Foto em destaque: Mídia Ninja / Mobilização Nacional Indígena
Por Isabella Vieira
O Brasil vêm passando por profundas crises ambientais e de direitos humanos desde que o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, tomou posse em janeiro de 2019. Em um pouco mais de um ano no poder, já é possível constatar uma série de retrocessos: o crescente aumento do desmatamento da Amazônia, ataques institucionais e apoio a invasões ilegais a territórios indígenas, desmantelamento de instituições ambientais, redução do licenciamento ambiental e crescente influência da bancada ruralista e do lobby da mineração para atuar em áreas demarcadas.
Em abril de 2020, o desmatamento na Amazônia atingiu o maior nível em 10 anos, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon)[1], sendo que os primeiros meses do ano foram marcados por profunda devastação da floresta – ao todo, foram desmatados 2.032 km² em cinco meses, total equivalente a uma área 33% maior do que a cidade de São Paulo[2]. Em termos de desmantelamento institucional, três casos são os mais representativos: a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão responsável pela identificação, delimitação e demarcação de terras indígenas, teve a sua atribuição transferida ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), atualmente liderado por radicais anti-indígenas; o Ministério do Meio Ambiente do Brasil (MMA) sofreu cortes devastadores, reestruturação e perda de autonomia; o Ministério da Agricultura foi entregue à Tereza Cristina, uma das ruralistas mais influentes do Brasil e com longa história de conflito com as comunidades indígenas, e ficou encarregada do manejo florestal, minando atividades de proteção das florestas nativas, entregando-as aos interesses do agronegócio e outros atores anti-ambientais e reprimindo as atribuições do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), principal órgão de fiscalização responsável por crimes ambientais. Com tudo isso, não está apenas em risco o meio ambiente, mas também as vidas dos povos indígenas e comunidades tradicionais que habitam nessa região: territórios titulados dos 305 povos indígenas distintos do Brasil compreendem 23% da Amazônia brasileira, que a administram com responsabilidade e de forma sustentável e a consideram como seu lar, tendo suas histórias e tradições diretamente ligadas à terra. Diante desse contexto, os povos indígenas da Amazônia, principalmente as suas lideranças, estão cada vez mais sujeitos à sofrerem ataques violentos e repressão por simplesmente defenderem os seus direitos e suas terras[3].
Agentes do mercado global são imprescindíveis dentro das dinâmicas de perpetuação das violações de direitos dos indígenas e das florestas: comerciantes de commodities, empresas norteamericanas e europeias financiam e obtêm recursos de empresas brasileiras que atuam diretamente no desmatamento, além de consumidores do Norte global que fomentam esse mercado por meio da aquisição de produtos advindos dessas dinâmicas e acabam por impulsionar a destruição que as florestas e seus povos vêm sofrendo.
Embora o Estado brasileiro possua deveres públicos referentes aos povos indígenas e ao meio ambiente estipulados pela Constituição Federal de 1988, como o de reconhecer aos índios os direitos originários sobre as terras que ocupam, “competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” segundo o artigo 231[4] e o de “defender e preservar um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações” de acordo com o artigo 225[5], o Estado está cada vez mais assumindo o papel de violador dos direitos ambientais e humanos e se tornando cúmplice desses crimes, pregando a impunidade em prol de interesses econômicos dos atores do mercado global na região.
REDES TRANSNACIONAIS DE ADVOCACY
Diante da emergência de casos de violações de direitos humanos em contextos onde Estado não dá conta de proteger suas populações das violações de direitos humanos – ou é cúmplice dessas violações – e há escassez de canais de interlocução desse com a população, atores da sociedade civil viram a necessidade de se organizarem para atuar de forma alternativa à esses problemas na esfera transnacional e recorrer à solidariedade internacional. Assim, entre os anos de 1968 e 1993, surgiram as chamadas redes transnacionais de advocacy, que são redes de interações entre atores não-estatais, Estados e organizações internacionais estruturadas em redes visíveis na política internacional e possuem como objetivo amplificar a nível internacional vozes que são suprimidas em suas próprias sociedades, de forma que possam ecoar de volta a seus próprios países. A atuação dessas redes também faz com que sejam formados novos links entre atores da sociedade civil, Estados e organizações e sejam multiplicados os canais de acesso desses atores ao sistema internacional[6].
