O Brasil se contradiz com sua própria constituição, a qual possui uma tradição cultural e jurídica da preservação dos Direitos Humanos e defesa da paz, ao não se comprometer em seguir o Processo de Oslo e, dentro dele, não assinar a Convenção sobre as Munições Cluster.
Munições de fragmentação ou munições cluster são grandes armas que contêm centenas de pequenas submunições e podem ser projetadas tanto do solo como do ar. Os contêineres, ou as bombas-mãe, ao serem projetados se abrem e lançam as submunições que deverão explodir antes, durante e após o impacto, possuindo funcionamentos independentes entre si. Seu objetivo é detonar blindagem de tanques de guerra com sua carga explosiva altíssima.
Por seu funcionamento independente, as submunições são lançadas sem critério, gerando efeitos indiscriminados e podendo atingir tanto os alvos militares quanto civis, haja vista sua capacidade de atingir uma área de abrangência de 200 a 400 metros quadrados, o equivalente a, aproximadamente, oito campos de futebol. Além disso, o índice de falha das submunições nunca é zero: estima-se que de 30 a 40% dessas falham ao serem usadas em combate, podendo chegar a mais de 70%, o que gera consequências e efeitos alarmantes.
Após o conflito, as submunições que falharam em explodir se tornam explosivos remanescentes de guerra, uma espécie de mina terrestre antipessoal, já que tais armas podem ficar enterradas com todos os dispositivos prontos para serem acionados pela presença, proximidade ou contato de alguém. Com isso, os desenvolvimentos econômico e social da região contaminada são comprometidos, visto que há a impossibilidade de reconstrução, criação animal ou plantio do terreno, dificuldade de abastecimento de água potável e um considerável aumento da pobreza pelo desemprego e a ruína do comércio local, até que haja a limpeza necessária. O custo dessa limpeza gira em torno de 2,5 dólares cada metro quadrado mais o tempo da execução. A título de exemplo, foram gastos pelos respectivos governos: 86,3 milhões de dólares no Afeganistão, 37,3 milhões de dólares no Iraque, 30,8 milhões de dólares no Camboja, 86 milhões de dólares de 1996 a 2004 em Moçambique para a remoção.
O Processo de Oslo, liderado pela Noruega, foi um marco legal pela erradicação das bombas cluster com a preocupação de que tal armamento se tornasse um problema de escala humanitária ainda maior do que já se mostra. Desse modo, 49 Estados se reuniram em Oslo em 2007 para criar um instrumento legal vinculante sobre as bombas cluster, dos quais 46 aderiram prontamente. Dentro desse Processo, foi criada a Convenção sobre as Munições Cluster, a qual tem por objeto proibir o uso, a produção, a transferência e o armazenamento de munições cluster, bem como obrigações positivas específicas de destruição de estoque, limpeza de terrenos, assistência às vítimas e cooperação internacional de forma a assistir aos Estados Membros que, por ventura, necessitem de assistência lato sensu para implementar tais obrigações.
Duas foram as justificativas dadas pelo governo brasileiro por sua recusa em assinar a Conveção: 1) de acordo com o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty), o Tratado foi negociado fora dos foros tradicionais da ONU, não permitindo sua universalidade e usando a desculpa de que o tema já estava sendo tratado na Convenção sobre Certas Armas Convencionais (CCAC), dentro da ONU; 2) a justificativa do Ministério da Defesa juntamente com o setor industrial armamentista brasileiro é que há benefícios econômicos como valores exportados e o envolvimento de empresas civis durante o processo de fabricação de munições cluster.
A primeira justificativa é inválida, já que o Brasil faz parte do Processo de Ottawa de 1997 feito nas mesmas condições fora do sistema ONU, porém sobre a erradicação e proibição do uso de minas terrestres antipessoais, das quais o Estado brasileiro foi também um produtor ativo. Além disso, a Convenção para o banimento de clusters é totalmente apoiada pela ONU e conta com sua participação para o monitoramento do cumprimento das metas propostas, pretendendo suprir as lacunas do que foi discutido na CCAC e garantir a garantia dos direitos humanos com relação a usos, usuários e vítimas das munições. O Processo de Oslo conta com a ratificação de 100 países e 19 signatários, provando que a universalidade é possível mesmo sem o envolvimento direto nas negociações da ONU.
Fonte: Treaty Status de Stop Cluster Munition
A segunda justificativa é a mais intrigante, pois os valores de exportação de armamentos brasileiros são velados por motivos de “segurança nacional” através da PNEMEM (Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar), o que impede que os dados sejam lidos com clareza sobre os supostos lucros que o Estado brasileiro obtém ao fabricar tais armas. Mesmo assim, ao colaborar com essa indústria de munições cluster, o Brasil se dispõe a lucrar com crises humanitárias já que coloca seu objetivo de lucro financeiro a frente de danos físicos, psicológicos, sociais e econômicos daqueles que são atingidos e vitimados por tamanha brutalidade.
Atualmente, 24 países estão contaminados com essa munição, sendo que somente em 2015 foram registrados 417 acidentes, a maioria na Síria. Muitos acidentes não são registrados. O Monitor de Munições Cluster registrou dia 01 de Setembro de 2016 o uso de bombas cluster de fabricação brasileira no território do Iêmen, que teriam sido lançadas pela Arábia Saudita, para quem foi exportado.
O argumento de que o governo brasileiro está se comprometendo com ataques a vidas de pessoas em ambientes frágeis de conflitos e crises humanitárias por uma mera questão lucrativa em sua balança comercial, vai diretamente contra o que é exposto para a comunidade internacional sobre o comprometimento brasileiro com os Direitos Humanos e sua assistência a outros países para que esses sejam garantidos de maneira integral. O que se pode especular é a influência daqueles que produzem e exportam tais armamentos dentro da política brasileira, já que é um comércio condenado globalmente pelos já citados danos humanitários que causa e mesmo assim não há esforço por parte dos que possuem poder político de modificar essa situação e se juntar à Convenção de Munições Cluster, pelo contrário, os trâmites parecem dificultar as forças favoráveis aos Direitos Humanos e favorecer aqueles que os degradam.
Fontes:
VIEIRA, Gustavo; SITO, Santiago. O Tratado banindo as bombas cluster e a posição brasileira: para qualificar o debate nacional. 2ª edição. Santa Maria. Centro Universitário Franciscano, 2014
Minas terrestres: Tratado de Ottawa completa 17 anos de vigência. Disponível em: <http://www.dhesarme.org/index.php?option=com_content&view=article&id=179:minas-terrestres-trtatado-de-ottawa-completa-17o-anos-de-vigencia-> Acesso em: 18/05/2016.
Treaty status. Disponível em: <http://stopclustermunitions.org/en-gb/the-treaty/treaty-status.aspx> Acessado em: 18/05/2016.
Crise Humanitária com armas brasileiras: bombas cluster encontradas no Iêmen são reportadas em relatório. Disponível em: <http://www.dhesarme.org/crise-humanitaria-com-armas-brasileiras-bombas-cluster-encontradas-no-iemen-sao-reportadas-em-relatorio/> Acessado em: 10/10/2016.
Comments