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Mulheres na guerra como quebra de papel de gênero: As mulheres nas FARC.

Updated: Apr 2, 2021


Por Amanda Rodriguez

A lógica do patriarcado produz violências palpáveis, o machismo mata todos os dias, e as mulheres no mundo inteiro resistem e lutam para sobreviverem. A reação contra a busca por direitos é ainda mais acentuada quando as expectativas de comportamento são transgredidas. É possível pensar a inserção das mulheres na guerra como exemplo de transgressão, para isso irei analisar o papel das mulheres nas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e como o patriarcado transnacional afeta as mulheres no contexto de conflitos na Colômbia. Passando pelas concepções de feminino e masculino, a questão da violência, as razões dessas mulheres para aderirem às guerrilhas e as contradições entre o discurso das FARC em relação ao gênero e suas ações.

Dicotomia: feminino e masculino

A pesquisadora María Emma Wills Obregón escreve sobre a inserção das mulheres na guerra, pensando aspectos em que, por um lado, essa entrada quebra estereótipos, e, por outro, aspectos em que ela reforça estruturas de opressão do patriarcado. Os estereótipos associados à figura da mulher e ao feminino são construídos em oposição àquilo que é ligado ao homem e ao masculino, assim este seria lógico, racional, individualista, inovador, curioso e responsável por descobertas; enquanto aquela seria emocional, intuitiva, cuidadosa, envolvida em relações interpessoais e possuiria um instinto maternal.

Minillo, Mendes, Bandeira e Lages ao estudarem e escreverem sobre a participação das mulheres nas negociações de paz contribuem com a imagem de “belas Almas” que estaria associada aos corpos femininos docilizados; esses seriam frágeis e não belicistas. Em contrapartida, os corpos masculinos seriam os “guerreiros justos”, cuja violência é justificada e se estrutura na forma da guerra.

Seguindo essa dicotomia, o homem teria as competências de ação política em uma esfera pública enquanto a mulher estaria circunscrita a um ambiente privado, do lar, de forma que a guerra, por ser baseada na força e no poder seria masculinizada e a mulher não deveria se envolver. Isso é reforçado historicamente com a exclusão das mulheres da esfera pública: por mais que as mulheres tenham exercido papéis nas guerras, elas são tratadas como secundárias ou nem são analisadas. 

Na América Latina, a luta pela independência e a construção dos Estados Nacionais por meio da profissionalização do exército contribuíram para o processo de reclusão das mulheres ao lar. O afastamento do público contribui para a invisibilidade política e econômica das mulheres, pois tudo que é considerado feminino é colocado como inferior àquilo que é considerado masculino.

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Violência e Poder

A partir da década de 60 as mulheres passam a combater, a se inserir no espaço masculinizado da guerra nas “linhas de frente”, ou seja, quebram a conduta esperada e conquistam espaço no ambiente de guerra. No entanto, isso não significa que o ambiente deixa de ser masculinizado, ou que essa inserção estaria acompanhada da mudança de mentalidade. O machismo continua estabelecendo uma relação de subjugação em relação ao feminino. 

A lógica do patriarcado é transnacional e se mantém historicamente, o poder masculino é exercido pela inferiorização do feminino e a tentativa de sua exclusão das esferas de poder. Isso possibilita diversas formas de violência, das violências privadas/domésticas – que segundo Donny Meertens, são as menos visíveis e mais permanentes – ao uso da tortura como forma de destruição da feminilidade e do estupro como arma de guerra.

Minillo, Mendes, Bandeira e Lages trazem que na Colômbia o imaginário sustenta que as mulheres não têm o mesmo valor que os homens na construção do Estado. Retomando a noção do feminino como complementar e/ou auxiliar, o que se traduz socialmente em menos oportunidades, dependência econômica, dificuldades em obter acesso à educação, jornadas duplas de trabalho, suscetibilidade à obtenção de trabalhos informais e maiores chances de desemprego às pessoas que se identificam com o gênero feminino.

