Por Laísa Nakamura e Larissa Pinz
Estar saudável, conforme definido pela Organização Mundial da Saúde, se refere a uma saúde positiva, um “estado de bem estar físico, mental e social, [e] não somente a ausência de doença ou enfermidades”1. Seguindo essa definição, ao pensar sobre o acesso e condições de saúde das mulheres centro-americanas que migram em caravanas de migrantes rumo aos EUA percebe-se que as dificuldades enfrentadas não surgem somente durante a jornada, mas são desafios enfrentados desde seus países de origem que, direta ou indiretamente, motivam o deslocamento e influenciam as necessidades de saúde destas.
Para compreender-se os desafios enfrentados pelas mulheres migrantes durante a jornada é necessário analisar a complexa relação entre acesso à saúde, mulheres e a Caravana de Migrantes desde antes do início da mobilidade. Isto porque os motivos que levam à decisão por migrar, bem como suas experiências em seus países de origem, possuem impactos duradouros sobre a saúde destas mulheres. Assim, deve-se fazer uma análise em nível corporal, considerando as vulnerabilidades dos corpos das mulheres migrantes, que excluídas das formas de transporte seguras e ao acesso à saúde, exercem a mobilidade.
As mulheres no Triângulo Norte: assustador de se viver e perigoso de se deixar
Os migrantes da América Central viajam cerca de 3.640 quilômetros em caravanas, saindo de países como Honduras, Guatemala e El Salvador rumo ao norte da fronteira do México com os Estados Unidos. Milhares de pessoas se juntam, caminham e enfrentam diversos tipos de obstáculos e opressão no decorrer de seu trajeto porque permanecer em seus países de origem é ainda pior. Conhecida como Triângulo do Norte, a região da América Central que abrange os países Honduras, Guatemala e El Salvador, está entre os cinco países com maiores taxas de feminicídio do mundo.
Triângulo Norte (Northern Triangle) é composto por Guatemala, El Salvador e Honduras. (Foto: iStock)
A primeira caravana de migrantes com destino aos Estados Unidos saiu de São Pedro, Honduras em outubro de 2018. Desde então, ao menos outras 9 caravanas deixaram países da América Central, buscando fugir da falta de serviços de saúde, da violência, fome e mudanças climáticas que se agravaram na região nos últimos anos. Enquanto uma parte dos indivíduos se vê forçado a migrar em busca de melhores oportunidades econômicas, a outra, composta majoritariamente por mulheres e crianças (dois dos grupos mais vulneráveis do Triângulo Norte), migra procurando por refúgio da violência e da insegurança de seus países de origem – na expectativa de conseguir nos EUA o direito de asilo.
Vítimas de estupro, sequestro, tortura e violência doméstica, as mulheres centro-americanas talvez possuam o maior motivo para deixar a região, e muitas estão buscando segurança de seus próprios maridos ou parceiros, pois enfrentam sistemas e hierarquias que incidem em seus corpos os efeitos dessa relação assimétrica de poder. Em um relatório da ACNUR, Women on the Run, 64% das mulheres refugiadas da América Central e do México entrevistadas descreveram ameaças diretas e ataques por grupos criminosos armados como uma das principais razões para sua migração, e 58% deram relatos de agressão sexual e abuso sexual. Além de não receberem qualquer apoio das autoridades centro-americanas para sua proteção, os crimes não são investigados e os abusadores não são punidos, em 2016, 98% dos casos de feminicídio não foram resolvidos. Em todo o Triângulo Norte, os esforços para mitigar a violência de gênero, fornecer cuidados aos sobreviventes e lidar com a desigualdade de gênero têm sido insuficientes.
“Um homem contratou membros de gangue para nos ameaçar, para assim retirarmos a denúncia contra ele. Caso contrário, ele iria me estuprar novamente. Naquele momento, decidimos sair à meia-noite e ir para o norte.” Maria (pseudônimo), uma menina em El Salvador
A forte presença de gangues em Honduras, Guatemala e El Salvador também se constitui como uma ameaça direta à saúde e ao bem-estar das mulheres e crianças da América Central. As organizações criminosas controlam bairros inteiros das cidades, bem como a distribuição local de produtos de consumo, e exercem influência sobre políticos. Dentre as ferramentas para manterem seu poder estão a extorsão, assassinatos, violência sexual contra mulheres e meninas, e o recrutamento forçado de crianças. Essa violência patrocinada pelos Estados tem sido uma característica marcante da história do Triângulo Norte até o presente gerando uma insegurança social em seus países. É necessário destacar o impacto que a violência urbana possui na saúde, principalmente dos grupos mais vulneráveis, tanto ao criar entraves ao acesso de serviços de saúde quanto deteriorando a longo prazo a saúde mental das mulheres dado o medo persistente e a ansiedade crônica, por exemplo.
