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Por Rafael Jonathan Araujo Vitor
INTRODUÇÃO
Os certificados internacionais têm como intento atestar que algo seja verdadeiro, quem certifica avoca-se responsável sobre o que declara. Essa informação é utilizada por um consumidor final de um produto que verifica a prudência, qualidade, processo, gestão ou política mediante uma certificação. Os certificados internacionais podem aparecer em forma de selos. Exemplificando, dois selos internacionais conhecidos são o Kosher e o Halal, que são responsáveis por indicar à comunidade judaica e muçulmana os alimentos que obedecem às suas respectivas dietas religiosas.
Diante do fenômeno da governança global em que ocorre uma dinâmica entre atores de naturezas diferentes para obter uma solução, os certificados internacionais aparecem como uma alternativa à autoridade governamental. Nesse artigo será feita uma análise sobre qual a função e qual a prestação de contas que uma certificação deve assegurar diante das empresas e da sociedade civil; e também entender qual o nível de responsabilidade por problemas ocorridos é atribuído a essas instituições. Foram abordados três casos de certificações internacionais que acercam o meio ambiente, e que se comportam de formas diferentes quando os comparamos. Os autores de governança debatem se esse modelo é positivo ou negativo, o primeiro case exemplifica um modelo que se encaixa na teoria positiva da governança, o segundo e o terceiro case se encaixam e exemplificam a crítica, demonstrando que esse modelo possui falhas.
A “governança refere-se a atividades apoiadas em objetivos comuns, que podem ou não derivar de responsabilidades legais e formalmente prescritas e não dependem necessariamente, do poder de polícia para que sejam aceitas e vençam resistências” (ROSENAU, 2000). A governança é pautada em um modelo democrático e consensual, em que as partes interessadas conseguem negociar uma decisão (antes o Estado era a autoridade central) e “agora certas funções da governança estão sendo executadas mediante atividades que não tem origem nos governos” (ROSENAU, 2000), como por exemplo controle, fiscalização e atribuindo asseveração. As instituições que passam a realizar essas funções possuem mais legitimidade que o Estado pois as decisões são tomadas por uma certa horizontalidade.
CERTIFICADOS E MODELOS DE GOVERNANÇA
O primeiro selo é o FSC (Forestry Stewardship Council): uma certificação que apresenta uma alternativa contra a exploração predatória das florestas, e possui a visão de que as florestas devem cumprir os direitos sociais, ecológicos, econômicos e as necessidades da geração presente sem comprometer as gerações futuras. Formulada diante uma imprecisão nas conferências do Rio-92 e da Agenda 21 que são referentes às políticas e procedimentos sobre o reflorestamento; ambientalistas, ONG’s, empresários e instituições estatais se associam e criam o FSC. Esse modelo de governança aparece como resposta as conferências que tiveram resultados insatisfatórios.
A aplicação e experimentação desse modelo foi nos jogos olímpicos em Londres em 2012, onde mais de dois terços da madeira do Parque Olímpico e 98% da madeira da Vila Olímpica estavam certificados com FSC (LEARNING, 2011). O certificado basicamente estabelece uma “rotação” de áreas delimitadas para a extração de madeira, e possui regras claras de gestão, importante destacar que o processo de certificação só é concluído quando toda a madeira chega ao fornecedor, e são necessários notas fiscais, data e informações importantes de toda a cadeia de custódia, e todas essas informações são armazenadas em um banco de dados.
O mais relevante desse certificado é que ele possui um monitoramento mensal de toda a madeira registrada, isso demonstra a preocupação do selo em acompanhar todo passo-a-passo desde entre a derrubada de árvores até o consumidor final. O FSC ganhou credibilidade por ter processos claros e transparentes de avaliação e gestão, e por ter participado de um megaevento internacional (Jogos Olímpicos, Londres) servindo como modelo para extração de madeira. Apesar de receber algumas críticas, por causa de diferentes tipos de certificação, continua sendo referência em certificação ambiental.
O certificado FSC é um exemplo de como um modelo de governança o qual participam: o Estado; as empresas; as ONG’s; e a sociedade civil funciona. Para Rosenau, a governança surge como uma evolução dos regimes internacionais, o qual apenas participam os Estados, e assim ocorre um esvaziamento dos mecanismos de controle estatais, pensando sob parâmetros liberais Rosenau acredita que esse processo é positivo.
