Por Rafaela Prestes e Vitoria Martins
Introdução
Os séculos XX e XXI consistiram em grandes avanços para o movimento feminista na América, desenvolvendo uma melhor estruturação e transnacionalização. Essas movimentações e reivindicações foram refletidas em diversos âmbitos sociais, e o artístico foi um deles. Um dos grandes marcos deu-se a partir dos anos 60 – com força principalmente nos EUA – quando o debate acerca da condição da mulher ganhou profundidade, admitindo que existem diversas mulheres em condições sócio econômicas diferentes e, assim, desenvolvendo recortes de gênero, raça e classe. As reivindicações do feminismo no mundo artístico ganharam proporções e maior visibilidade na América Latina ao longo dos anos e as artistas, cada vez mais, passaram a ocupar espaços e a se manifestar através da arte. Este artigo tem como proposta apresentar tais manifestações feitas através da arte na contemporaneidade, com foco especial no Brasil, trazendo as críticas atuais realizadas pelas próprias integrantes do movimento – apresentando os trabalhos e colocações das artistas: Frida Kahlo, Rosana Paulino e Rosa Luz.
Da esquerda para direita: Rosana Paulino, Rosa Luz e Frida Kahlo
Contexto Histórico
No texto Arte Feminista Latinoamericano da historiadora e artista feminista, Julia Antivilo, na América Latina mais especificamente, o processo de questionamento acerca da representatividade e o papel das mulheres dentro dos movimentos artísticos deu-se principalmente durante a segunda metade do século XX. Nesse período houveram mobilizações de mulheres reivindicando seu espaço dentro da Instituição artística, porém a iniciativa de revisar a história, incluindo as mulheres na mesma, e de criar um campo teórico feminista dentro da arte ocorreu de forma mais lenta, e esta criação tem sido feita buscando uma visão crítica rupturista de diferentes contextos culturais nos quais as obras são realizadas, sendo muito influenciada pela pós-modernidade e teorias desconstrutivistas.
Frida Khalo
Uma das artistas mais conhecidas e impactantes dentro do movimento feminista foi a mexicana e comunista Frida Kahlo (1907-1954), que apesar de ter desenvolvido suas obras entre os anos 30 e 40, com a revisão histórica, a artista passou a se tornar uma figura muito reconhecida na história da arte e, principalmente, um símbolo no movimento feminista nos anos 1990. Frida retratava suas vivências em suas obras, principalmente em suas pinturas, abordando experiências pessoais de uma forma considerada na época muito íntima, e pouco discutidas – como nos quadros Hospital Henry Ford (1932), em que mostra sua experiência com abortos, e em Unos Cuantos Piquetitos (1935), em que retrata um caso de feminicídio.
Hospital Henry Ford (1932)
Unos Cuantos Piquetitos (1935)
Brasil
A Semana de Arte Moderna no Brasil, em fevereiro de 1922, foi de suma importância para a futura construção de uma frente feminista dentro da arte. Além de questionar e provocar a sociedade conservadora paulistana e os valores da família brasileira, o movimento também contou com a participação de mulheres, como Anita Malfatti, Zina Aita e Guiomar Novaes. São consideradas pioneiras não apenas pelo uso de técnicas artísticas que não eram bem vistas para mulheres, mas também por desafiarem e contestarem o comportamento imposto pela sua época, provocando “mudanças no comportamento feminino que só foram ser sentidos anos depois” como afirma Antônio Carlos Abdalla, curador da exposição Tarsila do Amaral. E, apesar de não se considerarem publicamente feministas, assim como ocorreu com Frida Khalo, a participação delas foi considerada de grande importância para o movimento feminista, tanto no âmbito social quanto artístico.
Apesar dos grandes avanços na inserção das mulheres e da construção de um movimento feminista dentro da arte e do pequeno, porém progressivo, aumento do número de mulheres nesse setor, ainda há grande marginalização de vozes dentro do mesmo. Seja por resistência da própria instituição em dar espaço para mulheres que se consideram feministas, como afirma a pesquisadora Roberta Barros, em entrevista para O Globo, “[…] há uma tendência em afastar esse tema dos centros de produção do conhecimento”, ou por demais determinantes sociais ainda mais marginalizados.
