top of page
Writer's picturePET-RI PUC-SP

A problemática da abordagem vertical da saúde na República Democrática do Congo: o caso do Ebola

Updated: Mar 30, 2021

Foto em destaque: Sergey Uryadnikov / Shutterstock


Por Giovanna Martins e Yasmin Sanches


Na origem da agenda internacional sobre saúde global, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendava aos países a adoção de abordagens horizontais (Declaração de Alma Ata, 1978). No entanto, com os anos 80 e a implementação do neoliberalismo nas mais diversas frentes do Sistema Internacional (SI), a resposta ao campo da saúde passou por um processo de verticalização. A partir dessa contextualização, o presente artigo tem como objetivo a análise da correlação entre a resposta verticalizada a emergências sanitárias, abordando o caso específico do Ebola na República Democrática do Congo (RDC), e a recorrência das mesmas, com a finalidade de demonstrar a baixa eficiência de intervenções pontuais e não-integradas quando se trata de saúde.

Segundo o relatório Horizontal and Vertical Delivery of Health Services: What are the trades offs? (2004) do Banco Mundial, existem duas maneiras de se promover serviços de saúde: através da abordagem horizontal ou da vertical. A primeira contempla as determinantes sociais da saúde, ou seja, o bem-estar físico, mental e social, é ofertada através de sistemas públicos de saúde e prevê a atenção primária integral; já a segunda consiste em intervenções específicas na área da saúde, não integradas ao sistema de saúde como um todo. Como supracitado, desde 1980, com a emergência de graves epidemias e com a má distribuição de recursos nos países (Banco Mundial, 2004), o que tem sido priorizado no SI é a abordagem vertical da saúde.

De maneira que um dos principais impactos dessa política é o abandono de questões estruturais ligadas ao campo da saúde, por exemplo o saneamento básico. De acordo com o Instituto Trata Brasil, “saneamento é o conjunto de medidas que visa preservar ou modificar as condições do meio ambiente com a finalidade de prevenir doenças e promover a saúde, melhorar a qualidade de vida da população e à produtividade do indivíduo e facilitar a atividade econômica”1; essas medidas compreendem, principalmente, o abastecimento e o fornecimento de água potável, a limpeza urbana, o manejo de resíduos e o tratamento de esgoto.

Apesar do discurso oficial da ONU e das tentativas de se firmar, pelo menos discursivamente, um ambiente propício à priorização do saneamento básico, através de iniciativas ligadas ao atingimento do ODS 6: Água Limpa e Saneamento, como o monitoramento através do JMP service ladders2 ou as Diretrizes sobre Saneamento e Saúde da OMS3, a realidade são Estados e Organismos Internacionais, como Instituições e Filantropias, financiando intervenções direcionadas em detrimento de um acesso universal à saúde.

Em termos numéricos, “cerca de 827.000 pessoas em países de baixa e média renda morrem em consequência de água, saneamento e higiene inadequados a cada ano […] Acredita-se que a falta de saneamento seja a principal causa de cerca de 432.000 dessas mortes”4. Há uma profunda relação entre saúde e saneamento5, e a ausência do segundo é responsável não só pelo surgimento bem como pela continuidade de epidemias, como é o caso do Ebola na República Democrática do Congo, onde 53.691 pessoas morreram em decorrência de fontes inseguras de água e de saneamento precário6 em 2017.

O Ebola é uma doença causada por um vírus transmitido através de animais selvagens e espalhado entre humanos por meio do contato direto com secreções e fluídos de pessoas contaminadas ou de seus objetos pessoais. Se encerrou em junho de 2020, segundo a OMS e o governo do Congo, o 10º surto do vírus no país, e uma das passagens da declaração de Tedros Adhanom (Diretor-Geral da OMS) ilustra bem a situação do país “Devemos comemorar este momento, mas devemos resistir à complacência. Os vírus não fazem pausas. Em última análise, a melhor defesa contra qualquer surto é investir em um sistema de saúde mais forte como base para a cobertura universal de saúde”.