Apesar de cada rede de advocacy possuir suas próprias particularidades, podendo assumir diferentes formatos e formas de atuação, todas elas são caracterizadas por alguns aspectos em comum: a centralidade de valores e princípios; a convicção de que indivíduos têm o potencial de fazer a diferença; o uso criativo da informação e, enfim, o emprego de atores não-estatais em estratégias políticas sofisticadas para direcionar a campanha de mobilização internacional. Buscando mudar o comportamento dos Estados e organizações internacionais, os atores das redes de advocacy trazem novas ideias, normas e discursos para o debate da política internacional, além de servirem como fontes de informação e testemunhos, e têm a habilidade de fazer com que atores internacionais não-tradicionais mobilizem estrategicamente informações para ajudar a criar novas questões, além de persuadir e pressionar governos e organizações internacionais para a implementação de novas normas, monitorando o seu cumprimento por meio de padrões internacionais. Com essas campanhas de mobilização, as redes contribuem com a mudança de percepções que os Estados e atores sociais têm de suas identidades, interesses e preferências, transformando discursos em procedimentos, políticas e novos comportamentos[7].
O CASO DA JORNADA SANGUE INDÍGENA – NENHUMA GOTA A MAIS DA APIB
Perante a impunidade do Estado quanto às crescentes devastações do meio ambiente e ameaças aos povos indígenas do Brasil, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), uma instância de aglutinação de referência nacional do movimento indígena no Brasil que congrega uma série de organizações indígenas regionais e que tem como missão a “promoção e defesa dos direitos indígenas, a partir da articulação e união entre os povos e organizações indígenas das distintas regiões do país”[8], iniciou em 2019 a construção de uma rede de advocacy a fim de recorrer a instâncias internacionais por apoio à causa indígena e ambiental.
A rede de advocacy da APIB foi instaurada a partir da “Jornada Sangue Indígena – Nenhuma Gota a Mais”. A Jornada consistiu numa iniciativa onde uma comitiva composta por sete lideranças do movimento indígena brasileira representantes de diferentes povos percorreu, entre outubro de novembro de 2019, por 18 cidades de 12 países da Europa durante 35 dias, passando por importantes espaços de diálogo e ações de impacto político junto à opinião pública europeia para chamar a atenção do mundo para o momento grave que o Brasil vive. A campanha teve como objetivo informar autoridades e mobilizar a opinião pública sobre a origem dos produtos brasileiros que são produzidos em áreas de conflitos ou em terras indígenas e originados dessas dinâmicas de violações de direitos[9].
Segundo lideranças indígenas que compuseram a Jornada,
“A viagem será uma campanha de diálogo, pressão, denúncia, divulgação e conscientização da sociedade europeia do contexto que os povos indígenas hoje vivem no Brasil, uma realidade que ameaça a sobrevivência dos povos da floresta e a vida do planeta” Articulação dos povos indígenas do Brasil (APIB). Comitiva de lideranças indígenas irá à Europa denunciar violações no Brasil. 2019.
Foto: Banner oficial da Jornada Sangue Indígena – Nenhuma Gota a Mais (APIB)
A jornada teve início na Itália e passou pela Alemanha, Suécia, Noruega, Holanda, Bélgica, França, Portugal, Reino Unido e Espanha. Durante o percurso, foi realizada uma série de encontros com autoridades e lideranças políticas, deputados do Parlamento Europeu e da bancada verde, alto comissionado de órgãos de cooperação internacional, empresários, tribunais internacionais, ativistas, ambientalistas e artistas[10].
Alguns dias antes do início da Jornada, a APIB publicou o relatório “Cumplicidade na Destruição: como os consumidores e financiadores do norte permitem o ataque do governo Bolsonaro à Amazônia Brasileira” que tem por objetivo expor os atores globais que financiam as atrocidades cometidas no Brasil e consomem os produtos derivados dela. O relatório foi utilizado como um recurso importante para a conscientização dos políticos e sociedade acerca de quais são os financiadores e importadores presentes nos respectivos países e que colaboram com os retrocessos na Amazônia.
