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Saúde Global e Capitalismo: contribuições teóricas do “Capitalismo Límbico” para a agend

Updated: Mar 30, 2021

Imagem em destaque: Vox

Por Deborah Ferreira Barbosa

Saúde Global e Capitalismo


A interdisciplinaridade do que sem vem estruturando como o campo da Saúde Global com as ciências sociais permitiu o questionamento dos próprios conceitos de “saúde” e “global” fazendo com que saúde parasse de ser apenas um sinônimo da ausência de doenças. Assim, diversas agendas de pesquisa se permitiram introduzir temas econômicos e sociais ao campo, refletindo sobre a indissociação das dinâmicas da sociedade moderna com as mazelas dos seres humanos, englobando temas como saúde mental, segurança alimentar, desigualdade social, segurança econômica, direitos humanos, segurança do trabalho e comércio como pautas de saúde, tendo todas um grande denominador comum: o sistema capitalista.

Essa abordagem, porém, pode acabar apresentando esse sistema como apenas um reprodutor das desigualdades, que por sua vez se tornam as grandes determinantes das questões sanitárias: a desigualdade de classes gera precariedade no acesso ao saneamento básico, que se torna um problema sanitário; a mesma desigualdade expõe um grande grupo de pessoas à insegurança alimentar que as obriga a recorrer a produtos ultra processados trazendo problemas de saúde como diabetes, obesidade e desnutrição; mesma desigualdade que gera insegurança econômica e violência, expondo a atenção que necessita a saúde mental, e assim por diante. Abordagem que, apesar de necessária, pode acabar desconsiderando o caráter sistêmico do capitalismo enquanto mantenedor de privilégios e interesses das classes dominantes – estas sendo as detentoras do capital, portanto das grandes corporações – ao tratar de suas consequências quase que como infelizes coincidências.


Capitalismo Límbico

O conceito de Capitalismo Límbico parece preencher lacunas ao apresentar a intenção e manipulação das elites econômicas sobre os corpos que atuam não só como trabalhadores, mas também como consumidores no sistema capitalista. O termo foi mobilizado pelo historiador David Courtwright e faz referência ao sistema límbico, sistema neurológico responsável pelo prazer, emoções e reações comportamentais, para demonstrar como o capitalismo lucra através da exploração e manipulação psicológica, incitando maus hábitos, consumo excessivo e vício ao massagear o sistema de recompensa do sistema límbico com a liberação de dopamina.

Segundo Courtwright, o ataque do capital ao nosso sistema límbico tem sido gradual de forma que o capitalismo evoluiu até se tornar uma indústria do vício, não só o incitando, mas o projetando. Ele lembra que boa parte da formação do mundo moderno foi baseado na indústria do vício com a venda de commodities como o álcool, o café e o tabaco, mas com o tempo a palavra “vício” parou de se referir apenas a drogas para abranger também o comportamento, o que permite se referir, por exemplo, ao consumo, aos jogos e à pornografia, lembrando que os cérebros de um viciado em drogas e um viciado em jogos não são diferentes.

A partir do século XIX os prazeres começaram a se expandir junto com a expansão do comércio global, das fronteiras da sexualidade e das indústrias do esporte, da fotografia e do cinema. Foi então que os capitalistas começaram a perceber que o prazer e o vício poderiam ser uma via importante de negócios, criando um sistema que gera paradoxos com a saúde pública. Com o posterior desenvolvimento do neoliberalismo econômico, a indústria não era mais apenas do vício, mas do “vício por design” em que os produtos são criados especificamente para atrair diretamente as vulnerabilidades do consumidor. Atualmente, essa manipulação se dá pelo uso, por parte das grandes corporações, da psicologia e da neurociência no marketing dos seus produtos, moldando novos hábitos e criando desejos ao levar os consumidores a um estado mental de vício. 

Em entrevista à Vox, Courtwright explicou que:

“As empresas oferecem produtos que produzem a liberação de dopamina de uma maneira que condiciona e, finalmente, altera o cérebro e desenvolve certos comportamentos viciantes, ou seja, comportamentos prejudiciais. As pessoas sempre venderam produtos potencialmente viciantes, mas o que aconteceu nos últimos cem anos ou mais é que mais dessas estratégias comerciais vem de empresas altamente organizadas que fazem pesquisas muito sofisticadas e encontram mais maneiras de comercializar esses bens e serviços viciantes.” (Tradução livre).

E continuou falando dos produtos e empresas que mais exploram o Capitalismo Límbico:

“Meio século atrás, eu diria que seriam principalmente produtos como álcool, tabaco e outras drogas. Mas nos últimos 20 ou 25 anos, houve uma grande expansão do conceito de dependência. Então agora não falamos apenas de dependência de drogas, falamos de dependência de pornografia, de jogos de computador, de mídias sociais, de comida, de todo tipo de coisas. O que aconteceu nas últimas décadas foi uma explosão de inovação tecnológica e produção e marketing em massa e, mais recentemente, a ascensão da internet, que realmente acelerou o processo e abriu novos espaços para os capitalistas límbicos chamarem nossa atenção e nos vender mais produtos.” (Tradução livre).

