compreensão de muitos movimentos sociais e políticos, em especial, por sua capacidade de criação identitária (PEDDIE, 2011) e compartilhamento de ideais. Contudo, o papel político da música no cenário internacional é, muitas vezes, sub explorado ou desconsiderado nas análises de, por exemplo, movimentos sociais transnacionais.
Desde sua criação, o Hip-Hop é marcado por seus discursos políticos de resistência à autoridade (CHANG, 2009), tendo grande capacidade para ecoar questões como cultura, classe, opressão histórica e, até mesmo, a própria rebelião jovem – lhe conferindo o potencial de “conectividade de marginalizações” (OSUMARE, 2007). Assim, o rap – uma das quatro características chave do Hip-Hop[1] – ganhou aderência dentre grupos de jovens ao redor do mundo que compartilham alguma situação de vulnerabilidade social ou sofrem das mazelas advindas da lógica excludente da globalização (e.g. a perda de renda de metade da população mundial ao mesmo tempo em que se aumenta a concentração de renda, experienciada nos últimos 30 anos). Se tornando, então, um meio de resistência destes jovens que, por meio do rap, refletem, denunciam e se educam sobre as violências sofridas e convocam outros a fazer o mesmo.
“[…] Se eu fugir da pobreza não escapo da depressão, não / Num quadro triste, realista / Numa sociedade machista / As oportunidades são racistas / São dois pontos a menos pra mim / É difícil jogar / Quando as regras servem pra decretar o meu fim […] / À margem de tudo a gente marcha / Pra manter-se vivo / Respirando nessa caixa / Eu quero mais / Eu vou no desdobramento / Nem que pra isso eu tenha que formar um movimento / E agora é preta no comando do empoderamento […]” REIS, 2016
O trecho acima, da Rapper feminista Tassia Reis, demonstra algumas das pautas que dão a cara do rap brasileiro enquanto um estilo musical crítico. O Hip-Hop chega ao movimento negro brasileiro no início dos anos 80, em meio a um movimento de valorização da cultura negra e expansão da consciência Black Power (SANTOS J. L., 2016) – em oposição aos estereótipos Afro-brasileiros negativos até então difundidos. Assim, os álbuns de música estadunidenses, filmes e revistas que introduziram o Hip-Hop no país mobilizavam ideais antirracistas e de enfrentamento que encontraram aderência no então cenário brasileiro – sendo logo incorporado ao movimento negro brasileiro.
Do Local ao Global
“Bem, o Rap é música urbana e tem a ver com o que se passa na cidade. Eu acho que São Paulo é muito semelhante a Nova Iorque e que o elemento comum da cidade leva as pessoas para o Rap. Cultura viaja até aqui rapidamente e as pessoas estão sempre ligados ao que há de novo.” Entrevista da MTV com o rapper brasileiro ‘Emicida’, 2012
A fala do Rapper Emicida aponta para o Hip-Hop enquanto um fenômeno global, que permite a socialização de conhecimentos, técnicas e vivências entre adeptos deste estilo de diversas partes do mundo. Isto porque os produtos da lógica excludente da globalização desencadearam nas maiores metrópoles do mundo condições de segregação territorial e opressão social similares (AMARAL, 2013) – mais afetando as populações pobres, negras e imigrantes. Nesses cenários, o rap vem sendo incorporado enquanto um meio de expressão jovem com o potencial de romper com as narrativas hegemônicas de submissão, capturando as esperanças e pesadelos coletivos, assim como as contradições das sociedades em que vivem. Para além desta questão, os artistas de Hip-Hop ao redor do mundo adotam o estilo não somente por se identificarem com a música Afro-Americana, estilo e linguagem mas, principalmente, por encontrarem no contexto político racial em que o Hip-Hop foi criado (Bronx dos anos 70) pontos de conexão com a sua própria experiência de vida.
A grandes metrópoles brasileiras, como São Paulo e o Rio de Janeiro, não fogem da tendência de globalização excludente e sofrem transformações de segregação territorial que fomentam o aumento da violência contra a população pobre e negra – as marginalizando de forma similar há como ocorreu em Nova Iorque em meados dos anos 70. Constroem-se então paralelos entre as metrópoles no imaginário dos Rappers. Assim, conforme exposto na fala de Emicida, São Paulo não parece ser tão diferente de Nova Iorque, nem a periferia brasileira tão distante do Bronx. Isto porque muitas das lutas e dificuldades diárias relatadas nos raps estadunidenses também eram experienciadas por seus ouvintes brasileiros, inspirando a apropriação do estilo para a expressão da insatisfação do jovem periférico brasileiro.