Transgressão e Subordinação

As mulheres na guerra estariam infringindo a conduta esperada, o que seria – para Obregón – um esforço consciente de quebra de estereótipos. É também uma forma de lutar por direitos e por espaço de ação, porém a sociedade machista reage de forma a barrar avanços. Nos conflitos de independência da América Latina, as mulheres atuaram como espiãs, mensageiras e se encarregaram das finanças mas ao formalizar os Estados independentes, as constituições impediam seus direitos plenos de forma a não reconhecer as mulheres como cidadãs e como agentes políticas. Meertens coloca que justamente pela transgressão das normas de convivência pacífica e das normas de divisão sexual do trabalho que elas estão se afirmando como agentes ativas.

Assim, a incorporação das mulheres na guerra é uma transgressão, mas a lógica de inferiorizar os corpos femininos se mantém e, por conta disso, elas podem ser incorporadas em posições de subordinação, como cargos de apoio, com poucas chances de ascender para um papel de liderança e com pouca influência nas tomadas de decisão.

No caso da Colômbia, se estimava que as mulheres compunham cerca de 40% do contingente das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), as FARC foram criadas em 1966 durante a segunda conferência guerrilheira mas as mulheres só começaram a entrar na década dos anos 1980. As FARC se formaram em um contexto de resistência a duas elites que estavam em disputa – os conservadores e os liberais – e que mantinham um sistema agrário oligárquico e excludente, causando guerras civis no país, essas elites se unem apoiando um ditador – General Rojas Pinilla – que treinava o exército e a população civil em nome de uma luta anticomunista, o que leva às FARC a se unirem.

“Elas faziam parte das “guerras civis” colombianas e da contestação violenta da legitimidade do poder … remetiam à experiência recente … a uma memória imediata e, por fim, inseriam-se na experiência contemporânea do radicalismo revolucionário anti-imperialista (…).” (PECAUT, 2008, p.19). (MINILLO e col., 2017, p.311).


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Aderência ao Conflito

O contexto da Colômbia é compreendido como a negligência de um Estado que não têm legitimidade frente a sua população e a violência armada de grupos não estatais. A sociedade colombiana, especialmente nas regiões rurais, coloca a mulher em uma posição muito precária, em relação à condições de trabalho, à ideia do papel da mulher como aquela que cuida do lar, à dependência financeira e à suscetibilidade de sofrer violências por parte do seu parceiro ou outros familiares e também por parte das guerrilhas, uma vez que o Estado não garante segurança.

Com essas condições, as autoras concordam que as mulheres são agentes e decidem se juntar às FARC, elas apontam que as opções de escolha são escassas e trazem alguns motivos que levam essas mulheres – principalmente camponesas – a se unirem à guerrilha. Seriam eles: a possibilidade de escapar da violência familiar/doméstica e de ter segurança, a vontade de viver relações de companheirismo e de solidariedade, a busca por controle sobre as suas vidas, o escape de uma realidade de dependência e de pobreza, a decisão de lutar contra o Estado capitalista patriarcal e o discurso de participação política, tratamento igualitário e de transformação da sociedade que as FARC adotam. Entre eles, se destaca a busca por segurança: 

“Nas FARC, eles não podem tocar em você. Por lei. Os homens não podem bater em você e não só porque é requerido que eles não te toquem, mas porque nós mulheres também carregamos armas, então quando você está lá, os homens te respeitam porque você tem uma arma … Na vida civil há mais violência e mais impunidade e aqueles que cometem crimes não são punidos. Nas FARC, eles são.(…).”(Natalia, combatente entrevistada por MENDEZ, 2012, p. 133-134; tradução livre). (MINILLO e col., 2017, p.317).

Contradições

As mulheres na guerrilha – especialmente as combatentes – desafiam os papéis tradicionais de gênero e às regras de socialização feminina. O discurso de igualdade se materializa nos treinamentos e no ensino de filosofia, sociologia e de combate; nas regras de não agressão entre os membros e também na possibilidades das pessoas, independente do gênero, ocuparem cargos de liderança.

Por outro lado, o discurso de tratamento igualitário é confrontado com contradições pois a guerrilha reproduz violências contra as mulheres que fazem parte do grupo. Isso se dá pois não ocorreu o questionamento dos modelos de masculinidade da sociedade colombiana o que inviabiliza uma modificação em relação às concepções de inferioridade daquilo que é considerado feminino, de modo que para elas ascenderem na hierarquia é necessário um processo de masculinização, pois elas eram vistas como detentoras de uma inaptidão natural que impedia uma igualdade de oportunidade em relação a seus companheiros.