Apesar da fala do Diretor-Geral, o surto em questão foi resolvido de maneira pontual, na região afetada, através de rigoroso controle dos contaminados (com teste e isolamento) inclusive com o uso de tecnologia7 e aplicação da vacina8, o que é claro que representou um avanço para o país e demonstrou o maior preparo dos agentes de saúde para lidar com surtos, inclusive com a COVID-19. No entanto, no mesmo mês, na província de Équateur, foi descoberto um novo grupo de casos, e foi declarada o 11º surto da doença no país, com taxa de mortalidade9 de 43%.

Esse ciclo de surtos demonstra a ineficiência, pelo menos à longo prazo, da verticalização da saúde. Segundo o Democratic Republic of the Congo: Improving Aid Coordination in the Health Sector (2015) da OMS, o sistema de saúde da República Democrática do Congo é altamente subfinanciado, com gastos entre 12 e 13 dólares per capita entre 2008 e 2012 e um total de 843 milhões de dólares, valores que, apesar de longe do ideal, já representam uma melhora após o processo de revitalização adotado pelo setor com a adoção do Health System Strengthening Strategy (HSSS)10 em 2005.

Esses valores melhoraram relativamente em 2017, com os gastos em saúde representando 19 dólares per capita. Mas, ainda assim, o sistema público do país é um dos com menor investimento do mundo, a média é de 0,09 médicos a cada mil indivíduos e o acesso à cuidados médicos é ainda mais precário em áreas rurais11. Segundo o USAID (2019), “70% dos congoleses têm pouco ou nenhum acesso aos cuidados básicos de saúde”.

Nesse mesmo sentido, uma das principais escassezes do sistema de saúde da RDC é o WASH, sigla em inglês para Água, Saneamento e Higiene, o que retoma a questão do abandono de questões mais estruturais, por partes de governantes e de doadores12. No país, 33% da população rural não tem acesso à água de qualidade e 71% da população total não possui um sistema de saneamento adequado13.

Devido a um dos principais impactos da abordagem vertical – o abandono de questões estruturais ligadas ao campo da saúde – a solução através dessa verticalização ao surto de Ebola na RDC se mostrou ineficiente a longo prazo. Ou seja, o abandono de questões estruturais por parte de governantes e doadores ao utilizarem e financiarem essa abordagem mais pontual e não-integrada fez com que a epidemia, após declarado o encerramento do 10º surto do vírus no país, tivesse continuidade na República Democrática do Congo.

Em um país em que o sistema de saúde é um dos com menor investimento do mundo e em que muitas pessoas morrem em decorrência de fontes inseguras de água e de saneamento precário, a aplicação da abordagem vertical não serve como solução definitiva de uma emergência sanitária como a epidemia de Ebola justamente pois a ausência de saneamento é responsável pelo surgimento e pela continuidade de epidemias. Por isso, uma abordagem horizontal que contempla as determinantes sociais da saúde é a que deveria ter sido utilizada e financiada pelos governantes e doadores para a solução do surto de Ebola na RDC.

Ademais, a ineficiência a longo prazo da abordagem vertical não é constatada apenas no caso do surto de Ebola na RDC. Num geral, segundo o policy brief When do Vertical (Stand-Alone) Programmes Have a Place in Health Systems? (2008), essa abordagem, por faltar com uma base empírica e por focar excessivamente em ganhos de eficiência, quando implementada, leva à distorção de prioridades e ao comprometimento da responsividade de serviços de saúde às necessidades da população. 

Além disso, num geral, a implementação dessa abordagem mais pontual leva também a fragmentação de serviços, cria barreiras ao acesso, causa desperdício, promove patogênese clínica, social e cultural e impede o acesso a serviços gerais pela maioria da população. Por isso, além de a abordagem vertical afetar seu público alvo, ela gera “efeitos colaterais negativos para a população não-participante ou não-alvo”, além de para o sistema de saúde.

