Por Marcela Gonçalves e Rafaela Ferreira
Fonte: BRASILDEFATO
Introdução
A Vale S.A, ao longo da história, carrega consigo várias violações em termos de direitos humanos que afetam direta e indiretamente a saúde de diversos indivíduos, como é caso das tragédias de Brumadinho, em 2019, e de Mariana, em 2016. A empresa multinacional está presente em diversos países e leva junto a ela comportamentos tão questionáveis quanto os mencionados anteriormente.
No centro de Moçambique, distrito de Moatize, província de Tete, a Vale se instalou para minerar carvão e reassentou 1365 famílias moradoras do local. Esses e outros indivíduos não reassentados têm as dinâmicas de seu cotidiano afetadas, sobretudo no que diz respeito à saúde.
Para dar início, é importante salientar que a análise aqui feita se orienta pela ótica da saúde holística e coletiva. Como posto pela Organização Mundial da Saúde (2009), a saúde é definida pelo conjunto de condições sociais em que uma comunidade vive e trabalha (APUD GIONGO, MENDES, SANTOS, 2015). Portanto, a saúde aqui é entendida como mais que a relação saúde-doença, sendo ela um conjunto entre o físico, emocional, energético e psíquico, o qual é afetado diretamente pelo meio em que se vive.
Para compreender mais da atividade da Vale em outros países que não o Brasil e, especificamente, os impactos na saúde decorrentes de sua atuação, buscou-se trabalhos de campo de pesquisadores, relatórios, dados fornecidos pela própria companhia e um frutífero diálogo com a pesquisadora Isabella Lamas.
A chegada da Vale em Moçambique
A Vale, anteriormente conhecida como Companhia Vale do Rio Doce, é uma empresa privada multinacional brasileira do ramo da mineração, fundada como uma estatal em 1942, durante o governo de Getúlio Vargas, cujo objetivo inicialmente era a exploração das minas de ferro em Itabira, no estado de Minas Gerais. Atualmente, configura como uma das maiores empresas desse setor globalmente, atuando em mais de trinta países de diferentes continentes.
Em meados dos anos 2000, diversas empresas brasileiras dos ramos de construção civil, exploração de petróleo e mineração – como é o caso da própria Vale – expandiram suas operações, passando a atuar internacionalmente, sobretudo nos países do continente africano. É neste mesmo período que a Vale demonstra interesse em atuar particularmente nas minas de carvão em Moçambique, obtendo a licitação em 2004.
Em 2007, a Vale adquire então a concessão para atuar mais especificamente na província de Tete, onde há a Bacia Carbonífera de Moatize – uma das maiores bacias do mundo e que ainda era pouco explorada na época. Sendo Moçambique um país com baixo índice de desenvolvimento humano (PNUD, 2019), com baixa renda e grande parte da população vivendo em áreas rurais (Banco Mundial, 2020); escassa infraestrutura básica em áreas essenciais, como saúde e atendimento médico, educação e saneamento, o governo moçambicano vislumbrou na abertura de suas minas de carvão para o investimento externo uma possível oportunidade para mudar esse cenário social e trazer prosperidade e bem-estar para o país.
Todavia, não foi o que se verificou na região. A presença da Vale em Moatize vem sendo alvo de críticas desde o início de suas operações. Não obstante a falta de transparência por parte da companhia e do próprio governo moçambicano, os impactos socioambientais trazidos pela exploração do carvão e, sobretudo, os reassentados – e também aqueles que continuaram morando nas proximidades das instalações – constituem as principais controvérsias da Vale em Moçambique.
Tanto os reassentados quanto os não reassentados tiveram sua saúde afetada, direta ou indiretamente. Aqueles que foram reassentados foram transferidos para áreas onde a água é escassa e os solos são improdutivos, além de estarem distantes de serviços de atendimento médico, o que prejudica sua subsistência e qualidade de vida. Ademais, não houve uma consulta comunitária sobre o processo de reassentamento, contrariando a Lei de Terras de Moçambique. Por sua vez, as comunidades de bairros próximos às instalações sofrem com águas contaminadas, que acabam por afetar atividades como o saneamento básico, a pesca e a agricultura; com a poluição sonora e também com a poeira gerada pelas atividades, o que causa os mais diversos problemas de saúde, sobretudo respiratórios.