“(…) elas desafiavam papéis de gênero mas era adotando características masculinizadas, que eram valorizadas, que elas poderiam participar de práticas político-militares que … estavam claramente inscritas, em um universo masculino, eram coisas de homens.” (VASQUEZ, 2006, p.354-355 apud COSTA, 2008, p.199, tradução nossa). (MINILLO e col., 2017, p.319).

Elas também ocupavam posições de apoio, que contribuíam para a re-afirmação do lugar da mulher em posições secundárias, cada um na guerrilha precisava ocupar o cargo mais adequado para suas habilidades e a afirmação do machismo da sociedade colombiana os levava a priorizar as mulheres para essas posições pois seriam mais efetivas por serem menos ameaçadoras e por passarem despercebidas.

“(…) as ações dentro da guerrilha tenderam a naturalizar e reproduzir as desigualdades de gênero, direcionando as mulheres a atividades específicas a partir do pressuposto de que elas são fisicamente inferiores, inaptas para atuar de acordo com os ideais de masculinidade militarista.” (MINILLO e col., 2017, p.322).

Manutenção do Patriarcado

Também é possível observar que a mentalidade patriarcal não é quebrada devido a violência militarizada que é cometida contra as mulheres, a normalização de que a violência é necessária para a transformação das concepções referentes aos gêneros acaba perpetuando mais violências, como: ameaças, assassinato, terrorismo, tortura, desaparecimento involuntário, escravidão sexual, estupro, abuso sexual, gravidez forçada, abortos e deslocamentos. Ou seja, é mantida a lógica de objetificação da mulher e a noção de que o corpo masculino exerce poder sobre os corpos femininos, o que é visto pelos casos de violência sexual que os guerrilheiros perpetuam.

Além disso, o corpo feminino entra em uma lógica de controle seguindo as regras das FARC, o que algumas guerrilheiras enxergam como parte da guerrilha abdicar do seu corpo para a causa. Elas não poderiam se relacionar com homens de fora do grupo, para que sua sexualidade não se tornasse uma ameaça – enquanto os homens poderiam se relacionar com mulheres de fora -, assim, havia uma regularização das relações afetivas, sexuais e reprodutivas. Era permitida certa liberdade sexual às mulheres, que poderiam se envolver com quem quisessem mas era obrigatório o uso de métodos contraceptivos, restringindo a liberdade reprodutivas delas, que se ficassem grávidas deveriam abortar ou seriam mortas. Outro ponto que vale ressaltar é que havia uma política de tolerância zero com casos de estupro e de assédio sexual dentro do grupo, porém os comandantes, que são homens muito mais velhos, usavam de sua autoridade e presenteavam meninas a fim de estabelecer relações com elas. O que funcionava como uma relação de proteção que era estabelecida, um exemplo da proteção é referente a gravidez, se ela ficasse grávida poderia seguir com a gravidez.

Dessa forma é possível concluir que a incorporação das mulheres nas FARC possibilitam novos espaços de ação política e são resultantes da agência dessas mulheres mas apesar do discurso anti-patriarcal das FARC, a organização reproduz machismo e violência no tratamento das guerrilheiras e das vítimas das ações da guerrilha.

Referências Bibliográficas 

CAVALHEIRO, Maria T. F.. A mulher no conflito da América Latina: O caso das guerrilheiras das FARC.

MEERTENS, Donny. Las Mujeres y la violencia: conflictos rurales y sus efectos diferenciados por genero. Seminario-taller “Estrategias y acciones para la paz en Colombia” : la paz : miradas de esperanza, Outubro 19-22, 1995, Sasaima, Cundanamarca, Colombia.

MINILLO, Xaman; MENDES, Bianca; BANDEIRA, Luiza; LAGES, Rebeca. Mulheres Guerreiras: questões de gênero na participação feminina nas FARC e sua influência nas negociações de paz na Colômbia. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, Dourados, v.6, n.11, p.305-339,  jan./jun. 2017. 

OBREGÓN, María E. W.. ¿Mujeres en armas: Avance ciudadano o subyugación femenina?. Análisis político, Bogotá, v.18, n.54, p.63-80, maio-agosto 2005.

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