Principais importadores, financiadores e investidores que atuam na Amazônia dos países percorridos pela comitiva da APIB na Jornada Sangue Indígena
Para desafiar esses atores cúmplices da destruição da Amazônia e em busca de justiça social e ambiental, a APIB demandou por solidariedade da comunidade internacional à causa indígena por meio de um boicote global de commodities brasileiras associadas a abusos dos direitos humanos dos povos indígenas e destruição ambiental. Nesse tipo de atuação, considera-se que tanto o setor privado quanto os cidadãos engajados na região podem influenciar consideravelmente na agenda destrutiva do governo Bolsonaro no Brasil. A partir disso, suas demandas buscam moderar o comportamento do setor agroindustrial como um meio de deter o ataque de Bolsonaro, proteger e restaurar as salvaguardas ambientais e os direitos humanos.
Além da mobilização e conscientização sobre da causa indígena e ambiental no Brasil, o relatório também apresenta uma série de recomendações aos atores que estão envolvidos nesse processo de como agirem a partir de então para colaborar com a causa.
Para as instituições financeiras, a APIB recomenda que:
“Todas as instituições financeiras com investimentos em empresas que operam na Amazônia devem se comprometer com uma política de não desmatamento (…) e se não puderem ou não quiserem cooperar com os requisitos, ou se violar uma norma, a instituição financeira deve cessar sua relação com a empresa” Articulação dos povos indígenas do Brasil (APIB). Cumplicidade na Destruição: como os consumidores e financiadores do norte permitem o ataque do governo Bolsonaro à Amazônia Brasileira. 2019.
Recomenda-se às empresas importadoras que implementem políticas de desmatamento, adotem medidas de diligência para que a madeira seja cortada legalmente e não degradem florestas nem violem direitos humanos, sejam transparentes e disponíveis ao público com padrões de rastreabilidade estabelecidos e reconheçam que o sistema brasileiro de licenciamento não é suficiente para garantir a legalidade. Para os políticos europeus, é recomendado que proponham novas leis que garantam que os produtos vendidos na União Europeia não estejam sustentando a destruição da Amazônia, obriguem as empresas a rastrear a origem das florestas ou dos produtos agrícolas que importam, devendo monitorar e responder às violações de direitos humanos. E, enfim, quanto às organizações aliadas, recomenda-se que sejam conduzidos novos estudos independentes sobre as cadeias de suprimentos e elos financeiros entre empresas do norte e empresas brasileiras, que colaborem com as atividades de campanha e incentivem a Comissão Europeia a adotar as recomendações políticas sugeridas pelo relatório[11].
CONCLUSÃO
Dado o exposto acerca das violações ambientais e de direitos humanos sofridas pelos povos, a a cumplicidade por parte do Estado, o esgotamentos de vias internas de solução e levando em consideração a crescente interconexão entre atores estatais e não-estatais no mundo globalizado, atesta-se que há uma tendência a busca de soluções alternativas por parte da sociedade civil. Com o surgimento das redes transnacionais de advocacy, é esperado que atores da sociedade civil se organizem cada vez mais em estruturas de rede em busca de solidariedade internacional quanto a diferentes lutas e temáticas, formando assim um novo espaço transnacional de luta e reivindicação pelo cumprimento dos direitos humanos a níveis doméstico e internacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] G1. Desmatamento da Amazônia em abril foi o maior em 10 anos, diz instituto. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/05/18/desmatamento-da-amazonia-em-abril-foi-o-maior-em-10-anos-diz-instituto.ghtml [2] UOL. Desmatamento na Amazônia este ano é o maior desde 2015, aponta Inpe. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2020/06/12/desmatamento-na-amazonia-e-o-maior-desde-2015-aponta-inpe.htm [3] ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). Cumplicidade na Destruição: como os consumidores e financiadores do norte permitem o ataque do governo Bolsonaro à Amazônia Brasileira. 2019. Disponível em: http://apib.info/files/2019/05/Cumplicidade_Na_Destrui%C3%A7%C3%A3o.pdf. [4] Artigo 231 da Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_08.09.2016/art_231_.asp [5] Artigo 225 da Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_225_.asp [6] KECK, Margaret E.; SIKKINK, Kathryn. Activists Beyond Borders: Advocacy Networks in International Politics. 1. ed. Ithaca e Londres: Cornell University Press: 1998. [7] Ibidem. [8] ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). APIB: Quem somos. Disponível em: http://apib.info/apib/ [9] ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). Comitiva de lideranças indígenas irá à Europa denunciar violações no Brasil. 2019. Disponível em: http://apib.info/2019/10/09/comitiva-de-liderancas-indigenas-ira-a-europa-denunciar-violacoes-no-brasil/. Acesso em: 31 maio 2019. [10] Ibidem. [11] Ibidem.
Comments