Por Vitória Martins
Introdução
Desde o fim da Guerra Civil estadunidense em 1885, que colocou fim legal à escravidão, há um movimento para a marginalização e criminalização da população negra nos Estados Unidos. Porém, desde o final dos anos 1960, com a campanha eleitoral de Richard Nixon e os anos seguintes de sua presidência, a associação da população negra ao crime nos Estados Unidos ganhou novas dimensões e agravamentos com a declaração da Guerra às Drogas.
John Ehrlichman, advogado e Assessor para Assuntos Internos do presidente Nixon, chegou a afirmar que
“A campanha de Nixon em 1968, e a presidencia após tinha dois inimigos: a esquerda antiguerra e os negros. […] Nós sabíamos que não podíamos tornar ilegal ser contra guerra ou negro, mas ao fazer o público associar os hippies com maconha e os negros com heroína, e então fortemente criminalizar ambos, nós poderíamos romper suas comunidades. Nós poderíamos prender seus líderes, invadir suas casas, interromper suas reuniões, e os difamar noite após noite no noticiário da noite. Nós sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? É claro que sabíamos.” (Fala tirada do documentário: 13ª Emenda, Netflix – tradução livre).
The 37th President of the United States, Richard Nixon, on a television screen. (Photo by Keystone/Getty Images)
A partir das retóricas racistas mobilizadas por agentes do governo e reproduzidas pela mídia, “na era Nixon e no período de lei e ordem, o crime começa a ser definido pela raça”, como afirmado pela ativista, professora e filósofa marxista e negra Angela Davis. Assim, com a criação do imaginário do “negro traficante” e “negro dependente”, a raça e a violência tornaram-se as principais bases da Guerra às Drogas, baseando-se na lógica de segurança e definindo padrões de conduta racistas vigentes até os dias atuais não apenas nos Estados Unidos, mas também em demais países para os quais este modelo de combate foi exportado, buscando o ataque ao mercado ilegal e o castigo do consumidor. Essa narrativa se aprofundou durante a crise do crack em 1980. seguindo a narrativa racista vigente desde a campanha de Nixon, os corpos mobilizados pela mídia para reportar a crise eram negros e latinos, assumindo ambos os papéis, de comerciantes e consumidores da droga.
A resposta governamental frente à crise foi a extrema criminalização e opressão policial à traficantes e consumidores de crack, baseando-se na securitização do problema. O Congresso dos Estados Unidos estabeleceu uma penalidade obrigatória para o crack bem mais pesada que para cocaína em pó; de acordo com David Dinkins, ex-prefeito de Nova York, normalmente negros e latinos recebiam penas mais longas. Essas medidas foram extremamente responsáveis pela intensificação da visão do “negro traficante” e do “negro dependente”, e resultou em demais problemas sociais como a violência policial e o encarceramento em massa que assolam a sociedade estadunidense. Um estudo realizado pelo Dr. Dan Blaze, pesquisador e professor da Universidade de Duke (Carolina do Norte), evidenciou que jovens negros têm 10 vezes mais chance de serem presos por delitos relacionados à drogas que brancos, apesar de jovens brancos terem mais probabilidade de abusar de drogas do que negros.
Entretanto, a narrativa da securitização é mobilizada dependendo de qual raça é vista como a mais afetada pelas drogas, como é possível ver ao analisar as retóricas construídas por Donald Trump frente à crise dos opióides, que atingiu seu ápice na segunda metade da década de 2010, comparadas com as demais crises de drogas ocorridas anteriormente no território estadunidense. Este artigo propõe uma comparação entre a retórica e as medidas adotadas para o combate à epidemia de opióides e as adotadas em demais epidemias relacionadas à narcóticos. Assim, retomando fatos e compilando dados e análises acerca da política racializada adotada pelo governo federal estadunidense.
Crise dos Opióides
A crise dos opióides nos Estados Unidos chegou a matar mais de 47 mil pessoas apenas em 2017, de acordo com o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças), totalizando cerca de 130 mortes por dia. A epidemia é, comumente, dividida em ondas.
A primeira delas decorre da prescrição desenfreada de analgésicos feitos à base de opiáceos, causadores de dependência química em diversas pessoas, como resultado da intensa atuação das indústria farmacêutica (empresas como Purdue Pharma, Johnson & Johnson, Insys Therapeutics). Essa incentivava médicos a prescrever analgésicos feitos à base de opióides por meio de propagandas enganosas e pagamento de propina, além de realizar intenso lobby no Congresso Nacional estadunidense – chegaram a gastar 250 milhões de dólares, apenas em 2016 para promover seus interesses, sendo uma das indústrias que mais gastam dinheiro com tal prática. A segunda onda ocorreu quando os usuários de analgésicos, já dependentes, pelos mais variados motivos, recorreram à heroína. Segundo um estudo feito pela revista acadêmica JAMA Psychiatry, 75% dos usuários de heroína começaram com os analgésicos feitos a base de opiáceos. Terceira onda veio com o surgimento do fentanil, opióide 100 vezes mais forte que a morfina, que têm seu lado legal e ilegal. Foi comercializado pelas indústrias farmacêuticas também de forma indevida e das mais variadas formas, desde comprimidos até em forma de pirulito. E de forma ilegal, pelo tráfico, que o comercializava como pílulas, mas também o misturava na heroína.