Rosana Paulino
A artista, pesquisadora e doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), Rosana Paulino, relata o desafio de ser uma artista mulher negra, e a sua história com a produção e inserção na instituição artística. A artista se destaca pelas suas produções ligadas a questões sociais, étnicas e de gênero, apresentando como foco a posição da mulher negra na sociedade brasileira e os tipos de violência sofridos por esta decorrente do racismo estrutural.
Rosana Paulino conta que levou 21 anos para suas obras serem expostas em uma das instituições tradicionais de São Paulo, a Pinacoteca, além de passar a ter uma presença consolidada no mercado artístico somente nos últimos cinco anos. A artista destaca a dificuldade no mercado predominantemente masculino, branco e eurocêntrico e relata que:
“os desafios de ser artista em um país que desconsidera e, ultimamente, chega a demonizar a educação e a cultura, são enormes para qualquer pessoa. E, quando se trata de mulheres negras, esse desafio triplica”.
“Parede da memória”, Rosana Paulino (Foto: Isabella Matheus)
A falta de representatividade das mulheres também é questionada pela professora Rosa Maria Blanca da Universidade de Feevale, que no texto Artes visuais: diálogos com os estudos feministas, trans e queer faz a indagação: “Por que é tão importante produzir arte sem artistas lésbicas, trans, negras ou indígenas no Brasil?”, e continua afirmando que há um favorecimento da arte que
“não questiona, mas que permite o avanço da produtividade econômica, transformando-se em um suplemento incipiente do sistema neoliberal brasileiro”,
apresentando, a arte contemporânea como uma ideologia. Desse modo, apesar de uma suposta maior representatividade das mulheres dentro da arte institucionalizada, a inclusão de vozes marginalizadas permanece restrita, pois mantém-se a lógica burguesa e branca preexistente e reproduzindo demais opressões ao limitar o acesso de mulheres fora do padrão heterocisnormativo, negras e indígenas à essas plataformas, não reconhecendo-as.
”E nela (na obra) eu pensei em questionar bastante o lugar da travesti nas artes visuais (…) como também na sociedade”. E se a arte fosse travesti?, autorretrato de Rosa Luz, 2015.
A crítica em relação tanto a branquitude quanto à heterocisnormatividade também é feita pela artista, rapper e criadora de conteúdo digital, negra e travesti Rosa Luz. Em um de seus vídeos no youtube, “SP Arte 2018: Por que tão branca?”, no qual conta sua experiência com a exposição, mostra o caráter burguês e branco da mesma, ressaltando o alto valor cobrado pelo ingresso (45 reais), fator que exclui pessoas de baixa renda, marginalizando-as e impedindo acesso à cultura. A artista aponta que este é um reflexo da estrutura da sociedade brasileira, destacando o papel do silenciamento histórico das populações negras, e, afirmando que, quando aplicado à demais interseções, a representatividade fica ainda menor. Nos seus trabalhos questiona e tenta romper com os paradigmas impostos em uma sociedade heteronormativa, elitista e racista. A fotografia é o seu principal meio de se expressar e com um importante papel em sua trajetória.
Para sua pesquisa realizada no Reino Unido, Rosa Luz produziu sua série fotográfica de autorretratos chamada “The Silent Path” (O Caminho do Silêncio) na qual ficou por 15 dias em silêncio usando um vestido de casamento. Como uma maneira de questionar a sociedade patriarcal, que impõe uma posição objetificante, envolve a performance da linguagem corporal, fotografia e audiovisual durante sua produção.
Mulher trans eliminada ou O Brasil é o país que mais mata tavestis e transsexuais no mundo!, autorretrato de Rosa Luz, 2015.
Em sua obra acima a artista afirma ser o marco onde sua arte e ativismo se encontram, pois foi a primeira vez que realmente Rosa Luz dialogou “de uma maneira direta sobre transsexualidade e trouxe um pouco dessa realidade do Brasil ser o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo”.