A autora Wendy Brown discorda e afirma que “uma racionalidade que governa enquanto opera discursivamente, excede essa ênfase para capturar a forma como a ‘normative order of reason’ (uma razão de ordem normativa) vem para governar legitimamente, como uma estrutura da vida e da atividade como um todo”(BROWN, 2015) assim a governança legitima outras formas de controle, sem ser a estatal, mas o controle não se esvazia ou deixa de existir.
O segundo certificado internacional é o Pró-Terra que atesta a produção de soja brasileira para a exportação, abrange tanto a qualidade da soja quanto responsabilidades com meio ambiente e políticas de direitos humanos. Dentro das responsabilidades com os direitos humanos o selo se baseia nos Tratados Internacionais dentre os critérios estão o não uso de trabalho escravo, trabalho forçado, trabalho infantil e de métodos coercitivos; regulação das horas extras de trabalho, e os contratos de trabalho claros e completos em uma linguagem compreensível pelo trabalhador; o uso da terra não deve interferir com os sistemas de produção agrícola de vizinhos e disputas pelos direitos de terras devem ser solucionadas antes que a certificação possa ser concedida. Os critérios ambientais ainda descrevem a manutenção da biodiversidade, conservação da água por conta de agrotóxicos, redução de emissões de gases e utilizar fontes renováveis de energia e controle de queimadas.
Quatro empresas brasileiras certificadas com o selo internacional Pró-Terra, sendo elas uma cooperativa e três grandes exportadoras de soja, se envolveram com problemas de trabalho escravo, desmatamento ilegal, agrotóxicos proibidos e casos de produção de grãos em terras indígenas Guarani e Kaiowá, gerando conflitos de terra no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Os indígenas afirmam que o cultivo ocorre por meio de arrendamentos de terra para pessoas de fora da comunidade, o que é considerado ilegal pelo Ministério Público Federal.
A certificação Pro-Terra não informou se as empresas são produtores certificadas com o selo, pois as informações das fazendas auditadas são confidenciais por cláusula contratual; o que dificulta o acesso informação, pois não deveriam existir dúvidas sobre se a empresa é certificada ou não. O selo Pro-Terra também informou que “o certificador não tem poder de polícia para impor sanções legais a qualquer organização”, e que seu trabalho é motivar os produtores mostrando como eles podem cumprir a legislação e alcançar eficiências e uma melhor posição no mercado por meio de práticas sustentáveis.
As ONG’s norueguesas Framtiden I Våre Hender (FIVH) e Rainforest Foundation Norway (RFN) realizaram um relatório analisando os critérios de transparência, governança e meio ambiente adotados pelo selo Pró-Terra e apontou baixos níveis de transparência em comparação com muitos outros sistemas de certificação; falta de independência, critérios ambientais vagos, e critérios fracos em relação ao uso de pesticidas. Um dos motivos para essa avaliação é que a metodologia de auditoria realizada pela certificação é por amostragem, de acordo com o volume e produção, então é escolhida uma amostra aleatória para ser auditada; dessa forma esse processo tem mais chances de apresentar imprecisões.
O terceiro certificado é o ISO (International Organization for Standardization), é uma Organização Internacional com 162 Estados, divididos em membros integrais e membros correspondestes que tem como objetivo estabelecer meios de facilitar internacionalmente a coordenação e unificação de padrões industriais. A ISO 1400 e suas normas (14001, 14004, 14031, 14021…) tratam de gerenciamento ambiental, indicando às empresas o que devem fazer para minimizar os impactos ambientais de suas atividades e melhorar continuamente seu desempenho ambiental (ISO, s.d.). Dentre seus critérios estão a redução do uso matérias-primas e de energia, redução de lixo, diminuição de poluentes, e boas práticas de interação com o meio-ambiente.
O Brasil se destaca em número de empresas que possuem a certificação 14001, principalmente quando comparado aos outros países da América Latina. Alguns órgãos governamentais brasileiros participam da implementação burocrática da norma como a ABNT, e o Inmetro. Uma das empresas brasileiras que recebem o selo é a Vale, uma empresa privada, de capital aberto, com sede no Brasil e presente em cerca de 30 países. Foi a primeira companhia de mineração do mundo a ter uma unidade certificada pela ISO 14001, adotando desde 1994 o Sistema de Gestão da Qualidade Ambiental (SGQA) em suas unidades operacionais: minas de ferro, usinas de beneficiamento, unidade de pelotização e portos (VALE, s. d.).
