Por Lana Moreira, graduanda em Relações Internacionais pela PUC-SP e bolsista pelo PETRI
Fonte: Ministério do Desenvolvimento e Assistência
No Brasil, foram gastos em torno de vinte bilhões de reais por mês em apostas onlines nos primeiros oito meses de 2024, além disso cerca de vinte e quatro milhões de pessoas fizeram, no mínimo, um PIX de apostas neste período. Uma parcela notável dessas pessoas são os beneficiários do programa social Bolsa Família (PBF) (VIANA, RODRIGUES, 2024).
Em setembro de 2024, o Banco Central do Brasil publicou um estudo sobre as bets (apostas esportivas) no qual revelou que essas receberam três bilhões de reais advindos de beneficiários do Bolsa Família somente em agosto de 2024. O valor dos benefícios sociais direcionados para o PBF é cento e sessenta e oito bilhões de reais, que são distribuídos para aproximadamente vinte milhões de pessoas. Assim, uma família de cinco pessoas pode chegar a receber em torno de mil e setecentos reais (PODER360, 2024). Nessa lógica, cinco milhões de beneficiários do Bolsa Família enviaram três bilhões para as bets o que gerou uma mediana de valores gastos por pessoa de cem reais, o que significa que dois milhões e quinhentos mil apostadores jogaram até cem reais (PODER360, 2024).
Entretanto, o levantamento de dados feito pelo Banco Central do Brasil gera dúvidas se houve algum tipo de fraude, pois se dois milhões e quinhentas pessoas apostaram cem reais a soma seria de duzentos e cinquenta milhões de reais, e se o valor total para as bets foi de três bilhões de reais, o restante dos apostadores pagariam dois bilhões e setecentos e cinquenta mil reais. Todavia,
“ao dividir R$ 2,75 bilhões por 2,5 milhões de beneficiários, o valor médio de cada aposta é R$ 1.100; o valor médio do Bolsa Família em agosto de 2024 foi R$ 681,09; com isso, milhões de pessoas teriam apostado valores superiores ao do próprio benefício, o que poderia ser um indício de fraude” (PODER360, 2024).
Nesse sentido, o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Pedro Ferreira afirma que isso pode ser um indício explícito de lavagem de dinheiro ou de fraude, visto que o PBF é focalizado, o que torna suspeito que existam beneficiários podendo gastar uma alta quantia de dinheiro em bets. Assim,
“é bastante provável que o CPF desses beneficiários esteja sendo usado indevidamente em apostas. Isso já aconteceu anteriormente com o Bolsa Família. Por exemplo, muitos casos de beneficiários que supostamente tinham carros de luxo eram, no fundo, fraudes cometidas por terceiros, que usavam os beneficiários como laranjas” (FERREIRA apud ICL, 2024).
Diante desse cenário, o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad afirma que irá acompanhar através dos CPFs o desenvolvimento das apostas e dos prêmios para tentar impedir a dependência psicológica, daqueles usuários que apostam muito e ganham pouco, e também, a lavagem de dinheiro através de usuários que apostam pouco e ganham muito. Segundo o ministro esse cenário problemático perpassa por questões de saúde pública e de crime organizado (HADDAD, 2024). Ademais, Haddad afirma que medidas, como tirar sites que não possuem regulamentação oficial do ar, devem ser tomadas a fim de proteger a população brasileira de fraudes e golpes dos sistemas das bets que operam irregularmente.
Contudo, a problemática das bets não é uma questão apenas dos últimos meses. Segundo dados do estudo do Banco Central, a população brasileira gastou aproximadamente cinquenta e quatro bilhões de reais entre janeiro e novembro de 2023 com as apostas esportivas on-line” (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2024). Dessa forma, um relatório do Banco Itaú revela que os brasileiros apostaram “R$ 68,2 bilhões nessas plataformas e conseguiram sacar R$ 44,3 bilhões, com uma perda de R$ 23,9 bilhões. A grosso modo, isso significa que a cada R$ 3 aplicados nas casas de apostas, o brasileiro perde R$ 1.” (ICL, 2024). Assim, Deborah Magagna (economista e co-apresentadora do ICL Mercado e Investimentos) afirma que “O brasileiro gasta 2% da sua renda, que equivale a 0,22% do nosso PIB [Produto Interno Bruto], em apostas esportivas” (ICL, 2024).