“Experimentamos e vemos violência em todos os lugares. A saúde não concerne apenas com o que está acontecendo com um indivíduo em termos de problemas de saúde psicológica ou física. A saúde também abrange o que está acontecendo em nível de família, comunidade e país. Saúde significa experimentar paz dentro de nossa família, nossa comunidade e nosso país. Saúde é paz e bem-estar geral. Não experimentamos saúde aqui.” Coralie, mulher guatemalteca entrevistada pela revista internacional Environmental Research and Public Health.
É devido a esse ciclo de violência que centenas de milhares de mulheres são deslocadas à força de suas casas e atravessam fronteiras em busca de proteção em países vizinhos ou nos Estados Unidos. Assustador de se viver e perigoso de se deixar, as mulheres dos países do Triângulo Norte muitas vezes se veem sem escolha. Ao sofrerem abusos sexuais e ameaças de mortes, caminhar mais de 3.640 quilômetros é a única esperança de proteção, segurança e saúde que encontram para elas e seus filhos.
“Se você está fugindo de uma casa em chamas, mas corre o risco de enfrentar mais perigo em seu caminho conforme foge do incêndio, você ainda vai fugir, independentemente do que esteja em seu caminho. Essas mulheres estão fugindo de infinitas ameaças de violência sexual, abuso e exploração… Nada as impedirá quando estiverem indo embora. Nada vai ficar no caminho delas.” Michelle Brane, diretora do Programa de Direitos e Justiça do Migrante da Comissão de Mulheres Refugiadas da ONG sediada em Nova York
Problemas de saúde enfrentados pelas mulheres durante a migração
Dados apontam para um aumento da migração feminina partindo da América Central para os EUA nos últimos anos. Somente em 2018, 48% dos migrantes centro-americanos no México em busca de meios para migrarem para os EUA eram mulheres, o que corresponde a cerca 12.752 mulheres. Tamanha expressividade feminina também se traduz dentro das caravanas, isto porque a migração em grandes grupos reduz os custos desta mobilidade e garante uma maior proteção pela quantidade de pessoas migrando juntas.
No entanto, como aponta Mimi Sheller (2018), a mobilidade não é exercida igualmente por todos, há pessoas diferentes e corpos diferentes que estão inseridos em contextos de desigualdade, de modo que a experiência migratória de meninas, mulheres, e mães é diferente daquela experienciada por outros grupos sociais, o que impacta diretamente na situação e necessidades de saúde destas – as quais muitas vezes não são solucionadas ou recebem a devida atenção.
Muitas das mulheres migrando em caravanas vinham de situações e contextos que não as forneciam condições mínimas de saúde – considerando-se a saúde positiva e não somente a ausência de enfermidades. Desta forma, é necessário desmistificar a ideia de que os riscos à vida e à saúde destas mulheres e seus dependentes surge somente após o início da jornada em caravanas. Pelo contrário, a migração, apesar de ampliar e introduzir novas vulnerabilidades, é uma decisão corajosa destas mulheres em deixar situações que ameaçam sua saúde – psicológica, emocional e física – em busca de oportunidades e crescimento em um local onde possam ter uma vida digna e seus direitos humanos respeitados.
Segundo artigo da United Nations University, 60 a 80% das mulheres migrantes no mundo é vítima de estupro ou abuso sexual durante o processo migratório. Mesmo dentro de caravanas esse é um grande risco enfrentado pelas mulheres, o que resulta em implicações para a saúde mental destas enquanto se preparam para migrar. Isto porque relatos mostram que a antecipação da possibilidade de serem estupradas durante o processo migratório leva muitas mulheres a utilizarem injeções anticonceptivas antes do migrar a fim de prevenir eventuais gravidezes indesejadas – as quais não somente geram impactos psicológicos significativos como também poderiam colocar em risco a vida destas. Não foram encontrados estudos que demonstrem os efeitos psicossociais causados pela expectativa desta violência, no entanto, existe a grande possibilidade de que isto degrade a saúde das mulheres pretender migrar para os EUA junto às caravanas.
Ao longo do trajeto, a recorrência dessas violências de gênero gera necessidades médicas para essas mulheres (e.g. tratamento psicológico e ginecológico) as quais raramente estão acessíveis durante ou após sua participação nas caravanas. Mesmo a distribuição de pílulas anticoncepcionais durante a migração (fornecida por organizações humanitárias) foi pouco mencionada nos relatos e estudos encontrados, e não há dados sobre a cobertura deste serviço ou se as mulheres beneficiadas conseguem manter o tratamento durante a migração. Ademais, é importante ressaltar que estas medidas não previnem o contágio de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), sendo a prevenção e tratamento destas uma aparente lacuna nos serviços humanitários de saúde disponíveis para migrantes das caravanas.
