Imagem em destaque: El País. Raphael Alves/EFE
Por Rafaela Prestes
“Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divorcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos”. – Ailton Krenak (Ideias para Adiar o Fim do Mundo)
As práticas do agronegócio envolvendo desmatamento e queimadas para fins de agropecuária, e o garimpo ilegal para fins de extração de minérios são algumas das praticas de exploração e devastação do meio ambiente que visam a geração de lucro em detrimento de perdas irreconstituiveis de biomas e animais. A saúde humana se torna uma das vítimas dessas práticas predatórias do capitalismo, principalmente de vidas vulneráveis e alvos bem mirados nesse sistema que cria e aplica políticas genocidas, constituindo e reforçando esse racismo ambiental. A saúde indigena é uma das questões centrais nesse tema com o aumento contínuo de tais práticas, direcionando essas explorações em locais de interesse para o capitalismo e as práticas de genocídios em locais de extrema exclusão sistemática. Soma-se a esse cenário o atual momento da pandemia da COVID-19 e os descasos de governos, em especial do atual brasileiro, com discursos e políticas que favorecem tais práticas e agravam as questões de saúde indígena. Dessa forma, o produto visa trazer análises e dados que evidenciam a urgência de mobilizar o assunto.
Falar sobre o racismo ambiental é pensar em locais que são marginalizados pela falta de atenção necessária do poder público e pelas injustiças sociais/ambientais que recaem sobre grupos étnicos vulnerabilizados – devido a construção de séculos de dominação, exploração e discriminação, o que impede a naturalização dessa “vulnerabilização” – e as diversas comunidades discriminadas devido a raça, cor ou origem.
“racismo ambiental é a discriminação racial no direcionamento deliberado de comunidades étnicas e minoritárias para exposição a locais e instalações de resíduos tóxicos e perigosos, juntamente com a exclusão sistemática de minorias na formulação, aplicação e remediação de políticas ambientais.” (Benjamin Franklin Chavis Jr., líder negro pelos direitos civis dos Estados Unidos e quem criou o termo)
Em suas análises, mesmo que tenha surgido a partir da relação entre comunidade negra norte-americana e instalação de resíduos tóxicos no ambiente urbano, o termo se aplica em diversos outros casos e países. Dessa forma, é possível relacionar com locais que estão à margem e povos que são marginalizados no sistema, como pretos, indígenas e povos não-brancos em um geral. É de extrema importância, portanto, analisar em terras indígenas como as instalações desenfreadas de mineradoras, desmatamentos e invasões são uma ameaça direta na saúde.
Os desmatamentos e incêndios provocados pela intervenção humana para fins lucrativos através da agropecuária, estão ganhando um aumento significativo e envolvendo cada vez mais práticas ilegais. Nas últimas três décadas, a região conhecida como pan-amazônica, que ocupa nove países sul-americanos no total, perdeu cerca de 724 mil km² da sua vegetação, o equivalente ao território chileno. Pode parecer pouco perto da imensidão do bioma, mas não se trata de uma questão quantitativa, e sim qualitativa, acarretando em consequências irreconstituiveis. E, paralelamente nesse mesmo período, a área de práticas voltadas para a exploração da agropecuária cresceu cerca de 172%. A soma das explorações de empresas estrangeiras e nacionais, com falas de incentivo – com especial de Jair Bolsonaro – falta de fiscalização e de políticas ambientais adequadas, acabam gerando o enorme desmatamento desse bioma, visando o lucro em detrimento de muitas vidas.
Segundo um relatório do Global Forest Watch – organização que monitora florestas no mundo todo – , países como Brasil, Colômbia, Bolívia e Peru perderam quase 2 milhões de hectares de cobertura arbórea somente no ano de 2019, sendo o Brasil um dos grandes responsáveis e o mais afetado. O aumento dos focos de incêndio nesses últimos anos*, estão diretamente ligados à destruição de florestas, causada pela expansão da fronteira agropecuária.
Queimada em meio a área de floresta próximo a capital Porto Velho. Foto: Bruno Kelly/Amazonia Real.
Segundo um relatório realizado entre o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), o IPAM e a Human Rights Watch, as terras indígenas na região amazônica registraram um aumento de 76% de focos de calor em julho de 2020 em relação ao mês passado. Este relatório avaliou o impacto das queimadas na região tiveram sobre a saúde indígena, que coincidiram com o pico de internações.
“A doença respiratória é uma das grandes causas de mortalidade em povos indígenas, particularmente entre crianças. (…) Em alguns povos, você vê pulmões de crianças – quando fazíamos busca ativa de tuberculose – deteriorados, que passaram por sucessivos processos inflamatórios” (Dra. Sofia Mendonça, especialista em saúde indígena, médica, antropóloga e coordenadora do Projeto Xingu da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo disse na entrevista à Human Rights Watch).
