Em estudo divulgado em 24 de abril deste ano, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) divulgou que de 2000 a 2013 foram registrados 1.758 casos relacionados a tráfico de pessoas no Brasil. O estudo foi feito com base em informações obtidas por meio de consulta às unidades do Ministério Público, entre os meses de junho e setembro de 2013 e baseou-se nos casos registrados, judicial ou extrajudicialmente, em oito tipos legais relacionados ao tráfico de pessoas previstos pelo Código Penal Brasileiro. Campanhas nacionais e internacionais e projetos de lei contra o tráfico humano estão sendo discutidos em quase todo o país nos últimos meses. O tráfico de pessoas, considerado uma forma moderna de escravidão econômica e sexual, apresenta-se como um dos desafios contemporâneos mais complexos e urgentes da agenda de direitos humanos. A escala deste crime, que explora em todo o mundo mulheres, crianças e homens para vários fins (incluindo trabalho e sexo forçados, além de venda ilegal de órgãos), é notoriamente difícil de determinar. Estimativas globais variam de 500.000 a vários milhões de pessoas traficadas por ano e que o tráfico humano movimente cerca de 32 bilhões de dólares anualmente. De acordo com o UNODC – Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime, vítimas de 136 nacionalidades diferentes foram detectadas em 118 países entre 2007 e 2010. Neste mesmo período, foram identificadas cerca de 460 rotas de tráfico. Ainda segundo dados do UNODC, o tráfico para fins de exploração sexual é mais comum na Europa, Ásia Central e nas Américas. Já o tráfico para trabalho forçado é mais frequente na África, no Oriente Médio, no Sul e no Leste da Ásia. O número de condenações domésticas por tráfico de pessoas é, em geral, muito baixo: dos 132 países abrangidos no Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas (2012), 16% não registrou uma única condenação.
Uma história de poder e vulnerabilidade Dentro deste quadro, é alarmante a situação posta pelo tráfico de mulheres e crianças. Segundo o Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas (UNODC, 2012), entre 2007 e 2010, mulheres constituíam a maioria das vítimas de tráfico de pessoas, representando de 55% a 60% de todas as vítimas. Somando-se mulheres e meninas essa proporção chega a cerca de 75%. Enquanto dados apontam para um leve decréscimo no número de mulheres traficadas, o tráfico de crianças parece estar aumentando. Das vítimas cujo perfil etário era conhecido e reportado no período 2007-2010, cerca de 27% eram crianças, contra cerca de 20% no período 2003-2006. Entre estas vítimas, duas de cada três eram meninas. Apesar das dificuldades de criação e coleta de informações e dos possíveis desvios de estimativas, o tráfico para fins de exploração sexual tende a superar estatisticamente o destinado a trabalho escravo.
Prerfil da vítimas de tráfico internacional segundo gênero e idade
Os padrões do tráfico de pessoas são em grande medida reflexo dos padrões de opressão e exclusão constituídos dentro das e pelas próprias sociedades. Retratam uma história de poder e vulnerabilidade. Sexo, idade, origem etno-linguística e pobreza são por si mesmos explicações insuficientes de vulnerabilidade, mas eles tendem a se tornar fatores de fragilidade se forem motivos de discriminação do resto da comunidade. O perfil mais comum de um traficante é o de um homem nacional do país onde a exploração ocorre; o das vítimas, é o de mulheres e crianças estrangeiras e muitas vezes de origens caracterizadas pela privação econômica e/ou de falta de oportunidades de emprego. Se estamos em uma sociedade dominada por quem é homem branco bem nascido (para não contar os demais elementos de classificação social aos quais nos submetem cotidianamente) e em que todo aquele que fuja de algum desses parâmetros está de uma forma ou de outra excluído, é de se esperar que no cenário de tráfico de pessoas a mesma lógica persista: meninas e mulheres, geralmente de origem desfavorecida, sendo traficadas para a exploração de seu corpo, pois nem este a elas pertence. As desigualdades de gênero no acesso à educação e a oportunidades de trabalho, no acesso a um sistema judicial justo e oportuno ou à realização dos direitos humanos e sociais, são alguns dos indicadores da situação vulnerável em que essas mulheres se encontram. Como afirma Tânia Teixeira Laky de Sousa, pesquisadora do NEPI (Núcleo de Estudos sobre a Identidade) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP, o tráfico de mulheres para fins sexuais é uma releitura da escravidão. As vítimas do tráfico são, antes de tudo, vítimas do abandono social, sem perspectiva de trabalho, acompanhamento médico ou acolhimento social: “Os gastos com alojamento, transporte, alimentação e bebidas, patrocinados pelas redes de tráfico, as mantém endividadas. Para pagar, fazem uma quantidade desumana de programas, dormem pouco, adoecem, vivem em depressão, tornam-se alcoólatras e viciadas. Quando conseguem voltar estão doentes, com AIDS, HPV, mas não recebem tratamento específico. Também faltam casas-abrigo para elas.”, afirmou. Mesmo repetida inúmeras vezes, doméstica e internacionalmente, desde aspectos “pequenos” até outros tão expressivos quanto os números do tráfico de pessoas, tal violência ainda permanece invisível para a maioria. Cegueira confortável e propositada. Instrumento de uma estrutura opressora habilmente mantida. É preciso transformar esses padrões, otimizar o uso dos marcos legais existentes (como o Protocolo Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças), monitorar e conscientizar a sociedade em geral para isso. Os resultados do tráfico humano podem estar na casa pela qual você passa todos os dias, nas roupas que está vestindo, na história da mulher que agora cruza a rua. Não são apenas números e não podem ser convenientemente invisíveis.
* todos os dados levantados pelo UNOCD aqui expostos estão disponíveis no Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas, 2012. Disponível em http://www.unodc.org/unodc/data-and-analysis/glotip.html
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