Outro fator agravante da situação dessas populações consiste no fato de que o governo moçambicano transferiu para a mineradora responsabilidades que são, tradicionalmente, do Estado, tais como a provisão de serviços de saúde, escolas, saneamento básico, dentre outros. Devido à essa transferência de funções e somado ao poder econômico da empresa, a Vale passou a exercer um papel de governança na região: sua presença tornou-se opressora e constante no dia a dia dessas pessoas, forçando-as a mudarem seus modos de vida, interferindo nas dinâmicas locais e criando um círculo vicioso, em que a população depende dos serviços oferecidos pela Vale ao mesmo tempo em que sofre com os efeitos da presença da mesma.
Entende-se, portanto, que a saúde da população de Tete é afetada em seu aspecto integral, pois os impactos não se limitam apenas ao surgimento de doenças, mas afetam a qualidade de vida de reassentados e não reassentados, acentuando os problemas socioeconômicos e, por consequência, impedindo a criação de um ambiente benéfico para a saúde – seja ela física, mental ou psíquica – dessas comunidades.
As dinâmicas dos reassentados e não reassentados
As 1365 famílias movidas para os reassentamentos 25 de Setembro e Catembe, respectivamente de perfil urbano e rural, foram inseridas em uma localidade que, além de carregar muitas problemáticas, como a falta de água e de terra arável e casas com fundações defeituosas e rachaduras, estão muito distantes dos centros urbanos e não contam com condições para se locomover. Esse isolamento distancia-os dos serviços públicos, essencialmente os de saúde, tornando-os dependentes dos oferecidos pela Vale.
Os serviços oferecidos pela Vale advém de expectativas que os padrões internacionais para reassentamentos involuntários produzem, como aponta Lamas (2018): os responsáveis tem de prover uma infraestrutura que seja capaz de reconstituir os padrões de vida anteriores (LAMAS, 2018). O documento de políticas operacionais do Banco Mundial “Involuntary Resettlement” diz:
Pessoas deslocadas deverão ser assistidas nos seus esforços para melhorarem o modo e condições de vida ou pelo menos para restaurar, em termos reais, as condições previamente ao reassentamento ou ao início da implementação do projeto, prevalecendo o qual for mais elevado. (Banco Mundial, 2001)
O documento serviu como base para a criação do Plano de Ações Para o Reassentamento (PAR) para o Programa Carvão Moatize, o qual estabelece os procedimentos e um plano de ação para a construção de infraestrutura a ser seguido durante o processo de reassentamento. Com o centro de saúde e casa de assistência a mulheres grávidas construídos na comunidade Catembe, a Vale é a única a prover serviços para a população, usando disso para exercer uma governança cotidiana em relação aos afetados pela mineração, de modo a desempenhar um controle sob o bem-estar e as opções de desenvolvimento da população, bem como de mecanismos que comandam a ordem política e o consentimento dos mesmos (LAMAS, 2018).
Os serviços são vistos pelo governo moçambicano como um caminho para o desenvolvimento socioeconômico nacional, com mais empregos e melhores condições para os cidadãos em geral com o impulsionamento da economia local, e reafirmados pela Vale, como forma de propaganda, de maneira a demonstrar o seu “comprometimento” com o desenvolvimento e com as comunidades (LAMAS, 2018). Contudo, essa proeminência da Vale serve apenas para evidenciar e intensificar as desigualdades. A maioria da mão de obra não é do país, por conta da falta de qualificação, e os que são moçambicanos vem da capital; as áreas da economia que seriam estimuladas não foram, como por exemplo, a promessa de consumir alimentos dos produtores locais, uma vez que a Vale adquire a maior parte de fora do país. Além disso, parte do problema vem dessa urbanização mal planejada que a população não tem condições de manter, ainda mais sem o apoio estatal. Falta luz e água pois eles não têm condições de pagar; o governo se apropria das estruturas dadas pela Vale para os reassentados – como o caso demonstrado por Lamas da ambulância que deveria ser da comunidade de Catembe e foi retirada de lá – as casas estão com rachaduras; mulheres que não receberam indenização e foram abandonadas por seus maridos. Todas essas ocorrências impedem a constituição de um ambiente digno.
Em vista disso, a Vale ganha mais espaço para exercer essa governança cotidiana em todos os aspectos da vida, controlando, em última instância, o bem-estar da população, como apontado por Lamas (2018).
Embora as maiores críticas à instalação da Vale em Moçambique sejam direcionadas aos reassentamentos pouco planejados e, por consequência, mal sucedidos, há ainda uma outra face da exploração mineral em Tete. As comunidades localizadas nos arredores das instalações da empresa mineradora vêm sofrendo com a contaminação das águas e do solo; partículas tóxicas que são liberadas e acabam por adoecer a população local; poluição sonora e rachaduras nas casas e instalações próximas devido ao uso em larga escala de explosivos.