Em 1997 a empresa que era estatal se tornou privada, e passou a causar diferentes impactos nacionalmente e internacionalmente, dentre os países que a Vale apresentou conflitos estão Moçambique, Canadá, Peru, Indonésia, Argentina e Nova Caledônia. Os conflitos variam entre conflito de terras, despejo de resíduos, direitos trabalhistas e envolvimento com milícias. Dois exemplos descrevem brevemente como estes conflitos associados a falta de fiscalização impactam no ambiente e na vida das pessoas.
No município de Mariana em Minas Gerais (Brasil), em 2015 ocorreu o rompimento de uma barragem da Vale que provocou uma enxurrada de lama com rejeitos de mineração, cerca 62 milhões de metros cúbicos que destruiu três municípios, 600 famílias perderam seus lares e bens materiais. A água da região se tornou imprópria para o consumo, atingiu comunidades indígenas como a tribo Krenak, e ocasionou a morte de dezenove pessoas.
Depois de três anos, uma outra barragem rompeu no município de Brumadinho, também em Minas Gerais em janeiro de 2019, o mar de lama deixou 259 mortos e 11 pessoas ainda desaparecidas (números em atualização), a lama destruiu casas e propriedades rurais, e a área administrativa da empresa. A barragem vazou 12 milhões de metros cúbicos, os dejetos atingiram rios e uma bacia hidrográfica responsável pelo abastecimento de água em Belo Horizonte. Trabalhadores, sociedade civil e ONG’s se articularam para enfrentar a situação, se dividiram em processar judicialmente a Vale e oferecer ajudar social os afetados em diferentes tarefas; por exemplo em arrecadação de dinheiro e busca de corpos. Duas situações de grande impacto ambiental e social que ocorreram por uma mesma empresa certificada.
CONCLUSÃO
As empresas certificadas pelo selo Pro-Terra e ISO demonstram fuga da norma estabelecida, mesmo com a opção de aderirem ou não a certificação, o desenho da norma ainda é maleável e cria opções de escape (SASSEN, 2006), porém aderindo a norma essas empresas ganham acesso a uma plataforma internacional, atraindo negociações, capital e investimentos. Assim essas empresas continuam legitimadas no mercado, informando que não demonstram riscos, mas as suas atividades prejudicam ou podem prejudicar a população, principalmente onde as empresas estão localizadas territorialmente.
A pesquisa indica uma falta definição dos certificados internacionais na literatura, sendo que alguns agem apenas como informador da norma ambiental, como Pró-Terra, e outros agem como fiscalizadores com acompanhamentos mais rígidos, como o FSC. Na prática, caso o certificado seja definido como agente de fiscalização, e relatasse um problema que vai de encontro às normas, a certificadora iniciaria um processo de arbitragem e caso o problema não seja resolvido o selo deveria ser retirado, e a empresa seria denunciada e precisaria prestar contas e reparar danos para que tivesse novamente o certificado.
Diferentes certificações foram debatidas nesse texto, de diferentes ramos ambientais: extração de madeira, plantação e extração de soja e mineração. As certificações são transformadoras no sentido que maximizam a visão empresa para os temas ambientais e de direitos humanos, e também auxiliam em como colocar esses processos em prática.
Diante dos exemplos, o que se mostra mais eficaz é quando existe uma instituição dentro do modelo que represente a população, que pode ser via Estado ou sociedade civil organizada, e que tenha um certo nível de hierarquia para conseguir impor sanções, equilibrando o controle de cumprimento das normas, pois “os arranjos de governança favorecem a flexibilidade em vez da rigidez, preferem medidas voluntárias do que regras obrigatórias e privilegiam parcerias com atores individuais ” (JANG, 2016). E mesmo assim, também pode ocorrer que a instituição representante não esteja alinhada com os interesses da população.
Assim, quando temos um modelo de governança não necessariamente irá resultar em uma real efetividade do seguimento das normas, como aqui exemplificado, deve-se analisar cada modelo, principalmente a aplicação desse modelo nos diferentes setores, a sua interação com a comunidade e o tipo de dano gerado.
Texto referente ao ciclo temático: “Governança, direitos humanos e conflitos socioambientais” do semestre 2018.2 (06/2018 – 12/2018)
BIBLIOGRAFIA:
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JANG, J., McSparren, J. & Rashchupkina, Y. Global Governance: present and future. Palgrave Commun 2, 2016.
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SASSEN, Saskia. Denationalized state agendas and privatized norm-making. In: Territory, Authority and Rights: from medieval to global assemblages. Princeton: PUP, 2006.
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