Pesquisadores do ISA (Instituto Socioambiental) ainda apontam que:
“O pico de internações de indígenas por doenças como asma, pneumonia, influenza, bronquite aguda, bronquiolite aguda e outras infecções respiratórias agudas coincide com o período de queimadas da floresta. O motivo é a alta concentração de partículas em suspensão no ar, prejudiciais aos bronquíolos e alvéolos pulmonares, estruturas responsáveis pela respiração.”
O projeto político genocida de Jair Bolsonaro envolvendo o desmatamento, vem reforçando práticas de um verdadeiro extermínio contra indígenas em seus territórios, visto que os ataques e invasões a esses aumentaram mais de 40% no ano passado – segundo dados do Conselho Indigenista Missioneiro (Cimi). Tais invasões são atribuídas a grileiros, garimpeiros e os envolvidos com extrações ilegais de madeiras, práticas que são legitimadas nesse (des)governo e pelo sistema capitalista, atingindo diretamente em questões ligadas à saúde dos que acabam sendo vítimas dessas práticas.
Outra questão central é o garimpo ilegal, que também se espalha na região amazonica sem respeitar fronteiras. A prática que envolve o uso de mercúrio para o processo de extração de ouro, apresenta altos índices de contaminação acima do limite estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O mercúrio acaba por contaminar rios e peixes – fontes de alimentação – atingindo fortemente questões de saneamento básico de pessoas que vivem na região, afetando principalmente os que são marginalizados e negligenciados socialmente, como indígenas, populações ribeirinhas e quilombolas. No final de 2018, a Raisg (Rede Amazônica de Informação Socioambiental), lançou um relatório que mostra as áreas mais afetadas pela atividade, incluindo as Unidades de Conservação de Terras Indígenas. Os dados apontam para um expressivo número de contaminações que vão se estendendo em efeito cascata, principalmente nas regiões da amazônia brasileira, equatoriana, venezuelana e peruana.
Os Yanomami, localizados na região entre norte do Brasil com sul da Venezuela, são fortemente ameaçados com as atividades do garimpo ilegal, onde seguem espalhando violências e graves problemas sociais e sanitários. Um estudo mostrou que mais da metade da população analisada na região apresentou índices de contaminação por mercúrio acima do limite. Além de prejudicar as próprias pessoas e trabalhadores que praticam o garimpo, a contaminação atinge fortemente os indígenas que são expostos a essas contaminações principalmente através da água, acarretando em febres, intoxicação alimentar, e com o tempo causando problemas graves neurológicos.
Na região da amazônia venezuelana, o presidente da associação Kapé Kapé, Armando Obdola, quem luta pelos direitos das comunidades indígenas desses territórios, realizou uma série de entrevistas com indígenas para medir o impacto dessa atividade em questões ambientais e de saúde⁴ – questões essas que também ocorrem no território brasileiro de maneira mais gritante, ainda mais diante de um governo autoritário atual: “(…) Tudo está poluído, lá qualquer água que se bebe está poluída e você começa a pegar a diarreia. Tem muita criança doente, tem muita criança em todos esses garimpos”, diz um professor de 33 anos da etnia jivi que trabalhou nos garimpos durante dois meses.“Não voltaria mais para lá porque foi muito sofrimento. A febre, fiquei todo doente, dor de cabeça todo dia, trabalho das seis [da manhã] às seis [da tarde]: lá não tem descanso”, acrescenta.
O garimpo se torna, assim, um agravante principalmente agora em tempos de pandemia, uma vez que se tornam os principais vetores da COVID-19 para dentro dessas regiões com toda a frequência de movimentação de barcos e aviões. Os casos de COVID-19 dispararam em comunidades como a de Wáikas, no território indígena Yanomami, região com mais invasões e atividades de garimpo e, ao mesmo tempo, onde apresentou uma das maiores incidências da COVID-19 – essa região apresenta 30% mais chances de transmissão do vírus do que o visto em comparação com outras regiões de Roraima.
Ademais, a combinação de doenças respiratórias causadas pelas altas das queimadas e a atual COVID-19 se torna uma questão também urgente, tendo em vista o agravamento da parte respiratória causada pelo novo coronavírus. Tanto os danos ambientais e fumaças das queimadas quanto o vírus não reconhecem fronteiras, cujos impactos se estendem para comunidades e países vizinhos. Importante ressaltar que tal vírus também teve sua origem a partir das práticas capitalistas do agronegócio e a exploração ambiental, mas que também abriu mais portas para os discursos de ódio e violência ligados à xenofobia e racismo, daqueles que se esforçam em colocar a culpa em pessoas amarelas.