O contato dos jovens brasileiros, por meio do rap, com os movimentos e lutas travadas pelos negros no exterior – conforme apontado por Camargo (2018) –, levou a uma espécie de “redescoberta de si”. Na qual, a partir da experiência norte-americana, fomentou-se a noção de pertencimento do jovem negro brasileiro a uma história comum que aproxima afrodescendentes inseridos em diferentes regiões – os quais sofrem ou sofreram experiências de opressão e exclusão similares. Ademais, a troca cultural entre jovens negros de ambos países contribuiu para a configuração do movimento negro brasileiro que há anos se desenvolvia no país. Tornando a música um veículo para o compartilhamento de conhecimento sobre as diásporas negras no mundo e os movimentos de resistência negra em outros lugares – e.g. o movimento por direitos civis nos EUA. Deste modo, solidificando algumas das bases para o Rap Brasileiro atual, como a denúncia e enfrentamento antirracista dentro do cenário brasileiro. Assim, aproximando o estilo musical ao movimento negro no Brasil principalmente em momentos, como nos anos 80, em que se buscava meios para a criação de uma identidade negra positiva e reconstrução da autoestima.
“’Misturar a batida universal do rap com uma música do Cartola pode dar numa coisa muito louca, mas não se pode descaracterizar o estilo’, defende KL Jay ‘A brasilidade do rap está nas letras, que falam da realidade daqui com gírias próprias. Há quem copie os caras de fora. Mas isso é pipoca!’” MENA, 2001
A exportação do Hip-Hop Estadunidense, conforme apresentada, não foi um processo unilateral. Ao mesmo tempo em que se globaliza, ou seja, chega em diferentes países e regiões, o Hip-Hop também constitui um fenômeno local no sentido em que é absorvido pelos ritmos, tradições e demais legados socioculturais pré-existentes – e não o contrário –, resultando em “culturas” do Hip-Hop nos locais em que foi instalado. A fala do Rapper KL Jay (acima), aponta para como o rap brasileiro não é uma cópia abrasileirada do rap estadunidense, mas sim um estilo com características próprias brasileiras e que tem permeabilidade para se encontrar com demais estilos musicais do país. Assim, o Hip-Hop brasileiro se desvencilha de algumas heranças estadunidenses e até mesmo critica a noção de império cultural dos EUA (SANTOS J. L., 2016), podendo ser argumentado que o “Hip-Hop não é um movimento Norte Americano, substituindo esta noção pela de que [o Hip-Hop] é um movimento diaspórico e patrimônio das pessoas negras” (SANTOS J. L., 2007, p. 14).
“’O rap gerou uma autoestima que não existia entre a gente’, conta Hood. ‘Quem havia antes do rap? Pelé? Hoje tenho prazer em falar que sou preto, negro, mano, tenho que me afirmar e não vou dar boi pra ninguém’” MENA, 2001
É impossível falar sobre o rap no Brasil sem entrar na questão racial. O rap se instala nas periferias brasileiras por meio dos Bailes Black, em meio à expansão da consciência Black Power nos anos 70/80, se tornando ao longo dos anos um instrumento político poderoso entre os jovens negros brasileiros. Assim, o Hip-Hop promove meios de combate a um sistema opressor que subalterniza e discrimina pessoas negras (MOREIRA, 2009), positivando os corpos e culturas negras a fim de empoderar estas pessoas – revertendo “processos de subjugação, interiorização de discursos de inferioridades e aceitação de práticas racistas” (SANTOS J. L., 2016). Nesse sentido, o rap possui um papel importante na estruturação identitária cultural negra, que subverte as imagens negativas associadas à pessoas negras e fornece opções outras para processar “[…] as experiências de ser e se entender como negros e forjado significados para a negritude a partir de uma apropriação do processo histórico do país, fazendo menções ao passado colonial e à herança deixada para as gerações futuras”. (CAMARGOS, 2018) Promovendo assim a recuperação de referências identitárias positivas e a reafirmação da autoestima negra – fomentando o orgulho de suas histórias particulares e coletivas.