Outro fato é que a abordagem vertical tende a criar grupos com interesses particulares que podem obstruir futuras reformas designadas a integrar serviços, reformas as quais são improváveis de servir aos interesses pessoais das partes interessadas na abordagem. Além disso, ela impede os determinantes mais amplos da saúde e o desenvolvimento de condutas abrangentes necessárias para combater a desigualdade social.

Por fim, a abordagem vertical é menos provável de ser efetiva em casos em que se necessita resposta a condições que têm múltiplas causas ou comorbidades. Ou seja, o fato de a abordagem focar em uma doença prejudica a continuidade do cuidado e a capacidade de resposta às necessidades de usuários do serviço. Portanto, devido a não mobilização de outras partes do sistema de saúde, a abordagem vertical não alcança resultados a longo prazo.

No mais, conclui-se que a verticalização do sistema de saúde, e o consequente abandono das questões estruturais que cumprem um papel de evitar surtos e epidemias patológicas, não são a prioridade nem nacional muito menos internacional, considerando a falta de investimento por parte dos Estados no sentido da construção de um sistema de saúde integrado e o desaparecimento dessa agenda no sistema de cooperação internacional ligado ao campo. Dito isso, o caso do Ebola na República Democrática do Congo, como já dito, é um exemplo dentre tantos que comprovam a ineficiência, a longo prazo, da abordagem vertical da saúde.


Referências Bibliográficas:

ANGIOLETTI, A. e LAMARQUE, S. The role of WASH and Infection Prevention Control in an Ebola Treatment Centre. 38th WEDC International Conference, Loughborough University, UK, 2015.

MEDECINS SANS FRONTIERES. DRC’s eleventh Ebola outbreak. Disponível em: https://www.msf.org/drc-ebola-outbreak-crisis-update. Acesso em: 02 nov. 2020.

NTEMBWA, HYPPOLITE KALAMBAY e LERBERGHE, WIM VAN. DEMOCRATIC REPUBLIC OF THE CONGO Improving aid coordination in the health sector. World Health Organization, 2015.

OXFAM International. Prioritizing Water, Sanitation and Hygiene in Ebola Recovery. Disponível em: https://www.oxfam.org/en/research/prioritizing-water-sanitation-and-hygiene-ebola-recovery. Acesso em: 02 nov. 2020.

THE BORGEN PROJECT. 4 facts about Health Care in the Democratic Republic of the Congo. Disponível em: https://borgenproject.org/health-care-in-the-democratic-republic-of-the-congo/. Acesso em: 02 nov. 2020.

UN NEWS. WHO warns against potential Ebola spread in DR Congo and beyond. Disponível em: https://news.un.org/en/story/2020/09/1072152. Acesso em: 02. nov. 2020.

UNICEF. Water, sanitation and hygiene. Disponível em: https://www.unicef.org/drcongo/en/what-we-do/water-sanitation-and-hygiene. Acesso em: 02 nov. 2020.

UNICEF. Water: an indispensable ally in the fight against Ebola. Disponível em: https://www.unicef.org/drcongo/en/stories/water-indispensable-ally-fight-against-ebola. Acesso em: 02 nov. 2020.

WHO. Ebola in the Democratic Republic of the Congo 2020. Disponível em: https://www.who.int/emergencies/diseases/ebola/ebola-health-update—%C3%A9quateur-province-democratic-republic-of-the-congo-2020. Acesso em: 02 nov. 2020.

WHO. Ebola virus disease. Disponível em: https://www.who.int/health-topics/ebola#tab=tab_3. Acesso em: 02 nov. 2020.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. 10th Ebola outbreak in the Democratic Republic of the Congo declared over; vigilance against flare-ups and support for survivors must continue. Disponível em: https://www.who.int/news/item/25-06-2020-10th-ebola-outbreak-in-the-democratic-republic-of-the-congo-declared-over-vigilance-against-flare-ups-and-support-for-survivors-must-continue. Acesso em: 02 nov. 2020.

WHO. When do Vertical (Stand-Alone) Programmes Have a Place in Health Systems? Disponível em: https://www.who.int/management/district/services/WhenDoVerticalProgrammesPlaceHealthSystems.pdf.

2 views0 comments

Comments


bottom of page