Em abril de 2014, houve a memória dos 20 anos do genocídio em Ruanda, caracterizado pelo massacre dos tutsis e hutus moderados e que resultou na morte de em torno de 800 mil pessoas nos aproximadamente cem dias de sua duração. Desde então, surgem diversos relatos e precipitam dados que parecem dar conta dos “avanços” que o país teria feito desde então. Pretende-se apresentar alguns desses “avanços”, pontuando simultaneamente para as suas limitações e para os desafios do pós-genocídio que, de forma geral, recaem sobre a ideia de legados de uma justiça de transição no país.
Enquanto em 1993 a população abaixo do nível de pobreza era de 51,2%, evidenciando que grande parte da população, em especial os hutus, possuía o objetivo de ascender socialmente, em 2011 tal população se reduziu para 44,9%, demonstrando uma melhora significativa para o país (Figura 1). A última estimativa de 2015 da população abaixo do nível de pobreza em Ruanda é de 39,1%.[i]
Figura 1 – Gráfico da população abaixo do nível de pobreza em Ruanda de 1993 até 2011 (Index Mundi, 2016).[ii]
Em 1995, apenas um ano após o genocídio, o PIB per capita era de US$ 575 e a taxa de alfabetização era de 48%. Em 2013, o PIB per capita passou para US$ 1,5 mil e a taxa de alfabetização em 2010 passou para 71,1%.[iii] Ademais, além das melhorias no âmbito econômico, o governo passou a proibir a identificação de etnia dos documentos de identidade, com o objetivo de inviabilizar novo conflito entre tutsis e hutus e de desconstruir a ideia de superioridade dos primeiros com relação aos segundos.
Sabe-se que a justiça de transição (JT) dispõe de mecanismos a fim de possibilitar, em Estados que tenham passado por sérios conflitos, a reestruturação da paz e a construção de uma democracia. A utilização de mecanismos internos e externos em Ruanda caracterizou um modelo tipicamente híbrido de justiça de transição. A Missão de Assistência da ONU para Ruanda (UNAMIR) e o Tribunal Ad Hoc para Ruanda (TPIR) podem ser assumidos como mecanismos externos cujos mandatos se relacionavam com JT, enquanto os tribunais de Gacaca foram os principais mecanismos internos adotados. Muito embora localizados em distintos níveis, os dois últimos mecanismos carregam características criminalizantes e incidem sobre aqueles que foram tomados e/ou se assumiram como perpetradores das graves violações de direitos humanos praticadas no país.
A justiça de transição externa pareceu apresentar diversas falhas em Ruanda. A UNAMIR, apesar de ser uma missão de paz, encontrou dificuldades no envio de tropas e recursos. O TPIR, que tentou julgar os responsáveis pelo genocídio, apesar de ser constituído por juristas de diversos países, não se mostrou completamente neutro, destacando-se a falta do contato com a própria população ruandesa.
Por outro lado, os Tribunais de Gacaca tiveram um destaque na realização da justiça de transição interna, uma vez que as tentativas de reconciliação nacional foram lideradas pelos próprios membros da sociedade do país. O intuito foi o da reconciliação de ambas as etnias envolvidas no conflito, fato evidenciado, por exemplo, na possibilidade de atenuação de diversas sentenças através de pedidos públicos de perdão, confissões ou serviços comunitários. Porém, tais tribunais não estão isentos de críticas, uma vez que os membros da Frente Patriótica de Ruanda (FPR), grupo oposicionista ao governo hutu de Habyarimana e composto principalmente por tutsis, não sofreram julgamentos.
Nesse sentido, questiona-se se é possível considerar que a justiça de transição em Ruanda fez com que o país superasse a ideia de supremacia de uma etnia com relação a outra e, consequentemente, criasse as condições necessárias para que o país tivesse um considerável desenvolvimento desde então. Além disso, indaga-se se os dados apontados seriam suficientes para estabelecer um legado positivo em termos de justiça de transição para o país.
De fato, as melhorias pelas quais o país passou são nítidas se tomados os dados apresentados. A justiça de transição possibilitou a superação de um sentimento de “revanchismo” que possivelmente poderia se instaurar. Contudo, há algumas considerações que devem ser feitas acerca dos desafios que seguem marcando a realidade ruandesa.
