Por Natalia Ramos Takeda
Nos últimos anos foram diversos os casos de vazamento de dados envolvendo os chamados “paraísos fiscais”, como o Panama Papers, Paradise Papers ou Luxemburgo Leaks. Em todos o que ficou na memória foi o tamanho colossal de um tipo de atividade que tem como principal objetivo fugir de impostos e manter segredos. Apesar de isso ser claro para muitos, ainda não é totalmente visível para tantos outros as consequências desse tipo de jurisdição na globalização. O objetivo deste artigo é explorar não só o conceito de paraísos fiscais, mas também o significado desses lugares na economia e no sistema de estados e as consequências de sua existência, além de explicitar alguns aspectos gerais de seu funcionamento e dimensões.
Rua Orange nº 1209 – Wilmington, Delaware
Dada sua complexidade, o trabalho de conceituar um paraíso fiscal é de difícil consenso. “Muitas vezes é o caso de “pequeno lugar, muito dinheiro: 400 bancos instalados num único galpão na Ilha do Pacífico Sul de Nauru, […] ou, então, 200 mil companhias legalmente residentes na Rua Orange nº 1209 em Wilmington, Delaware” (SHARMAN, 2010 apud SPENCER e SHARMAN, 2008; van FOSSEN, 2003, 2009).
A definição usada aqui será a adotada por Sharman (2010, p. 40, tradução nossa): “um centro financeiro offshore (OFC) ou paraíso fiscal é uma jurisdição que designou seu regime financeiro a oferecer serviços financeiros internacionais para firmas não residentes e indivíduos.” São, então, lugares ou países soberanos que permitem sob seus regimentos legais internos o funcionamento de serviços específicos e voltados ao estrangeiro, seja uma firma ou pessoa. Na tentativa de criar um tipo ideal de paraísos fiscais, Palan et al (2010) oferecem três características essenciais, mas não limitantes, desses lugares, duas das quais são explicitadas a seguir:
Taxação nula ou quase nula
Centros Offshore oferecem taxação zero ou quase zero para companhias não residentes, o que não quer dizer que não há coleta de impostos internamente. Com a diferenciação entre residentes e não residentes, a última categoria paga impostos baixíssimos, ou somente taxas de registro e manutenção. “Em Vanuatu, por exemplo, custa 150 dólares para registrar uma companhia e 300 dólares anuais para manter o registro” (PALAN et al, 2010, p. 31)
Há, também, o pagamento de subsídios por parte de estados mais ricos, outra forma de se anular a cobrança de impostos de estrangeiros. Nesse caso os paraísos fiscais mais “puros” são jurisdições dependentes que contam com ajuda na manutenção de relações diplomáticas, econômicas e com medidas de segurança. Exemplos famosos são as dependências da Coroa Britânica como Jersey, Guernsey, a Ilha de Man e Gibraltar na Europa. Mônaco e Andorra são dependentes do estado francês e Liechtenstein é território dependente da Suíça (PALAN et al, 2010).
Sigilo
Paraísos fiscais também são famosos pelos seus mecanismos de confidencialidade que são garantidos por lei e em alguns casos, seriam necessárias mudanças constitucionais para se ter acesso a determinadas informações. Além disso, o próprio governo pode estar limitado de conduzir investigações, mesmo em casos de crimes, como evasão fiscal (PALAN et al, 2010).
Também há uma grande dificuldade em se identificar posses, o que se dá pela criação de trustes (fideicomisso) e pelos chamados “bearer instruments”, que são:
“[…] documentos que indicam que um portador do documento tem título de propriedade, como ações ou títulos. Os instrumentos do portador (bearer instruments) diferem das escrituras usuais, já que nenhum registro de propriedade ou sobre transações é mantida. Quem detém fisicamente os papéis do portador é o proprietário final.” ((PALAN, MURPHY e CHAVEGNEUX, 2010, p. 34)
Dessa forma, não há registro de atividades nem histórico de posse.
Por possuir essas características são na maioria das vezes usados com o objetivo de criar empresas de fachada que acobertam crimes como lavagem de dinheiro e evasão fiscal ou para ocultação de bens e investimentos.