Além disso, ainda ressalta a aliança das grandes corporações com o poder público na construção do Capitalismo Límbico: “eles desenvolveram técnicas de lobby e relações públicas para sobreviver às grandes reformas do início do século XX”. Foi o caso, por exemplo, do álcool e do tabaco, cujos consumos foram amplamente incentivados pelo poder público que encheu seus cofres junto ao poder privado até que as pressões pela responsabilidade sanitária se tornaram insustentáveis. Assim, o caráter dos atores globais que atendem à indústria do vício faz parecer que esta condição é inevitável ou imutável.


Exemplos

O conceito mobilizado por Courtwright pode ser identificado em diversas dinâmicas econômico-sociais atuais, e completo o texto apresentando alguns exemplos.

Em um artigo recente, o historiador traz a afirmação:

“Analisei várias categorias de dados de mortalidade da Organização Mundial da Saúde e descobri que, para cada morte prematura por homicídio ou violência relacionada à guerra, havia 30 mortes prematuras por práticas prejudiciais à saúde, como fumar, comer demais ou dirigir distraído. Maus hábitos podem ser um grande negócio, mas também são grandes assassinos.” (Tradução livre).

O mesmo texto apresenta o caso dos famosos vaporizadores como uma expressão do Capitalismo Límbico em ação ao analisar como a indústria tabagista encontrou outra maneira de explorar o sistema límbico para além do próprio efeito viciante da nicotina utilizando de estratégias de marketing que mascaram os efeitos prejudiciais à saúde e incitam o consumo através da anatomia e aparência dos produtos, além de campanhas publicitárias voltadas especialmente para o público jovem, do ensino médio, cientificamente comprovado como o mais propício a atividades viciantes e que não tinha acesso aos produtos da indústria tabagista depois da sua regulamentação.

Dentro disso, uns dos temas indispensáveis para Courtwright falar sobre o Capitalismo Límbico atual são a internet e as mídias sociais, que para ele revolucionaram as dinâmicas do capitalismo. Que esses adventos exploram nossos comportamentos viciantes não é novidade, mas podemos observar uma análise com abordagem do Capitalismo Límbico, por exemplo, na coluna do The Intercept Brasil “‘O dilema das redes’: sair da internet não vai salvar a internet” em que a jornalista Tatiana Dias critica a maneira que o documentário “O Dilema das Redes” da Netflix trata dessa exploração. Para ela, a abordagem da produção audiovisual desconsidera todo o projeto capitalista de reprodução de comportamentos viciantes praticamente responsabilizando individualmente os consumidores ao apresentar a decisão individual de deixar as redes como a grande solução, quando na verdade “não se trata de ‘escolher sair das redes’, mas de se opor a essa lógica e pressionar por regulação e transparência”.

Por fim, outro tema citado por Courtwright diz respeito à alimentação. O jornal estadunidense The New York Times explora a relação da grande indústria alimentícia com o sistema límbico na reportagem “Como a Grande Indústria Viciou o Brasil em Junk Food” ao expor a atuação da multinacional de alimentos processados Nestlé no Brasil e sua relação com a saúde dos consumidores, desde efeitos fisicamente prejudiciais à saúde como obesidade, desnutrição e diabetes, até a exploração do sistema límbico que geram compulsão alimentar e de consumo, principalmente nas populações mais pobres, sobretudo entre as crianças. A maior novidade da matéria, porém, é a apresentação da dinâmica capitalista nessas relações ao analisar a parceria do poder público com a presença da grande indústria alimentícia, ciente dos prejuízos trazidos à saúde da população e articulando para a prevalência do lucro acima da vida, por exemplo ao não investir numa campanha nutricional acessível, não garantir segurança econômica e ainda interferir judicialmente em recomendações sanitárias que prejudicariam as vendas das grandes corporações.


Referências

COURTWRIGHT, David T. The Age of Addiction: How Bad Habits Became Big Business. Harvard University Press, 2019.

COURTWRIGHT, David T. Vaping and prescription opioids: limbic capitalism in action. Stat, 2019.

ILLING, Sean. Capitalism is turning us into addicts. Vox, 2020.

DIAS, Tatiana. ‘O dilema das redes’: sair da internet não vai salvar a internet. The Intercept Brasil, 2020.

JACOBS, Andrew. RICHTEL, Matt. Como a Grande Indústria Viciou o Brasil em Junk Food. The New York Times, 2017.

FORTES, Paulo Antônio C. RIBEIRO, Helena. Saúde Global em tempos de globalização. Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.2, p.366-375, 2014.

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