Apesar dos avanços enaltecidos pelos indicadores como redução da população abaixo do nível de pobreza, aumento do PIB e da taxa de alfabetização, a desigualdade de renda em Ruanda é a maior dentre todos países da África Oriental. É necessário lembrar que no período da colonização belga, a maioria dos tutsis esteve ligada a uma emergente classe aristocrática, enquanto a maioria dos hutus (que sofria pesadas jornadas de trabalho) era proprietária de terra. Assim, a despeito da população não mais ser, ao menos claramente, caracterizada pela divisão tutsis/hutus, é necessário que haja esforços em direção à superação das bases que caracterizavam essa divisão histórica, garantindo maiores oportunidades para a população como um todo.
Somando-se a isso, desde 1994, quando a FPR assume o poder, são visíveis as diversas tentativas de impedir com que um novo conflito aconteça. Para isso, é aprovada a lei da “Ideologia do genocídio” que, na tentativa de criminalizar discursos de ódio, acaba muitas vezes proibindo a liberdade de expressão. A Lei dos Media de 2009, aprovada um ano antes de Kagame ser eleito presidente, reprimiu as críticas ao governo. As duas leis aprovadas mostram que há um receio de que um governo democraticamente eleito que represente a maioria hutu volte a perseguir a minoria tutsi e de que um extremismo étnico possa emergir novamente se políticas de concorrência forem reintroduzidas na sociedade ruandesa.
Finalmente, é possível concluir que, apesar do legado positivo da justiça de transição no país, evidenciado pelos avanços que Ruanda obteve, ainda há uma persistente desigualdade de renda e pouca liberdade de expressão. A tentativa do governo de proibir novos atos de violência não deve colocar em risco o exercício da democracia no país, tampouco deve ser utilizada como pretexto para a manutenção do poder do governo atual. Ruanda aponta, no presente momento, para além dos avanços, desafios persistentes no pós-genocídio que, a despeito de não serem igualmente enaltecidos, refletem as falhas existentes da justiça de transição no país.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FONSECA, Danilo Ferreira Da. Ruanda: a produção de um genocídio. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013
FUSINATO, Cristina Prachthäuser. Entre o local e o global: avanços e desafios do modelo de justiça de transição aplicado em Ruanda no pós-genocídio. Monografia – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014
McDoom, Omar (2011) Rwanda’s exit pathway from violence: a strategic assessment. World development report: background case study, 62054. World Bank.
ORTIZ, Fabíola. Vinte anos após o genocídio, Ruanda ainda tenta trazer refugiados de volta para casa. Opera Mundi. Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/34710/vinte+anos+apos+genocidio+ruanda+ainda+tenta+trazer+refugiados+de+volta+para+casa.shtml> Acesso em 5 de junho de 2016
GOMES, Vinícius; PIVA, Ítalo. Ruanda, 20 anos depois. Opera Mundi. Disponível em: < http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/36933/> Acesso em 5 de junho de 2016
SANCHEZ, Giovana. Sob a sombra da repressão, Ruanda se reconstrói 20 anos após o genocídio. G1. Disponível em: < http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/04/sob-sombra-da-repressao-ruanda-se-reconstroi-20-anos-apos-genocidio.html> Acesso em 5 de junho de 2016
WELLE, Deutsche. Ruanda: 20 anos após o genocídio, sinais de reconciliação. Carta Capital. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/internacional/vinte-anos-apos-o-genocidio-os-sinais-da-reconciliacao-em-ruanda-7082.html> Acesso em 5 de junho de 2016
Amnistia Internacional. Não é seguro falar: restrições à liberdade de expressão no Ruanda. Disponível em: <http://www.amnistia-internacional.pt/files/RestricoesLiberdadeExpressaoRuanda.pdf> Acesso em: 5 de junho de 2016
[i] Central Intelligence Agency. Disponível em: www.cia.gov Acesso em 3 de junho de 2016
[ii] Base de dados Index Mundi. Disponível em: www.indexmundi.com Acesso em 3 de junho de 2016
[iii] Base de dados Index Mundi. Disponível em: www.indexmundi.com Acesso em 3 de junho de 2016
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