Com o aumento de doenças respiratórias e outras patologias relacionadas à mineração, a ONG moçambicana Sekelekani conduziu um estudo no primeiro semestre de 2020 com avaliações sobre a qualidade do ar e da água, assim como os níveis de ruído causado pela utilização de dinamites. Por meio deste relatório, ficou evidente que a água possui profundas alterações; o ar carrega grandes quantidades de partículas nocivas como dióxido de enxofre, monóxido e dióxido de carbono e, ademais, a poluição sonora estava extrapolando limites toleráveis.
Todavia, mesmo sendo afetadas pela presença da Vale, essas famílias se encontram sem alternativas ou perspectivas de melhora. Conforme Lamas (2018), essas comunidades, apesar de estarem inseridas na área concedida à empresa, não afetam a zona operacional, ou seja, a produção do carvão não sofre interferências. Desse modo, ainda segundo Lamas:
A poucas centenas de metros da exploração, sofre com poeiras e o ruído. De acordo com um funcionário da Vale Moçambique, estas são comunidades residuais que hoje não influenciam a produção e, portanto, a CMN não tem necessidade de assentá-las. Além disso, a Vale segue as orientações do Banco Mundial nas quais os reassentamentos involuntários devem ser evitados sempre que possível (CMn-Moz-2). O resultado são 70 famílias que se encontram em situação provisória desde 2010. (LAMAS, 2018)
As condições de extrema vulnerabilidade em que as pessoas dessa região se encontram dificultam as reivindicações e pressões por parte da sociedade civil pela implementação de políticas socioambientais mais responsáveis e por maior atenção aos impactos que a Vale traz para essas comunidades, já que o foco se torna a garantia de condições básicas para sua sobrevivência (LAMAS, 2018). Além disso, parece não haver grandes preocupações com este cenário, seja por parte da Vale ou do governo moçambicano.
Dessa maneira, as pessoas que vivem nos bairros ao redor das instalações da Vale encontram-se sem saída: sofrem com a exposição direta à exploração de carvão a céu aberto, contudo, não são contempladas por nenhum tipo de ação que ao menos reduza os impactos provocados, o que as manterá subsistindo num meio que traz os mais diversos riscos à sua saúde.
Saúde Coletiva X Desenvolvimento e Mineração
Por meio da apresentação do caso da atuação da mineradora Vale na província de Tete, em Moçambique, é possível perceber os diversos impactos que a atuação desta corporação trouxe à saúde da população. Embora a saúde comumente seja entendida como a ausência de enfermidades, aqui entende-se a saúde em seu aspecto holístico e coletivo; o primeiro refere-se a um estado de completo bem-estar físico, mental e social, essenciais para que se tenha uma boa qualidade de vida. Por sua vez, a saúde coletiva compreende as condições sociais do ambiente que se analisa, buscando relacioná-las e mostrar como estas podem influenciar as dinâmicas da saúde de uma população específica.
Ao longo da exposição, depreende-se que as famílias que moram nas proximidades das instalações da Vale em Tete ou que por ela foram reassentados são afetados em diversos aspectos de sua saúde. Além, obviamente, das doenças causadas pela exposição direta à mineração – como por exemplo a tuberculose – há também o enfraquecimento do acesso à meios de saúde que já eram precários antes mesmo da chegada da mineradora. Os reassentados ficam a quilômetros de distância de unidades de saúde e não possuem meios de locomoção para tal, além de estarem em localidades onde é praticamente impossível realizar suas atividades de subsistência, o que faz com que essas comunidades tenham que buscar outra maneira de sobreviver, tal como a pesca, o que prejudica seu modo de vida, forçando alterações nele. Já os que se mantiveram nos bairros vizinhos sofrem, predominantemente, com os impactos socioambientais trazidos pela exploração. Como bem sumarizado por Marcelo Firpo Porto:
A mineração de ferro não produz só bilhões de dólares e “progresso”: ela está repleta de perigos, mortes e destruição socioambiental. Trabalhadores morrem e adoecem; grandes áreas são desmatadas; caminhões e trens circulam atropelando pessoas e animais; as usinas de beneficiamento geram poluição atmosférica; aquíferos formados em regiões ferríferas são contaminados e destruídos; em tempos de crise hídrica a água consumida é enorme, inclusive pelos minerodutos; a quantidade de rejeitos é gigantesca e acumulada em barragens; e o rompimento delas com lamas com diferentes graus de toxicidade podem se transformar em grandes tragédias. (PORTO, 2016)
Ao invés de trazer a prosperidade e bem-estar que foram intensamente reafirmados tanto pela própria empresa quanto pelo governo moçambicano, o que se concretizou foi um aprofundamento das desigualdades já presentes previamente na população dessa região. Assim, a saúde só piorou: alimentos e águas contaminadas que favorecem o surgimento de doenças, poluição sonora, falta de moradia digna e de qualidade, precarização dos atendimentos de saúde dentre outros.
