O tema da palestra de uma quinta-feira de manhã, na XII Semana de Relações Internacionais da PUC-SP, é difícil e muito emblemático, os 50 anos do Golpe de 64: Heranças da Ditadura e Justiça de Transição. Mesmo tendo passado 50 anos do golpe, as cicatrizes da Ditadura Militar, para utilizar a metáfora a que se referiu a Profª Drª Vera Karam, ainda perduram abertas e fazem desse assunto uma temática mais do que nunca atual e absolutamente relevante para se discutir e se refletir sobre o cenário brasileiro. É justamente sobre esse não esquecimento da Ditadura e a reconstrução da democracia que os integrantes da mesa, a Profa. Dra. Vera Karam, o Dr. Renan Quinalha e a Profa. Dra. Marijane Lisboa, bem como a mediadora Profa. Cláudia Marconi fazem as suas contribuições à palestra.
A mesa se inicia com a Profa. Dra. Vera Karam e sua narrativa constitucional brasileira durante os anos da Ditadura, demonstrando categoricamente a violência com a qual o golpe se opôs e depôs a ordem constituinte àquela altura (Constituição de 46), bem como a forma maliciosa com a qual os golpistas declaram o seu conjunto peculiar e específico de normas militares que vigoraram no Brasil no período ditatorial, seja por meio da Constituição de 67, a de 69, ou pelos Atos Institucionais, deixando suas marcas fincadas na história do país. A profa. ainda acrescenta que é justamente sob o enunciado de um pretenso Estado de Exceção e da declaração de que aquele modelo ditatorial era uma guerra que no fim traria justiça, que os perpetuadores da ditadura firmavam sua justificativa do sacrifício à vida. A Profa. Karam conclui com uma provocação pertinente: Como nos curar das feridas da ditadura, se ainda em nossa sociedade atual, perpetuam regras infra-constitucionais que remetem àquela época, a exemplo do Código Tributário e o Sistema Financeiro Brasileiro? Como nos curar das feridas da ditadura se a relação da força militar e da policial, fortalecidas naquele período, estão institucionalizadas e emaranhadas no “modus operandi” da polícia militar? Será que as medidas de justiça de transição serão apenas “anti-inflamatórios” às feridas dos anos ditatoriais, ou de fato promoverão uma cicatrização um pouco mais consistente?
O Dr. Renan Quinalha, por outro lado, inicia sua fala nos dando dois casos: um homem branco torturado e morto na ditadura, mais tarde revelado como Rubens Paiva e um negro torturado e morto pela PM em 2013, mais tarde revelado como Amarildo. As circunstâncias das mortes são as mesmas, mesmo com uma diferença de 40 anos entre os episódios. Com isso, Dr. Quinalha indica que não existem apenas “sobras” da ditadura, mas heranças concretas que, sob o véu da ideia de conciliação, se refletem nas escolhas da democracia hoje vigente. Fala de um sistema de justiça,como um todo, que reproduz a violência da ditadura. Relembra, por exemplo, da repressão aos movimentos sociais, duramente punidos durante a ditadura, e que hoje também são duramente punidos pela PM. Fala da importância da justiça de transição no Brasil e a caracteriza como lenta, gradual e segura.
Por fim, a Profa. Dra. Marijane Lisboa, finaliza a mesa nos falando sobre a justiça de transição e como sua ocorrência deve ser resultado de uma luta política e não, simplesmente, uma política pública. Compara o caso brasileiro à Alemanha no final da 2ª Guerra e às experiências de justiças de transição no Chile e na Argentina. A profa. nos fala no papel da justiça de transição em recuperar memórias, reparar, fazer a justiça e, por fim reformar as sociedades nas quais atrocidades aconteceram, reforçando a importância deste último quesito. Lembra-nos que apesar da vontade de esquecer e ignorar episódios difíceis como a ditadura, ou as atrocidades do nazismo, é preciso que se assuma uma culpa, uma responsabilidade política, moral e metafísica para que a justiça de transição seja eficaz e para que cumpramos com o dever da sociedade e satisfaçamos o direito das vítimas de reconstituição da memória.
Assim, nessa manhã de quinta-feira, nós, não apenas ampliamos nossa compreensão sobre o período ditatorial brasileiro, mas começamos um exercício da justiça de transição. Livramo-nos do pretexto da conciliação e revivemos a memória, pensando em como repará-la e reformar a sociedade, afinal são 50 anos do Golpe de 64, mas seus estragos ainda não foram reparados. Como bem nos lembrou Dr. Renan Quinalha, as torturas e a repressão perpetuam e trazê-los à tona para puni-los e eliminá-los faz parte da cura, ou ao menos da cicatrização da ditadura que tanto feriu a história brasileira.
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