Considerações Finais
As artes são uma ferramenta de expressão e espaço político, historicamente usada tanto para o questionamento como para a repressão de povos. Dentro do movimento feminista, essa adquiri ambos os papéis, uma vez que dá voz a uma parcela de mulheres – branca e burguesas – enquanto silencia outras – negras, LGBTQIA+s, indígenas e demais mulheres que se encontram na margem na sociedade. Assim, no caso brasileiro, é possível ver que a tentativa de elaborar um movimento representativo e pautado na desconstrução, como idealizado em outra época, não ocorreu de fato. Diversas pautas dos movimentos feministas se refletem, ocupam o mundo artístico e serve-se dele, porém, a representatividade do próprio movimento é questionada pelo mesmo, uma vez que não se realiza uma crítica profunda às opressões sofridas pelas mulheres de diferentes classes, raças e gêneros. Aceitando-se apenas um feminismo – liberal e não inclusivo – dentro da instituição, ocorrendo a manutenção das repressão de vozes, como apontado pelas artistas e estudiosas trazidas ao longo do texto.
Onde acompanhar as artistas?
ROSA LUZ:
intagram: @ros4luz
youtube: https://www.youtube.com/channel/UCCX7dUMgO8_ORxWQ4PU4ISA
ROSANA PAULINO
instagram: @paulino9076
Bibliografia:
BULHÕES, Maria Amélia. Considerações sobre o sistema das Artes Plásticas. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/PortoArte/article/viewFile/27406/15928>. Acesso em: 01 de junho de 2020.
ANTIVILO PEÑA, Julia. Arte Feminista Latinoamericano: rupturas de un arte político en la producción visual. Universidad de Chile. Facultad de Filosofia y Humanidades. Escuela de Postgrado. Santiago, 2013. Disponível em: <http://repositorio.uchile.cl/handle/2250/114336>. Acesso em: 24 de maio de 2020.
TEIXEIRA, Marina Dias. Entrevista: Ser artista negra: o olhar de Rosana Paulino sobre passado, presente e futuro. Disponível em: <https://www.sp-arte.com/editorial/ser-artista-negra-o-olhar-de-rosana-paulino-sobre-passado-presente-e-futuro/>. Acesso em: 27 de maio de 2020.
BLANCA, Rosa. Artes Visuais: diálogos com os estudos feministas, trans e queer. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2015000100177>. Acesso em: 27 de maio de 2020.
canal do YoutTube da artista Rosa Luz: https://www.youtube.com/channel/UCCX7dUMgO8_ORxWQ4PU4ISA.
REVISTA SELECT. Debate com Rosa Luz e Ariel Nobre. Disponível em: <https://www.select.art.br/debate-com-rosa-luz-e-ariel-nobre/>. Acesso em: 18 de junho de 2020.
REVISTA DE FOTOGRAFIA ZUM. A artista Rosa Luz e a representação trans no mundo das artes. Disponível em: <https://revistazum.com.br/entrevistas/rosa-luz/>. Acesso em: 21 de junho de 2020.
CORREIO BRAZILIENSE. Revolucionárias Modernistas. DIsponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/revista/2012/02/19/interna_revista_correio,290116/revolucionarias-modernistas.shtml>. Acesso em: 21 de junho de 2020.
FISCHBERG, Josy. Pesquisadora reflete sobre a relação entre feminismo e artes visuais. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/livros/pesquisadora-reflete-sobre-relacao-entre-feminismo-artes-visuais-18919094>. Acesso em: 21 de junho de 2020.
Rosana Paulino. Disponível em: <https://www.rosanapaulino.com.br/>.
BOLAÑO, Emília. Unos Cuantos Piquetitos. Frida denuncia la violencia machista en esta desgarradora escena. 23 de janeiro de 2017. Disponível em: <https://historia-arte.com/obras/unos-cuantos-piquetitos>. Acesso em: 21 de julho de 2020.
Comments