Foto em destaque: The New York Historical Society / Getty Images
Por Yasmin Sanches
Em razão da pandemia de COVID-19, a restrição de doação de sangue por homens que, nos 12 meses antecedentes a doação, tiveram relações sexuais com outros homens foi reduzida nos Estados Unidos. O período que antes era de 12 meses antecedentes a doação foi reduzido para 3 meses.
A ação do ACT UP, grupo político internacional, contra a AIDS nos anos 1980 e 1990, tanto nos EUA como em outros países, foi significativa para o enfraquecimento dos estigmas decorrentes da epidemia, como, por exemplo, o estigma da doação de sangue por homens gays e bissexuais.
Já que, apesar dos esforços da sociedade civil, a restrição discriminatória de doação de sangue foi reduzida nos Estados Unidos devido as dificuldades postas pela nova pandemia e não somente ao fato de ser discriminatória e inconstitucional, discorrer sobre a atuação do ACT UP na época se faz importante.
O reforço dos estigmas
Antes mesmo da descoberta do vírus transmissor da AIDS em 1983 foram determinados grupos de risco de transmissão, estando os homossexuais entre eles. Isto posto, vê-se que a doença, desde o princípio da epidemia, foi vinculada a grupos de risco e não a um comportamento de risco. Como consequência dessa associação, observou-se um reforço do preconceito e da discriminação, ou melhor, dos estigmas em relação a comunidade LGBT+, sendo a doença popularmente chamada de “peste gay” ou “praga do homossexual”.
A imprensa internacional da época referia-se sobre a AIDS com extremo preconceito e moralismo, justificando a alta incidência da doença entre homossexuais com interpretações muitas vezes sem base científica. As autoras Adriana Pereira e Lúcia Nichiata apontam em seu artigo “A sociedade civil contra a Aids: demandas coletivas e políticas públicas” que relacionava-se a doença ao uso de drogas afrodisíacas e ao uso de hormônios estrógenos pela comunidade LGBT+.
O ACT UP
A preocupação da comunidade LGBT+ com uma doença que a estava afetando diretamente acarretou a mobilização de grupos nos Estados Unidos que tinham como propósitos lutar contra o preconceito e a discriminação e conquistar direitos sexuais, além de lutar diretamente contra a doença. Dentre esses grupos estava o ACT UP.
O ativista de direitos LGBT+ e escritor Larry Kramer, em 1987, fundou em Nova Iorque o AIDS Coalition to Unleash Power (ACT UP), grupo internacional não-partidário que, nos anos 1980 e 1990, desafiou discursos dominantes e se notabilizou por suas manifestações radicais e que tinha como propósito mobilizar a sociedade civil contra os estigmas decorrentes da doença, além de contra a própria doença.
Em 1987, tinha-se, mundialmente, por volta de 5 a 10 milhões de infectados. A frustração da comunidade LGBT+ perante a negligência, tanto pública como privada, em relação a epidemia a fez tomar medidas mais radicais. Por isso, os membros do ACT UP invadiam eventos científicos, como convenções médicas, protestavam em frente a sedes governamentais, distribuíam panfletos que informavam sobre prevenção e combatiam o preconceito para com os homossexuais, denunciavam empresas com posições sorofóbicas ou homofóbicas, reuniam-se com oficiais do governo e compartilhavam informações médicas. Dessa forma, dentre muitas coisas, faziam pública a discriminação a que vinham sendo alvos.
O ACT UP New York foi criado como resposta à negligência social e governamental e à complacência das instituições médicas. Na época, o grupo além de combater fatores estruturais da epidemia como, por exemplo, os estigmas e a discriminação, lutava por investimento sustentável em pesquisa para novos remédios e tratamentos para HIV/AIDS e por acesso equitativo à prevenção e à assistência ao HIV, já que muitos dos membros do grupo eram soropositivos e a luta contra estigmas e discriminação não seria possível sem remédios e tratamentos para a doença.
Em outubro de 1988 ocorreu uma das manifestações mais bem-sucedidas do ACT UP. Foi fechada por um dia a Food and Drug Administration (FDA), agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, visando exigir a disponibilização mais rápida e justa de remédios experimentais. Entre 1.110 e 1.500 manifestantes bloquearam portas, passagens e estrada conforme os trabalhadores da agência chegavam ao trabalho. Parte dos manifestantes usava jalecos manchados de sangue, além de alguns terem levado lápides com a mensagem: “mortos pela burocracia da FDA”. No ano seguinte à ação, graças aos protestos mais agressivos, agências governamentais que lidavam com a AIDS passaram a incluir os membros do grupo nos processos de tomada de decisão.
