Por Denise Tavares
A pandemia de COVID-19 coloca a emergência da produção e distribuição de uma vacina eficaz contra o vírus causador da doença, SASRS-CoV-2, visto que os efeitos da pandemia têm perpassado as questões de saúde se tornando um problema tanto econômico quanto político. A fim de se resolver essa crise, está sendo mobilizado um enorme esforço na produção rápida de uma vacina eficiente, entretanto essa rapidez é alvo de críticas, em especial no que diz respeito às fases de testagem, que são vistas por alguns como eticamente questionáveis. Assim, a falta de uma regulamentação internacional para a produção de vacinas, em especial a de COVID-19, se torna um obstáculo para a formulação de um produto eficiente e seguro.
Uma das primeiras interferências do internacional na questão de normas éticas para a testagem de fármacos, em especial em humanos, ocorre com o Código de Nuremberg em 1947, resultado do Julgamento de Nuremberg. Visando impedir que os experimentos médicos conduzidos em campos de concentração voltassem a ocorrer, o Código estabeleceu dez normas para a pesquisa em humanos, entre elas: consenso voluntário, evitar dor e sofrimentos desnecessários e o direito do indivíduo de se retirar da pesquisa em qualquer momento, além da determinação que os experimentos só podem ser conduzidos caso ele resulte em um benefício social. O Código, entretanto, não foi adotado oficialmente pela comunidade internacional.
Entre as críticas ao Código de Nuremberg, está a de que ele parecia muito mais uma resposta aos horrores ocorridos nos campos de concentração á uma tentativa de criar um código para a conduta de experimentos médicos, uma vez que não englobava de forma explícita a situação do indivíduo que se voluntariava, nem colocava normas para condução de experimentos que teriam retorno à sociedade e ao sujeito. Em 1964, a Associação Médica Mundial redige a Declaração de Helsinki, criando uma diferenciação em pesquisa terapêutica – aquela voltada para o benefício individual do paciente – e cientifica – visando apenas o ganho de conhecimento – com o intuito de delimitar a forma como cada tipo de paciente seria tratado. No primeiro caso, o consentimento do paciente não é necessário se o pesquisador está agindo no melhor interesse do indivíduo; no segundo caso é necessário o consentimento completo.
Tanto a Declaração de Helsinki quanto o Código de Nuremberg, não tiveram uma adesão oficial da comunidade internacional, porém influenciaram fortemente na criação de leis à nível nacional dos países. Durante a década de 90, haverá a continuidade do cenário internacional em estabelecer normas para a produção e testagem de fármacos em humanos, agora com o protagonismo da pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que será responsável por manuais de conduta e pelo estabelecimento de um “Good manufacturing practice” (GMP).
No que diz respeito ao estabelecimento de regras na área da pesquisa médica, a OMS em conjunto com o “Conselho para Organizações Internacionais de Ciências Médicas” (CIOMS), elabora em 1993 o “Proposed International Guidelines for Biomedical Research Involving Human Subjects (Bioethics Guidelines)”. Ele é considerado o primeiro documento internacional que aborda o problema da condução de testes nos países da periferia global, se preocupando em estabelecer algumas normas importantes para o desenvolvimento de pesquisas em tais países. Algumas especificações são: a comunidade em que o experimento é conduzido também deve receber os benefícios da pesquisa e ela deve passar na revisão ética tanto do país de origem da pesquisa quanto na nação que está hospedando a pesquisa. De forma complementar o “Bioethics Guidelines” a CIOMS criou o “International Guidelines for Ethical Review of Epidemiological Studies (Epidemiological Guidelines)”, que coloca a importância de treinar os profissionais de saúde locais para continuar com o tratamento dos pacientes depois que a equipe de pesquisa volte ao seu país de origem. Ambos os documentos não possuem outro tipo de valor se não o de recomendações, os países não são obrigados a adotá-los.