Ambiguidades
Segundo Sharman (2010), a melhor maneira de entender o que esses centros offshore fazem é entender o que eles oferecem, o que está embedado de grandes ambiguidades: ao mesmo tempo em que se é dono de determinados ativos, o indivíduo pode se ausentar de responsabilidades, como empresas que contraem empréstimos, mas não devem nada e investimentos externos que se originam dentro do país de origem desses ativos.
No último caso, investimentos externos que se originam no próprio país, podem se dar através de um mecanismo de “ida e volta” através dessas jurisdições. “Dessa maneira, dinheiro doméstico adquire um status estrangeiro (e benefícios associados) de uma companhia offshore intermediária” (SHARMAN, 2010, p.8. Tradução própria). Como explicita o autor, entre os países que apareceram como os principais investidores da China em 2007, estão Hong Kong, as Ilhas Virgens Britânicas, Cingapura e as Ilhas Cayman e Maurício, todas conhecidas por serem paraísos fiscais.
O custo dos centros offshore
Segundo estimativas, os paraísos fiscais custam juntos aos governos entre $ 500 bilhões a $ 600 bilhões por ano em receita tributária perdida. (SHAXSON, 2019 apud CRIVELLI, de MOOJI e KEEN 2015; COBHAM e JANSKY 2018). Ainda, segundo artigo do ITEP (Institute on Taxation and Economic Policy) das 500 empresas do ranking da Fortune, 322 detinham uma estimativa de $ 2,6 trilhões em paraísos fiscais. Dessas, apenas 20 responsáveis por $ 1,07 trilhão em receita não registrada, entre elas a General Eletric, com subsidiárias em Bahamas, Bermuda, Irlanda e Singapura, e a Coca-Cola Corporation, com três subsidiárias nas Ilhas Cayman. Ainda assim, a maior proporção vem da parte de indivíduos, com cerca de $ 8,7 trilhões em paraísos fiscais. (SHAXSON, 2019 apud ZUCMAN, 2017).
Segundo dados do Missing Profits, o Brasil perde cerca de 10% de taxação corporativa para paraísos fiscais, cerca de $ 17 bilhões em 2015, sendo países como Bermuda, Porto Rico, Singapura e outros os principais destinos. Brasileiros também poupam muito em impostos por meio dos centros offshore: de 2014 para 2015 do total do investido no exterior, o valor direcionado à paraísos fiscais cresceu de 42,5% para 63,9%, a maior parte indo para Bahamas e Ilhas Cayman. Outro dado em estudo feito para a Tax Justice Network indicou que de 1995 até 2010 cerca de $ 520 trilhões foram enviados por super-ricos brasileiros à paraísos fiscais, tornando o Brasil a quarta nação a ter mais fortunas nesses lugares.
Atividades ilícitas
Além de serem locais conhecidos onde os ricos vão para evitar pagamento de impostos, os centros offshore tem um uso ainda mais controverso de forma a esconder e ser um meio possibilitador de atividades ilícitas. Como exposto por Palan et al, das jurisdições listadas pela Financial Action Task Force on Money Laundering (FATF) em 2000 como não cooperativas em relação a lavagem de dinheiro, somente duas não eram consideradas paraísos fiscais, o que demonstra a relação do uso desses lugares para esse tipo de atividade.
Algumas dessas jurisdições utilizam essa característica como estratégia (PALAN et al, 2010 apud RAWLINGS e UNGES, 2005). Como explicado pelos autores, em 1995 Seychelles, país do leste da África, passou a lei Economic Development Act em que um dos incentivos à investidores estrangeiros era a completa imunidade de acusações criminais e a proteção de ativos mesmo que os investimentos tivessem sido obtidos através de atividades ilegais fora do país. Em 2000, após ser severamente criticada, a lei foi derrubada.
Desigualdade social
Apesar de parecer um fenômeno que só se vê em filmes e que não tem reais consequências para a vida da maior parcela da sociedade, esses lugares podem ser apontados como um dos intensificadores da desigualdade socioeconômica no mundo e do maior espaço que separa ricos e pobres. Permitem que pessoas e corporações milionárias desviem grande parte de seus ganhos, lícitos e ilícitos, de forma a não pagar impostos, não devolvendo, então, para a sociedade a parte que lhes convém para contribuir para o bem-estar social de todos (PALAN et al, 2010).