Manifestantes do grupo ACT UP protestando em frente à sede da FDA. (Foto: J. Scott Applewhite/AP)
Em dezembro de 1989, membros do ACT UP New York interromperam uma missa dita pelo cardeal John O’Connor na Catedral de São Patrício em Nova Iorque. Os manifestantes visavam questionar a oposição do cardeal a educação sexual nas escolas públicas e a distribuição de preservativos com finalidade de conter a AIDS, posicionamentos que reforçavam os estigmas e o preconceito e que, de forma criminosa, contribuíam para o desenrolar da epidemia. O confronto mais radical, tendo um dos manifestantes esmagado uma hóstia, fez com que a mídia da época e figuras políticas como o presidente George Bush condenassem a manifestação.
Foto: The New York Public Library Digital Collections. 1969 – 1997
Inspirados pelas manifestações radicais do ACT UP New York, membros da sociedade civil de outras localidades dos Estados Unidos fundaram ACT UPs mais locais como em Boston, Chicago, Los Angeles, São Francisco etc. Posteriormente, também com inspiração no grupo de ação direta formado em Nova Iorque, foram fundados ACT UPs internacionalmente.
Um exemplo de ACT UP fora dos EUA é o ACT UP Paris, fundado em 1989. Os feitos do grupo parisiense foram tão importantes que, visando abordar a epidemia de AIDS, o diretor e ex-militante do próprio ACT UP Paris, Robin Campillo, retratou em seu filme “120 Batimentos por Minuto” a relação do corpo coletivo do ACT UP com os corpos privados dos militantes doentes. No filme, de forma quase documental, retrata-se a reprodução na França de uma militância iniciada nos EUA através da encenação de reuniões e manifestações do grupo.
A AIDS e a atualidade
O HIV/AIDS ainda afeta muito, apesar de tantos esforços da sociedade civil, homens que fazem sexo com homens e transexuais. Os estigmas ainda existentes em relação a comunidade LGBT+ marginalizam essa parte da sociedade civil, a deixam vulnerável a contrair a doença e fazem da sexualidade e da identidade de gênero obstáculo ao acesso a serviços de saúde.
Por isso, apesar de muito bem explicitado pelo ACT UP que uma pessoa tem AIDS devido ao seu comportamento sexual e não a sua sexualidade, a restrição discriminatória de doação de sangue foi reduzida, nos Estados Unidos, devido as dificuldades postas pela nova pandemia e não somente ao fato de ser discriminatória e inconstitucional. A luta contra os estigmas e contra a AIDS ainda não acabou. Silêncio significa morte, informação significa poder.
Referências Bibliográficas:
ESCOREL, Eduardo. 120 batimentos por minuto, o corpo individual e coletivo em ação. Piauí, 08 de fev. de 2018. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/120-batimentos-por-minuto-o-corpo-individual-e-coletivo-em-acao/. Acesso em: 15 de julho de 2020.
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PEREIRA, Adriana Jimenez e NICHIATA, Lúcia Yasuko Izumi. A sociedade civil contra a Aids: demandas coletivas e políticas públicas. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232011000800024&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 25 de jun. de 2020.
CARTA para Além dos Muros. Direção: André Canto. Brasil: Netflix, 2019. Disponível em: https://www.netflix.com/br/. Acesso em: 13 jun. 2020.
COM falta de sangue, EUA reduzem restrições a doadores gays em crise da covid-19. Uol, 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/04/02/com-falta-de-sangue-eua-reduz-restricoes-a-doadores-gays.htm. Acesso em: 25 de jun. de 2020.
AIZENMAN, Nurith. How To Demand A Medical Breakthrough: Lessons From The AIDS Fight. NPR, 2019. Disponível em: https://www.npr.org/sections/health-shots/2019/02/09/689924838/how-to-demand-a-medical-breakthrough-lessons-from-the-aids-fight. Acesso em: 15 de julho de 2020.
UNAIDS. UNAIDS Brasil. Disponível em: https://unaids.org.br/estatisticas/. Acesso em: 15 de julho de 2020.
120 Batimentos Por Minuto. Direção: Robin Campillo. França, 2017. Disponível em: https://www.nowonline.com.br/filme/120-batimentos-por-minuto/126513. Acesso em: 15 de julho de 2020.
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