Diante das subnotificações de dados oficiais de casos de COVID-19 em indígenas, organizações da sociedade civil em conjunto com a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) vêm realizando levantamentos sobre tais dados. Esses dados se mostram superiores aos apresentados pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), que contabiliza somente casos em terras indígenas homologadas, desconsiderando as pessoas indígenas que vivem fora de terras indígenas.
Considerações finais
É possível perceber então como essas práticas do agronegócio e do extrativismo dos recursos naturais para fins econômicos de lucro servem aos interesses do capitalismo em detrimento de vidas. O racismo ambiental se mostra presente, tendo em vista as inúmeras injustiças sociais e ambientais que recaem de forma estrondosa sobre comunidades discriminadas. A vulnerabilização devido a construção de séculos de dominação e exploração, faz com que essas pessoas estejam mais expostas às doenças e ao contágio de resíduos tóxicos altamente perigosos, tendo em vista ainda as práticas predatórias vindas desde as invasões da colonização e todo o contato invasivo do homem branco, cujas consequências são vistas até os dias atuais.
Portanto, existe uma lógica de poder na escolha desses locais para fins de exploração, atingindo questões de saúde, e que são agravadas, especialmente no caso do Brasil, pelas políticas genocidas e legitimadas, desde falas como “passar a boiada” do atual Ministro do Meio Ambiental, Ricardo Salles, até como os esforços de Bolsonaro em culpar ONGs e as próprias vítimas das explorações pelas destruição ambiental. Em um momento de pandemia, onde um dos Estados com maior negligência por parte do governo em relação a infraestrutura da saúde e com mais casos de morte por COVID-19, o Amazonas, este agora passa por um colapso de falta de oxigênio em hospitais da região de Manaus, principalmente. A Venezuela, um dos países sul americanos que melhor está apresentando medidas eficazes durante a pandemia, se dispôs a realizar doações de oxigênio para Manaus. Dessa forma, fica claro como, em um (des)governo como esse, o projeto criminoso não parece se preocupar em dar prioridade com a saúde da população.
“Nós, os povos indígenas, estamos resistindo ao ‘humanismo’ mortífero do ocidente há cinco séculos; estamos preocupados agora com vocês brancos, que não sabemos se conseguirão resistir! Ele (Ailton Krenak) falava aqui especificamente do Brasil, então sob a ameaça, depois concretizada, da chegada ao poder de um governo brutalmente ecocida e etnocida. Mas sua inquietação irônica se estende, bem entendido, à situação de todo o chamado ‘mundo civilizado’ hoje sob a dupla e conectada ameaça de um revival fascista e de uma catástrofe ecológica global” – Ideais para Adiar o Fim do Mundo.
* Em agosto de 2019, o Inpe registrou 30.901 focos de incêndio no bioma, acima da média histórica nos últimos vinte anos.
Referências:
GOLDMAN, Liz; WEISSE, Mikaela. “Technical Blog: Global Forest Watch’s 2018 Data Update Explained”. Acesso em: https://blog.globalforestwatch.org/data-and-research/technical-blog-global-forest-watchs-2018-data-update-explained/
“O ar é insuportável” Os impactos das queimadas associadas ao desmatamento da Amazônia brasileira na saúde. Acesso em: https://ipam.org.br/wp-content/uploads/2020/08/brazil0820pt_web.pdf
Impactos da garimpagem de ouro na Amazônia. Acesso em:https://imazon.org.br/impactos-da-garimpagem-de-ouro-na-amazonia-n-2/
Instituto Sociambiental. “Fumaça de incêndios impulsiona internações de indígenas, mostra estudo”. Acesso em:https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/fumaca-de-incendios-impulsiona-internacoes-de-indigenas-mostra-estudo
“Desmatamento e Covid-19 explodem em Terras Indígenas mais invadidas da Amazônia”. Acesso em:https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/desmatamento-e-covid-19-explodem-em-terras-indigenas-mais-invadidas-da-amazonia
“Levada por garimperos, Covid-19 se espalha em aldeias Yanomami”. Acesso em:https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/levada-por-garimpeiros-covid-19-se-espalha-em-aldeias-yanomami
RIBEIRO, Stephanie; CLAIRE, Marie. “Racismo ambiental: o que é importante saber sobre o assunto”. Acesso em: https://www.geledes.org.br/racismo-ambiental-o-que-e-importante-saber-sobre-o-assunto/?gclid=Cj0KCQiAh4j-BRCsARIsAGeV12DGL5DxB0zhgJo9BV9lwjFZt7XntSXOQJs7JnEfU5CjLOqcdlHpqqgaAm7KEALw_wcB
COSTA, Camila. “Amazônia: o que ameaça a floresta em cada um de seus 9 países?”. Acesso em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51377232
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