As bets foram legalizadas em 2018 pelo ex-presidente Michel Temer, contudo a regulamentação das apostas só foi feita em 2023, mas mesmo assim, essa regulamentação não é capaz de conter os danos causados à sociedade e nem uma tributação proporcional ao mercado (DAMASCENO, 2024). Nesse contexto, a advogada e pós-doutoranda Jacqueline Mayer, afirma que uma grande parcela das empresas de apostas online tem sede em outros países e por conta disso está isenta da tributação brasileira. Mas, a partir de 2025 essas empresas deverão estar no país para poder operar e deverão pagar uma taxa de trinta milhões de reais e recolher 12% sobre sua receita líquida. Mayer acredita que as apostas onlines devem ser incluídas no imposto seletivo, também conhecido como “imposto do pecado”, ou seja, na mesma categoria de cigarros e de bebidas alcoólicas, visto que:
“Os dados sobre o perfil dos usuários, o nível de endividamento e os prejuízos ao consumo das famílias, além das questões de saúde mental envolvidas, a meu ver, são absolutamente suficientes para incluir as 'bets' como serviço que traz prejuízos à saúde e, portanto, deve se submeter ao seletivo” (MAYER apud DAMASCENO, 2024).
Outrossim, é necessário pontuar que, de acordo com o Instituto Locomotiva, 86% dos apostadores possuem alguma dívida e 64% estão com o nome negativado. Assim, o que se iniciou como uma tentativa de ganhar dinheiro de forma rápida, pode se tornar um vício consumindo e prejudicando o orçamento e a saúde mental dos usuários (ICL, 2024). Ademais, segundo a PwC, no que se refere ao orçamento familiar das classes D e E, 1,8% deste são representados pelas apostas. Assim, parte do dinheiro que poderia ir para as necessidades básicas vai para as apostas, o que acaba alimentando um ciclo de endividamento, recorrente na população brasileira. Dessa forma, o psicólogo Altay de Souza diz que as bets podem ser entendidas como uma epidemia silenciosa devido a busca incessante por recompensa e satisfação momentânea, o que faz com que os apostadores percam o controle:
o endividamento familiar (25%) e a dependência psicológica (15%) gerada pelas apostas tratam do vício em jogos de azar e de como isso afeta diretamente a saúde mental dos apostadores e suas famílias, com consequências devastadoras, como separações e perda de bens, o que agrava ainda mais a situação econômica (BARCIELA, 2024).
Um fator contribuinte para a popularização dessas apostas onlines são as propagandas. A publicidade acerca das bets, na qual ressaltam a possibilidade de enriquecimento, são mais atrativas para a população em situação de vulnerabilidade financeira (PODER360, 2024). Essa publicidade em massa feita pelos influenciadores digitais tem a capacidade de atrair novos usuários das bets e incentivar comportamentos inconsequentes. Nesse raciocínio, as apostas, além de impactar a sociedade nos âmbitos sociais, psicológicos e financeiros, também estão envolvidas em práticas ilegais de corrupção, lavagem de dinheiro e fraude. A Operação Integration mostra a conexão entre essas práticas e figuras públicas. Assim, a responsabilidade, ou a falta da mesma, por parte desses influenciadores impacta diretamente na vida da população, assim, uma regulamentação acerca dessas propagandas poderiam reduzir os danos causados pelas apostas online.
