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Narcotráfico e Território: do local ao global

Por: Maiara Santiago

Desde 1980 a Colômbia teria seu território, e as dinâmicas que nele se passam, alterado pelas constantes e intensas ações do narcotráfico e dos conflitos armados. Tais movimentações geraram fragmentações no espaço de institucionalidade do Estado colombiano, rompendo com uma lógica territorial pré-estabelecida, criando novas fronteiras, transformando e resignificando os lugares com essa nova força de poder insurgente.

Ao longo do tempo este espaço passou a exprimir os conflitos entre grupos movidos pelo narcotráfico e o Estado, apresentando-se, para ambos, como fundamental aparato para sobrevivência. A convivência conflituosa destes polos opostos de poder dá origem as chamadas fronteiras invisíveis, que passam a dividir o território nacional entre domínios ilícitos e legais, culminando no que a geopolítica contemporânea descreve como terras incógnitas e gerando um processo de bankerização social.

 Nota-se, no entanto, que tais dinâmicas internas são também responsáveis por reflexos externos, que resultam na posição do narcotráfico como uma das principais ameaças a segurança internacional. Dessa forma, ao se traçar o caminho percorrido por este fenômeno do local ao global, seguindo as suas ações ao transfigurar a lógica territorial colombiana, é que consegue-se observar a forma como se dá sua relação com o aparato estatal e como esta, transformada por tais dinâmicas, passa a ser guiada pelo sistema ao se inserir a cooperação transnacional.

Do local ao global

O território é constituído pelas relações de poder que se estabelecem no espaço, este não é vazio e sim uma construção que adquire significado através do poder, ou seja, é formado através do conflito. Sendo assim, Rocha (2017) destaca que para Haesbaert existe uma conotação tanto simbólica quanto material para este território, uma vez que etimologicamente sua palavra remete a ideia de dominação da terra e inspiração ao terror, retratando esta noção de que nasce a partir do conflito disseminado pelo espaço. Com isso, tem-se que “toda relação social, econômica, política e cultural é marcada pelo poder, pois são relações que os homens mantém entre si nos diferentes conflitos diários” (ROCHA, 2017, p.4), sendo esta relação de poder que delimita o território e, ao mesmo tempo, o transforma em um instrumento para exercício deste mesmo poderio.

Historicamente, tal poder é apropriado pelo Estado que passa a controlar e marcar os limites do território por meio de sua jurisdição e pelo estabelecimento de suas instituições. Porém, assim como tantos outros movimentos, o narcotráfico surge como uma força que se opõe ao poder do Estado, se disseminando e ampliando seu domínio por espaços empobrecidos e fragilizados, onde se identifica constantemente uma ausência estatal, sendo ela proposital ou não. Tal movimento ascende com uso extremo da violência e com a acumulação acelerada de capital proporcionada pelo tráfico de entorpecentes, fatores estes que se caracterizam como as armas essenciais para o exercício do seu poder em zonas ocupadas e para o embate pela ampliação do mesmo.

Desse forma, o narcotráfico atua desconfigurando e rompendo as fronteiras e territorialidades impostas pelo Estado, criando novos limites e territórios geridos por uma institucionalidade ilícita coexistente com a legal, ou seja, são locais movidos por suas regras, seus valores, sua autoridade e seu controle. Os conflitos que ocorrem por conta dessas dinâmicas eram constantes, principalmente, entre as décadas de 1980 e 1990, com a existência dos cartéis de Cali e Medelín e dos grupos guerrilheiros e paramilitares, alcançando uma taxa de homicídio de 80 por 100 mil habitantes em 1991. Nota-se, contudo, através dos estudos realizados por Forensis em 2017, que os índices de violência vêm diminuindo como um todo no país, possuindo no último ano uma taxa de homicídio de 52,68 por 100 mil habitantes. Porém, este mesmo estudo ainda observa que a grande maioria dos casos acontece pelo uso de armas de fogo (71,66%), em vias públicas (55,55%) e em assentos municipais (73,48%), com o maior fator de vulnerabilidade sendo das pessoas viciada em alguma droga natural ou sintética (6,46%).