Desse modo, percebe-se que há fatores que acabam por determinar o acesso dessas pessoas a uma saúde digna. O distanciamento dos reassentamentos, a lacuna de serviços que deveriam ser providos pela Vale e a condição de vulnerabilidade, por exemplo, são alguns desses fatores, pois impedem não só o acesso ao atendimento médico e outros serviços, mas também dificultam uma qualidade de vida em aspectos além do físico, como o psicológico. Assim, postas estas condições, é favorecido o surgimento de um ambiente extremamente problemático, onde não é possível viver dignamente, já que os fatores físicos, emocionais e sociais da população se veem diariamente influenciados pela presença constante do poder que a Vale exerce.
Como visto, o Estado moçambicano é apoiador da Vale pois acredita que a sua ação em Tete pode, em síntese, promover o desenvolvimento socioeconômico do país. De fato, as atividades em curso são lucrativas e tem potencial para oferecer prosperidade. Contudo, além de as promessas da Vale que poderiam de alguma forma levar a esse objetivo final terem sido frustradas, a mineração traz consigo uma série de desfortúnios, como a poluição do ar, das águas, do solo e dos alimentos, os reassentamentos involuntários, a perda de terra e matéria prima para pequenas produções. São muitos os danos causados, intensificando as desigualdades já existentes.
Em vista disso, a mineração desempenhada pela companhia é um grande desafio para a saúde holística e coletiva dos indivíduos que circunscrevem esse contexto, em razão do alto nível de controle e impacto em diferentes instâncias. Conforme apontado por Marcelo Firpo de Souza Porto, dimensões importantes para a vida são vistas como externalidades negativas e não incorporadas no preço do minério. Desse modo, desenvolvimento econômico e o modo de produção capitalista ligados ao tipo de empreendimento da Vale tem como consequência degradações humanas e ambientais, estabelecendo a vida como trivial.
Bibliografia
GIONGO, Carmem Regina; MENDES, Jussara Maria Rosa; SANTOS, Fabiane Konowaluk. Desenvolvimento, saúde e meio ambiente: contradições na construção de hidrelétricas. Serv. Soc. Soc., São Paulo , n. 123, p. 501-522, set. 2015 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-66282015000300501&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 06 dez. 2020. https://doi.org/10.1590/0101-6628.034.
VIEIRA, Viviane A. Os reassentados da Vale em Moçambique: um estudo sobre mobilização do trabalho e trabalho supérfluo. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2019.
LAMAS, Isabella A. Vale quanto pesa? A emergência de novos espaços de governação em megaprojetos de mineração no Brasil, Canadá e Moçambique. Coimbra, 2018.
Manual Operacional do Banco Mundial. OP 4.2. 2001. Disponível em:
<https://governanca.rs.gov.br/upload/arquivos/201512/21161129-op-bp-4-12-reassentamento-involuntario.pdf>. Acesso em 06, dez., 2020.
Entrevista concedida por COMBO, Dulce B. I. Para além de Brumadinho e Mariana, a Vale em Moçambique. Entrevistador: GASPARETTO, Vera. Portogente, março de 2019.
PORTO, Marcelo F. de S. A tragédia da mineração e do desenvolvimento no Brasil: desafios para a saúde coletiva. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 2, e00211015, 2016 . Disponivel em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2016000200302&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 06 Dez. 2020. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00211015.
Sekelekani. Impacto Ambiental da Mineração de Carvão a Céu Aberto no Distrito de Moatize. Disponível em: <https://sekelekani.org.mz/wp-content/uploads/2020/06/Relato%cc%81rio-do-Estudo-de-Impacto-Ambiental-da-Extracc%cc%a7a%cc%83o-de-Carva%cc%83o-a-Ce%cc%81u-Aberto-em-Moatize.pdf>. Acesso em 04 dez. 2020.
Entrevista concedida por LAMAS, Isabella A. Entrevistador: GONÇALVES, Marcela; FERREIRA, Rafaela S. Nov., 2020.
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