Ademais, além da falta de regulamentação sobre a publicidade acerca das bets, a falta de regulamentação dessas apostas em si contribui para a perpetuação de práticas ilegais associadas às bets, como a lavagem de dinheiro, e faz com que muitas pessoas que são prejudicadas não tenham para quem ou o que recorrer. Sendo assim, é possível questionar se a justificativa acerca da “arrecadação de tributos é válida se considerarmos as consequências para a saúde, empobrecimento, e todo tipo de malversação dos recursos que essas modalidades trazem consigo?”(SERRANO, 2024).
Outrossim, o estudo do Banco Central também suscitou preconceitos e questionamentos em relação ao PBF, com propostas até mesmo para a rejeição e cancelamento do programa. Contudo, apesar de uma possível interpretação dos dados de modo conveniente a suscitar preconceitos contra os beneficiários do Bolsa Família, a economista e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP), da Universidade Federal do Ceará (UFC), Natália Cecília de França, afirma que a suspensão dos benefícios sociais não seria eficiente e poderia agravar um quadro de vulnerabilidade social e econômica. Assim, o Ministério do Desenvolvimento Social ainda reitera:
“os programas sociais de transferências de renda foram criados para garantir a segurança alimentar e atender às necessidades básicas das famílias, das pessoas em situação de vulnerabilidade. A prioridade sempre será combater a fome e promover a dignidade para quem mais precisa” (G1, 2024).
Por outro lado, França defende a regulamentação rigorosa da publicidade das apostas online, e ainda propõe a proibição de campanhas que usem a vulnerabilidade financeira da população, visto que as apostas online geram vícios e ciclos de endividamento no Brasil, impactando diretamente as famílias brasileiras. Nessa lógica, a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, destacou que as bets causam consequências devastadoras, como o endividamento das famílias, e reforçou a necessidade da atuação do Estado por meio das regulações: “O que se tem, ao menos por enquanto, é um estímulo constante para tomada irracional de decisão, para compulsão, pelas quase onipresentes propagandas, pela liberdade e facilidade de acesso às plataformas.” (EVARISTO apud GARCIA, 2024).
Em relação ao posicionamento do Presidente do Senado e do Presidente da Câmara, respectivamente Rodrigo Pacheco e Artur Lira, estes não se posicionaram logo após a publicação do relatório do Banco Central. A bancada do partido de Lira, o PP, tem forte atuação a favor da “jogatina” no Brasil. Contudo, no início de outubro, Pacheco abriu uma CPI, que teve foi uma iniciativa da senadora Soraya Thronicke, para investigar a influência das bets no orçamento das famílias brasileiras e a possibilidade de associação das empresas de apostas com organizações criminosas que praticam lavagem de dinheiro, além da atuação dos influenciadores digitais na publicidade das bets. Ademais, recentemente Lira se pronunciou contra as propostas de proibição dos usuários do PBF de utilizarem o cartão para apostas em sites de apostas online. De acordo com o presidente do Senado, essas propostas não impedem que o usuário do programa saque o dinheiro e gaste paralelamente nesses sites, além de aprofundar o estigma sobre os beneficiários do PBF. Esse silêncio e posicionamento não devidamente crítico foi em contrapartida com os movimentos observados em Brasília.
O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva destaca a necessidade de mobilização do governo e do Supremo Tribunal Federal para discutir os limites das apostas online. Acerca da regulação, Lula afirma: “Se a regulação der conta, está resolvido o problema. Se não der conta, eu acabo (com as bets), para ficar bem claro” (LULA apud BOECHAT, 2024). Além disso, Lula afirma que é necessário abordar a situação como uma questão de saúde mental: “Tem muita gente se endividando [...] E nós achamos que isso tem que ser tratado como uma questão de dependência. Ou seja, as pessoas são dependentes, as pessoas estão viciadas” (LULA apud AGÊNCIA BRASIL, 2024).
Referências Bibliográficas:
AGÊNCIA BRASIL. LULA. “Tem muita gente gastando o que não tem”, alerta Lula sobre bets. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2024-10/tem-muita-gente-gastando-o-que-nao-tem-alerta-lula-sobre-bets>. Acesso em: 12 nov. 2024.