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Fonte: Fundación Paz & Reconciliación

Esta presença do narcotráfico passa a fundar novas fronteiras internas no território, cujas Amorim (2018) refere-se como fronteiras invisíveis, limites que não estão demarcados em nenhum lugar, mas que não podem ser ultrapassados sem consequências violentas, demonstrando claramente “a existência de um território informal ilegal” (AMORIM, 2018, p.88), onde os grupos reafirmam e disputam sua representatividade através de demonstrações de violência. Nestes espaços o Estado não mais exerce seu controle total e, geralmente, a representação institucional que mais se aproxima é a policial, esta, inclusive, em muitos casos não ultrapassa tais barreiras intangíveis, sendo este, portanto, o contexto onde se reflete os conflitos pelo poder territorial.Após o desmonte dos principais cartéis do país, evidencia-se um fenômeno de fragmentação da rede do tráfico, surgindo vários grupos ilegais de menor porte e com diversos tipos de atuação, apresentando-se tanto como forças regionais quanto como forças locais. Juntando-se a isso os movimentos guerrilheiros, é comum se ver hoje a existência das chamadas Bandas Criminais, conhecidas como Bacrins, grupos colombianos derivados e influenciados por estes fenômenos que agem de forma mais local. Estes são responsáveis hoje pelos conflitos que se dão em território nacional contra o Estado, sendo estes uma chave essencial para explicar e compreender a existência dos homicídios da atualidade. Os quais, de acordo com a Fundación Paz & Reconciliación, totalizaram, em 2014, cerca de 215 apenas com ligação ao sicariato, um reflexo evidente da entrada dessas novas organizações no ambiente urbano, apresentando atividades em 275 municípios de 27 departamentos, tais como as cidades de Medellín e Cali.

A desigualdade social é um fator demonstrativo desta divisão que ocorre nas cidades, as quais são separadas entre áreas mais ricas e seguras e zonas mais pobres e inseguras, onde se desenvolve uma dominância ilegal. Para tal distinção, são usados como entraves entre um lado e outro tanto o próprio planejamento urbano, como por exemplo, as grandes rodovias, ruas e vielas escondidas, o transporte público restringido por horários de funcionamento e check-points policiais ou de milicianos, quanto as próprias características naturais do local, como encostas e morros garantidos a periferia e as planícies asseguras para o centro desenvolvido.

Segundo Amorim (2018), estas organizações urbanas apresentam-se em municípios colombianos como Bogotá, Cali, Buenaventura e Medellín, onde o tráfico de drogas passa a rotinizar o cotidiano da população, a qual possui o “caminhar mais apressado é ditado aparentemente pelo medo. Há consciência de um risco, ele está inscrito nas condutas diárias” (AMORIM, 2018, p.83), como não andar à noite na rua ou locais desconhecidos, sempre manter o mesmo itinerário e voltar cedo para casa. Infelizmente, a disseminação da guerra às drogas acaba atingindo em peso a população carente residente nestes locais, afastados e excluídos, caídos no esquecimento ficam a mercê desses combates e expostos a uma transterritorialidade.

A “transterritorialidade é o transitar entre territorialidades. Mover-se entre regras, crenças e saberes distintos, por vezes, complementares, por outras, concorrentes” (AMORIM, 2018, p.53). Assim, vivem estes moradores que transitam entre as institucionalidades legal, do Estado, e ilegal, do narcotráfico, convivendo com institucionalidades concorrentes imersas em uma constante competição, coexistindo entre si. Além disso, a situação se torna ainda mais complexa com a existência de múltiplos polos que reivindicam pedaços de um território fracionado, as diversas Bacrins, que acabam concebendo a multiterritorialidade “como resultado de um espaço multifacetado, multiescalar e fragmentado” (AMORIM, 2018, p.55), com o qual a população convive diariamente.