Ao mesmo tempo que a OMS produzia esses manuais de conduta ética, se desenvolvia também o chamado “Good manufacturing practice” (GMP), tentando criar uma certa padronização técnica na produção e testagem de medicamentos. O GMP é um termo conhecido internacionalmente para o controle e administração da produção, e dos testes de controle de qualidade de alimentos, vacinas, aparelhos médicos etc. Estabelecendo padrões de documentação – como procedimentos operacional padrão e procedimento – validação de todos os processos e aparelhos – para assegurar que todos os processos de produção, lançamento do produto, estocagem, entre outros, são consistentes e seguros. Diferentemente dos guias de normas éticas, os documentos de GMP organizados pela OMS, como o “A WHO guide to good manufacturing practice (GMP) requirements” e mais especificamente para indústria farmacêutica “WHO good manufacturing practices for pharmaceutical products: main principles”; foram adotados em mais de 100 países, pois é uma forma de garantir a procedência do produto o tornando passível de concorrer no mercado.
Coloquei aqui a questão do GMP, pois a atual corrida por uma vacina eficaz contra a doença COVID-19, coloca, também, questões éticas relacionadas a cadeia de produção, que igualmente se conecta com as fases de testes em humanos. A produção de uma vacina consiste em um longo processo que pode durar mais de dez anos, o que chamamos de “estudos clínicos”, que contam com voluntários humanos, só ocorrem após uma série de testes em animais e quando começam, são com uma porcentagem pequena de indivíduos. Na atual busca pela vacina contra o Corona vírus pulou-se os estudos pré-clínicos em animais para ir direto aos testes em humanos e com uma alta participação de voluntários.
Segundo o site do Instituto Butantã os ensaios clínicos na produção de uma vacina são quatro: a “fase I” é o primeiro estudo a ser realizado em seres humanos e tem por objetivo principal demonstrar a segurança da vacina; a “fase II” tem por objetivo estabelecer a sua imunogenicidade; a “fase III” é a última etapa de estudo antes da obtenção do registro sanitário e tem por objetivo demonstrar a sua eficácia. Após a finalização do estudo de fase III e obtenção do registro sanitário – no caso do Brasil ele é dado pela ANVISA – é que a nova vacina poderá ser disponibilizada para a população e a última etapa, a “fase IV” consiste na disponibilização da vacina para a população. É na condução da “fase III” é a etapa em que se tem a testagem em massa de voluntários, e é a mais longa do processo. Ela envolve a injeção da vacina experimental em uma parte do grupo enquanto outra recebe um “placebo”, uma substância neutra sem efeito, para criar um grupo de controle. A emergência da vacina, entretanto, fez com que alguns pesquisadores descartassem esse método ou o substituíssem.
A escolha de um modelo de testagem é outro ponto que tem sido eticamente questionado, em especial o modelo de “Controlled Human Infection Model (CHIM)”. O CHIM consiste em expor, de forma proposital e voluntária, indivíduos saudáveis ao COVID-19, o que aceleraria a produção de uma vacina. O problema reside na questão de expor um sujeito a uma doença que não tem nenhum tratamento ou medicamento para a doença. Além disso, estudos recentes indicaram que a doença afeta as células cerebrais; permitir a infecção delibera dos voluntários não apenas coloca em rico a vida deles como pode haver a exposição uma infecção crônica, com possiblidade de impactos a longo termo, como doenças neurodegenerativas.
Devido aos problemas apresentados, a OMS se esforça para criar uma certa coesão na produção das vacinas, elaborando, por exemplo, o “Feasibility, Potential Value and Limitations of Establishing a Closely Monitored Challenge Model of Experimental COVID-19 Infection and Illness in Healthy Young Adult Volunteers”. E recentemente, no dia 6 de novembro, publicou-se em conjunto com a “International Coalition of Medicines Regulatory Authorities” (ICMRA), uma pequena matéria apontando para a necessidade de um alinhamento regulatório global na produção da vacina contra o COVID-19. Entretanto, esses apelos da OMS são mais pelo momento presente, que uma real vontade de regulamentar o processo de produção de vacinas; a emergência da pandemia também torna difícil a elaboração de qualquer normatização do tema, uma vez que o contexto torna “inevitável” a quebra de protocolos padrões.
Referências Bibliográficas:
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