As reuniões em lugares públicos e acessíveis à população periférica, assim como a criação de organizações de Hip-Hop (e.g. Sindicato Negro), tornaram a cultura brasileira do Hip-Hop e as músicas de rap um veículo importante para a difusão da identidade cultural empoderadora, de valores alternativos ao Status Quo branco, e de um discurso combativo ao racismo e classismo – conectando de certo modo moradores de diferentes periferias do Brasil pela ‘trajetória de opressão e subjugação’ (CAMARGOS, 2018) e lhes instigando luta e resistência. Assim, o papel “educador” do rap em muito se baseia na conscientização coletiva do racismo estrutural e da importância de oposição a este. Neste sentido, a recuperação da história escravocrata brasileira ao mesmo tempo em que se evocam figuras importantes da luta contra a discriminação racial no Brasil e no exterior tem o papel de educação conjunta sobre estes temas, como expõe DJ Nyack no trecho abaixo:
“Na cultura hip hop ele [Malcom X] foi como um dos professores, da mesma forma que Martin Luther King, Angela Davis e Rosa Parks, que educaram uma geração de jovens negros daquela época, fazendo-os sentir a necessidade de educar gerações futuras, transmitindo o que aprenderam com toda a luta liderada por essas pessoas. Através da música, através da cultura hip hop. Caso não existisse o hip hop, talvez eu nem saberia quem foi Malcolm X, e se não existisse um Malcolm X, talvez o hip hop não teria esse poder de transformação que salvou vários pretos ao redor do mundo, incluindo eu.” SOARES, 2017
Assim, o Rap funciona como uma “escola” que constrói uma memória histórica de luta e resistência negra – as quais ainda são subexploradas nos meios formais de ensino, principalmente nas periferias brasileiras –, fortalecendo o orgulho sobre a identidade negra mencionada anteriormente e incitando a necessidade de não conformismo e denúncia do racismo estrutural. Conforme MC Soffia: “[t]odos os seus ensinamentos [do Malcom X] são base para o rap, pois também é um movimento de luta e resistência, de quebrar barreiras, conhecer sua história e nunca abaixar a cabeça para o racismo. É sem dúvida uma das nossas grandes influências.” (SOARES, 2017)
Conclusão
“Não sou a subalterna que o senhorio crê que construiu / Meu lugar não é nos calvários do Brasil / Se um dia eu tiver que me alistar no tráfico do morro / É porque a Lei Áurea não passa de um texto morto” YZALÚ, 2012
Os Rappers brasileiros versam sobre suas experiências de vida, as politizando e destrinchando o preconceito racial da sociedade brasileira na qual, por muito tempo, se predominam discursos e estereótipos racistas. Assim as letras de rap críticas, como o trecho da música interpretada por Yzalú, jogam luz e trazem para o debate coletivo as realidades brasileiras historicamente marginalizadas, desestabilizando os marcos de identificação convencionais que tentam minimizar os componentes raciais na formação das desigualdades sociais brasileiras. Tornando possível ambientes, acessíveis às populações periféricas, que pautem o questionamento crítico à posição social imposta às pessoas negras na sociedade e no imaginário construído – seja este a história, narrada a partir dos europeus, ou a construção da representação midiática. Assim, o rap auxilia na subversão do pensamento hegemônico branco e seus estereótipos, sendo uma das linguagens por meio da qual os Afro-brasileiros reconstroem e compartilham sua história, empoderando-se uns aos outros.
É importante ressaltar que a chegada do Hip-Hop não inaugura os movimentos que buscam combater o racismo no Brasil, assim como a importação dele não funda o movimento negro no país – o qual já se desenvolvia nos anos 70/80. Contudo, o rap compõe uma importante chave para o entendimento da formação e desenvolvimento dos movimentos negros brasileiros, dado que o Rap se instala e se desenvolve no país em meio a este caldo político-social. Tendo sido incorporado como uma ferramenta e linguagem do movimento para empoderamento, criação identitária, denúncia, reflexão, e auto educação, para citar alguns.
O exemplo brasileiro demonstra, também, o papel dos Hip-Hops globais enquanto conectores de marginalidades. Visto que permitem a difusão de histórias, experiências e conhecimentos-chave mesmo quando o contato físico entre os interlocutores não é possível – por limitações físicas, econômicas e/ou linguísticas. Esta questão levanta um ponto importante para a compreensão de como conhecimentos, por exemplo, das diásporas negras ou movimentos civis antirracistas se proliferam e permeiam diferentes grupos de jovens negros ao redor do mundo. Do mesmo modo como Rappers brasileiros apontam para a importância do Hip-Hop em seus conhecimentos sobre figuras importantes no movimento negro, como Angela Davis e Malcom X, a música pode ser uma via de comunicação importante entre movimentos negros de diferentes países. Isto porque este efeito agregador e comunicador do rap no Brasil não é senão a intersecção local de um fenômeno que ocorre globalmente em diferentes formas e níveis.
[1] Segundo ALIM (2008) são estas: a arte de DJing; o grafitti; e o breakdance ou demais danças de rua.
Referências:
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