“Nós temos que tomar banho com nossas roupas íntimas e às vezes os meninos entram.” Hilda Alejandra Lara Perez, 21, entrevistada pela Teen Vogue.
Ainda sobre necessidades ginecológicas, relatos apontam para uma grande falta de recursos para manutenção da higiene básica ao longo da jornada. Isto propicia o surgimento de infecções ginecológicas, muitas das quais tratáveis, mas que, por uma falta da possibilidade de atendimento médico ou por dificuldades em cumprirem com os tratamentos indicados, acabam tendo efeitos ainda mais negativos nos corpos destas mulheres. Similarmente, é necessário abordar a saúde menstrual destas mulheres durante a migração. Em entrevista à Teen Vogue, meninas e mulheres que estão migrando junto às caravanas relatam as dificuldades que as acompanham no período menstrual. Apesar de conseguirem com certa regularidade absorventes gratuitos com ONGs e demais organizações humanitárias, a maior dificuldade está em conseguirem locais privados e limpos para realizarem suas necessidades higiênicas (e.g. troca de absorventes e limpeza pessoal).
A falta de privacidade em momentos tão íntimos como a menstruação – tópico o qual ainda é tabu em muitas culturas latino-americanas – certamente trazem implicações psicológicas para estas meninas e mulheres. Para além da falta de locais privados para a higiene pessoal, relatos apontam que mesmo quando estas meninas e mulheres conseguem locais mais reservados surge um risco de serem vítimas de algum tipo de abuso sexual. Além disto, é importante ressaltar que as longas jornadas de caminhada e falta de uma alimentação apropriada degradam as condições físicas de saúde, sendo visíveis, por exemplo, na redução do ciclo menstrual.
Finalmente, é importante considerar se e como a economia do cuidado tradicional – a qual relega o papel de “cuidadora” para as mulheres – se desenvolve dentro das caravanas durante a migração. Apesar de não haver uma literatura específica sobre este recorte temático, ao longo da pesquisa foram encontrados diversos relatos de mulheres migrando com seus filhos e de suas experiências cuidando destes enquanto migram. Curiosamente, não foram encontrados relatos de homens viajando sozinhos com seus filhos, e mesmo em casos de mulheres migrando com seus companheiros as tarefas relacionadas ao cuidado de crianças pareciam ser raramente exercidas pelos homens – sem contar as mulheres que migram com as caravanas enquanto mães solos. Assim, levanta-se o questionamento sobre como a responsabilidade de ser a provedora do cuidado em uma situação de grande vulnerabilidade e desgaste (físico, psicológico e emocional) impacta as condições de saúde destas mulheres.
Considerações finais
A situação de mobilidade e inconstância experienciadas pelas mulheres em caravanas migrantes impõe novas dinâmicas que, conforme demonstrado ao longo do texto vulnerabilizam e negligenciam a saúde das mulheres. Desde o Triângulo Norte até seu destino final, os EUA, as mulheres centro-americanas que migram em caravanas sofrem com a incapacidade dos Estados de protegerem seus direitos básicos à saúde, segurança e bem-estar.
Os esforços conjuntos para deter essa migração constituem um sistema transnacional que nega as mulheres migrantes a proteção de que eles precisam desesperadamente. Ao invés disso, há o descaso com seus direitos básicos e sua dignidade, por meio das repressões, aumento da segurança nas fronteiras e a apreensão em centros de detenção em condições terríveis. A falta de serviços e estudos sobre a situação e necessidades específicas destas mulheres migrantes não somente contribui para a desumanização generalizada destas – mobilizada por Estados e grupos que buscam barrar a migração – como também dificulta a criação de serviços que contemplem as necessidades.
Ao longo da pesquisa buscou-se demonstrar as diversas dimensões de saúde (e, principalmente, a falta dela) que envolvem as mulheres centro-americanas que decidem migrar em caravanas rumo aos EUA tanto antes de migrarem quanto durante a jornada. Apesar do número crescente de migrações femininas e, consequentemente, da necessidade de condições e serviços específicos para assegurar os direitos humanos básicos e o acesso à saúde destas mulheres, evidenciou-se a existência de muitas lacunas de conhecimento sobre tal recorte e de serviços que efetivamente busquem satisfazer as demandas e necessidades de mulheres migrantes. Isso demonstra os limites atuais dos serviços de saúde que são pautados em uma lógica estatal que prioriza quem está dentro, ou seja, os nacionais, ao mesmo tempo em que não prevê a mobilidade. Dessa forma excluindo duplamente essas populações que migram em caravanas e impedindo que estas possam manter sua saúde.
Notas
¹: Conforme a Constituição da Organização Mundial da Saúde de 1946. Disponível em: < https://www.who.int/about/who-we-are/constitution#:~:text=The%20Constitution%20was%20adopted%20by,are%20incorporated%20into%20this%20text. >
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