São, então, lugares fáceis de se abrir uma empresa com grande nível de confidencialidade e com baixos níveis de taxação, mas são, também, um grande reflexo de uma economia global falha. Um aspecto a se explicitar nestes casos é que quando uma parte não está arcando com as despesas de sua existência, outra camada da sociedade acaba por cobrir esses custos, seja por meio da diferenciação entre residentes e não residentes para pagamento de impostos, taxação regressiva ou subsídios de países mais ricos, o que os tornam perfeitos para que ricos fiquem mais ricos e isentos das responsabilidades que deveriam ser impostas sobre suas riquezas. (PALAN et al, 2010).
O raro é encontrar uma multinacional que não tenha algum tipo de ligação com algum paraíso fiscal, e não o contrário. Ainda segundo estimativas dos autores, cerca de 50% de todos os empréstimos bancários internacionais e 30% do estoque mundial de Investimento Estrangeiro Direto estão registrados nessas jurisdições. (PALAN et al, 2010).
Estados e soberania
Outro aspecto contra intuitivo é que, ao contrário do que pode parecer, os paraísos fiscais são parte integral da economia mundial, e não marginal. São uma criação do próprio sistema de Estados soberanos e não uma prova de sua desintegração. Na realidade, reforça a ideia de que estado e soberania desempenham papel crucial no processo da globalização (PALAN, 1998). Mercados não existem sem regulação estatal, uma vez que governos são essenciais para a criação de normas e regras do funcionamento do mercado e garantia de direitos do mesmo. Paraísos fiscais, sendo estados soberanos com jurisdições próprias, ao passo que garante os direitos do mercado, não o regulamenta (PALAN, 1998 apud PICCIOTO, 1992).
Pode ser considerado uma brecha criada por uma camada da população a quem esse estado das coisas convém. As regras do jogo sempre são criadas por uma minoria poderosa. As regulamentações do mercado foram criadas por uma elite econômica que posteriormente as burlou e os paraísos fiscais são o exemplo perfeito disso. Afinal, esse tipo de jurisdição é uma forma de ameaça à taxação tradicional ou uma acomodação e adaptação do mercado às limitações impostas a ele e aos que são donos dele?
Referências
PALAN, R. (1998) “Trying to Have your Cake and Eating it: How and Why the State System has Created Offshore”, International Studies Quarterly, 42: 625-644.
SHARMAN, Jason. (2010) “Offshore and the new international political economy”, Review of International Political Economy, 17:1, 1-19.
PALAN, Ronen; MURPHY, Richard; CHAVAGNEUX, Christian. “Introduction” IN “Tax Havens: How Globalization Really Works.”, Cornell University, 2010. p. 1-13.
PALAN, Ronen; MURPHY, Richard; CHAVAGNEUX, Christian. “What is a Tax Haven?” IN “Tax Havens: How Globalization Really Works.”, Cornell University, 2010. p. 17-45.
PALAN, Ronen; MURPHY, Richard; CHAVAGNEUX, Christian. “Tax Havens: Vital Statistics” IN “Tax Havens: How Globalization Really Works.”, Cornell University, 2010. p. 68-76.
SHAXSON, Nicholas. “Tackling Tax Havens”. International Monetary Fund Finance & Development. Vol. 56, n. 3. Setembro de 2019.
ZUCMAN, Gabriel; Tørsløv, Thomas; Wier, Ludvig. Missing Profits Database. 2015. Disponível em: <https://missingprofits.world/>. Acesso em: 24 de dezembro de 2019.
“Fortune 500 Companies Hold a Record $2.6 Trillion Offshore”. Institute on Taxation and Economic Policy (ITEP), 2017. Disponível em: <https://itep.org/fortune-500-companies-hold-a-record-26-trillion-offshore/>. Acesso em: 23 de dezembro de 2019.
CURY, Ana. “Investimento de brasileiro no exterior cai, mas cresce em paraísos fiscais”. G1, 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/01/investimento-de-brasileiro-no-exterior-cai-mas-cresce-em-paraisos-fiscais.html>. Acesso em: 23 de dezembro de 2019.
PINTO, Rodrigo. “Ricos brasileiros têm quarta maior fortuna do mundo em paraísos fiscais”. BBC Brasil, 2012. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/07/120722_ricos_evasao_brasil_rp>. Acesso em: 24 de dezembro de 2019.
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