AGÊNCIA SENADO. Senado terá CPI para investigar as “bets”. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/10/08/senado-tera-cpi-para-investigar-as-bets>. Acesso em: 12 nov. 2024.
Banco Central do Brasil. Análise técnica sobre o mercado de apostas online no Brasil e o perfil dos apostadores. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/conteudo/relatorioinflacao/EstudosEspeciais/EE119_Analise_tecnica_sobre_o_mercado_de_apostas_online_no_Brasil_e_o_perfil_dos_apostadores.pdf>.
BARCIELA, Pedro..ICL Notícias. O debate sobre as bets ganha espaço nas redes sociais. Disponível em: <https://iclnoticias.com.br/debate-bets-ganha-espaco-nas-redes-sociais/>. Acesso em: 20 out. 2024.
BOECHAT, G. Lula sobre bets: “se regulação não der conta, eu acabo”. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/lula-sobre-bets-se-regulacao-nao-der-conta-eu-acabo/>. Acesso em: 12 nov. 2024.
DAMASCENO, B. Golpe contra beneficiários do Bolsa Família pode estar por trás das apostas em bets, dizem especialistas. Disponível em: <https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/negocios/golpe-contra-beneficiarios-do-bolsa-familia-pode-estar-por-tras-das-apostas-em-bets-dizem-especialistas-1.3565873>. Acesso em: 20 out. 2024.
GARCIA, A. N. “Estamos permitindo o cassino no bolso dos brasileiros”, diz ministra. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2024/11/11/audiencia-publica-apostas-esportivas.htm>. Acesso em: 12 nov. 2024.
GIULIANI, M. L. Lira critica propostas que proíbem uso do Bolsa Família em apostas. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/poder-congresso/lira-critica-propostas-que-proibem-uso-do-bolsa-familia-em-apostas/>. Acesso em: 12 nov. 2024.
Governo vai banir uso do Bolsa Família em apostas eletrônicas, diz Haddad. Disponível em: <https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202409/governo-vai-banir-uso-do-bolsa-familia-em-apostas-eletronicas-diz-haddad>. Acesso em: 20 out. 2024.
G1. Apostas online: governo analisa dados e pode proibir o uso do cartão do Bolsa Família para bets. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/09/27/apostas-online-governo-analisa-dados-e-pode-proibir-o-uso-do-cartao-do-bolsa-familia-para-bets.ghtml>. Acesso em: 20 out. 2024.
ICL. Bets: ICL alerta para problema de saúde pública. Disponível em: <https://icleconomia.com.br/bets-icl-saude-publica/>.
ICL ECONOMIA. Governo aposta em regulamentação das bets. Disponível em: <https://icleconomia.com.br/governo-aposta-em-regulamentacao-das-bets/>. Acesso em: 20 out. 2024.
ICL Notícias. O impacto nefasto das bets e o exemplo exitoso das Loterias Federais. Disponível em: <https://iclnoticias.com.br/mercado-de-apostas-no-brasil-o-exemplo-exitoso-do-controle-estatal-das-loterias-federais/>. Acesso em: 20 out. 2024.
O BASTIDOR. Lula acorda para as bets. Disponível em: <https://obastidor.com.br/politica/lula-acorda-para-as-bets-7834>. Acesso em: 12 nov. 2024.
O BASTIDOR. O silêncio de Lira e Pacheco sobre as bets. Disponível em: <https://obastidor.com.br/politica/o-silencio-de-lira-e-pacheco-sobre-as-bets-7843>. Acesso em: 12 nov. 2024.
PODER360. Estudo do BC sobre bets e Bolsa Família deixa dúvidas sobre fraude. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/poder-economia/estudo-do-bc-sobre-bets-e-bolsa-familia-deixa-duvidas-sobre-fraude/>. Acesso em: 20 out. 2024.
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