Oxycontin, medicamento a base de opiáceos comercializado pela Purdue Pharma
De acordo com a CDC, as receitas dos analgésicos de opióides – que deram início à epidemia – eram mais prescritas para brancos do que para negros. Devido ao imaginário do “negro traficante” que vinha sendo alimentada pela narrativa da Guerra às Drogas há décadas, médicos acreditavam que caso prescrevessem para negros, esses os comercializariam no mercado paralelo ao invés de consumi-los. Assim, ao contrário do que ocorreu nas demais crises de drogas – por exemplo a de crack nos anos 1980 – o rosto mobilizado pela mídia ao tratar do assunto era o rosto branco e não o negro, uma vez que foram mais afetados pela crise. E a resposta em âmbito governamental para a mesma também foi diferente das exercidas anteriormente.
Uma das regiões mais afetadas pelos opióides são as rurais, como o Rust Belt (Cinturão da Ferrugem) e, de acordo com estudos, os mais propensos a desenvolverem vício eram homens brancos, jovens, desempregados, ainda mais se tivessem histórico de problemas psiquiátricos. A resposta à crise, dada pelo presidente Donald Trump em 2018 foi pautada na securitização no que se tratava do comércio ilegal de drogas, porém, no que diz respeito aos consumidores, foi baseada na saúde.
O chefe de Estado estadunidense pediu para que a FDA (Agência Federal de Alimentos e Medicamentos) para retirar certos opióides do mercado e ameaçou apresentar processos contra pessoas e empresas que atuaram em favor da crise. Mas, acima de tudo, declarou tratar-se de uma emergência de saúde pública, garantindo acesso a fundos federais correspondentes a 1.1 bilhão de dólares, repartidos entre os estados dos Estados Unidos para que estes lidassem com a crise da forma que acharem melhor.
45º Presidente estadunidense, Donald Trump
A declaração de emergência de saúde ainda permitiu que o Departamento de Trabalho fornecesse subsídios para os trabalhadores afetados pelos vícios. O presidente ainda buscou incentivar o acesso à tratamentos por telemedicina, para pessoas em áreas rurais, que foram as mais afetadas, além de prometer elaborar uma comissão para investigar o vício e abuso de drogas.
Tamanho esforço e mudança na forma de tratar o indivíduo dependente, deixando de tratá-los como uma ameaça à segurança e baseando a questão na saúde, foi justificado por trata-se de um “problema sério, como jamais visto”, algo facilmente desmentido pelo diretor de Departamento de Psicologia da Universidade de Colombia, Carl Hart. Em um artigo para o jornal The New York Times, Hart afirmou “começando no final da década de 1960, a crise da heroína se desenrolou de forma semelhante, exceto que o rosto dependente de heroína, então na mídia, era negro”. O mesmo pode ser visto no tratamento da crise do crack na década de 80, que apesar de apresentar demais fatores agravntes à situação também teve o rosto negro mobilizado pela mídia e o discurso político defendendo a criminalização e encarceramento dos consumidores.
Em contrapartida, o discurso direcionado ao combate ao tráfico se intensificou. Donald Trump reinforçou a necessidade de construir um muro na fronteira com o México para dificultar a entrada de heroína nos EUA, e passou a defender a pena de morte para traficantes de drogas como parte do plano para combater a crise, ressaltando que mesmo que não seja possível aplicar tal pena para todos os traficantes, punições mais duras são a única forma de combater o problema. Tais medidas teriam enorme impacto nas populações negras e latinas, uma vez que, como também apresentado por Carl Hart, dados federais mostraram que mais de 80% dos condenados por tráfico de heroína são negros ou latinos, apesar de os brancos usarem opióides em taxas mais elevadas do que outros grupos, e tenderem a comprar drogas de indivíduos dentro de seu grupo racial.
Mesmo que medidas radicais, como a pena de morte e a construção do muro, não tenham sido emplementadas, a diferença no tratamento dos consumidores nas demais crises de drogas comparada à dos opióides nos Estados Unidos é evidente, mostrando as consequências do “negro/latino criminoso” que a Guerra às Drogas acentuou e dissiminou, evidenciando – mais uma vez – seu caráter racista e hipócrita.
Considerações Finais
Como afirmado por Angela Davis, “a Guerra às Drogas é uma guerra contra as comunidades de cor*. Uma guerra às comunidades negras, uma guerra às comunidades latinas.” A criação e intensificação da narrativa da criminalização das drogas ao longo dos anos é responsável pelos mais variados problemas enfrentados pelas populações negras e latinas estadunidenses, como violência policial e encarceramento em massa. No enfrentamento da crise de heroína nos anos 1960 e de crack nos anos 1980, a seletividade da violência organizada pelo Estado já se faz presente e explícita tanto pelas ações de segregação e criminalização frente à negros e latinos quanto por falas e declarações dos próprios governantes. Em contrapartida, a resposta do governo federal para com a crise dos opióides foi pautada pela recuperação e reinserção social do consumidor branco, e violência e criminalização de negros e latinos. A discrepância nas respostas às epidemias de drogas não é acidental, muito pelo contrário, são parte de um projeto de extermínio da população negra institucionalizado pelo Estado na era Nixon por meio da Guerra às Drogas, tanto nos Estados Unidos como em demais países.
* termo usado no debate racial estadunidense, mobilizado pela própria autora.
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Fentanila (Volume 4, ep. 5). Patriot Act with Hasan Minhaj [Seriado]. Criadores: Hasan Minhaj, Prashanth Venkataramanujam. Produção: Hasan Minhaj, Prashanth Venkataramanujam, Jim Margolis, Michelle Caputo, Shannon Hartman e Jennie Church-Cooper. Estados Unidos: Netflix, 2019.
13ª Emenda [Documentário]. Direção: Ava DuVernay. Criadores: Ava DuVernay e Spencer Averick. Estados Unidos: Netflix, 2016.
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