Desse modo, as fronteiras invisíveis delimitam as áreas de influência legal e ilegal, além de dividir e separar o próprio ilegal entre suas diversas existências. Estes territórios comandados por uma lógica ilícita podem ser interpretados, na visão de Font e Rufí (2006), como as novas “Terrae Incognitae”. Estas caracterizam-se como territórios que apresentam a ausência do Estado, onde sua lógica global de poder não chega e, assim, tornam sua existência enigmática a ele, funcionando “com uma lógica interna própria à margem do sistema a que teoricamente pertencem” (Font e Rufí, 2006, p.151). Essa dinâmica criada pela coexistência caótica desses dois poderes territoriais se insere na geopolítica contemporânea, demonstrando cada vez mais como o Estado-nação, ainda que continue sendo um ator fundamental na ordem internacional, vem mostrando “tantos sinais de desorientação, desorganização e crise de suas funções tradicionais” (Font e Rufí, 2006, p. 151).

O isolamento dessas áreas pode ser entendido como uma espécie de bankerização, quando levado em conta a concepção de Mark Duffield (2011) de que os bunkers cresceram em uma proeminência social, como um espaço defendido que pode ser completamente fechado contra uma ameaça, onde o poder não negociável pode ser elaborado de acordo com as incertezas induzidas. As áreas sob o poderio ilegal são isoladas dos centros onde a sociedade benquista e favorecida se desenvolve, distantes da ação estatal são regidas por uma nova institucionalidade dos grupos ilícitos, que se alimenta e mantém pelas atividades e lógica do narcotráfico e, assim, acabam, de certa forma, tomando o lugar de gerencia destes espaços, convivendo sob uma constante disputa por poder com o Estado.

Com isso, em perspectiva local o narcotráfico provoca o surgimento de uma institucionalidade própria que instaura seu poder de controle em determinados pontos do território nacional. A desconfiguração da ordem hierárquica interna do Estado e o combate às medidas de enfrentamento do mesmo, resulta em uma fragilidade da governabilidade do local que gera consequências em todos os âmbitos da sociedade colombiana, afetando, por exemplo, a segurança com a disseminação da violência e a política com a proliferação da corrupção. As diversas derrotas e ineficiências das batalhas do Estado colombiano contra o narcotráfico provocaram uma constante e crescente instabilidade no país, a qual passou a repercutir em nível internacional preocupando outras nações, principalmente os Estados Unidos, o qual começa a tratar a questão como tema de sua política externa, mudando, desse modo, o olhar da comunidade internacional sobre tal movimento ilícito.

Assim, o narcotráfico passa a ser visto como uma ameaça global, transcendendo a esfera local, especialmente por ser um fenômeno essencialmente transnacional. “Não se trata agora de um problema estritamente de segurança interna (sociedade civil, instituições, governo) e sim de responder a ameaças de natureza global com a reestruturação de todo o campo da segurança de cada Estado” (MACHADO, 2011, p.2). A sua capacidade e vigorosa ação de transpor fronteiras o torna presente em diversos territórios nacionais, dificultando a repressão dos Estados individualmente a esses grupos, além de, muitas vezes, não possuírem a estabilidade governamental necessária para efetuar este processo de forma eficaz.

Disto nasce a cooperação internacional inter-estatal para combate ao narcotráfico com medidas anti-drogas através da criminalização em geral, muitas vezes sem distinguir traficante de usuário. Um dos pioneiros e mais comprometidos com esta questão é os Estados Unidos, uma vez que encontra-se como um dos maiores mercados para as drogas produzidas na América Latina, principalmente para a produção de cocaína da Colômbia, a convertendo em uma questão de segurança nacional. O Plano Colômbia é uma representação autêntica destas transformações no combate ao tráfico de drogas, se firmando em uma conjuntura onde o Estado colombiano não conseguia combater sozinho as ações do narcotráfico e se junta aos Estados Unidos para receber ajuda nesta missão.

Desse modo, os países passaram a agir em conjunto em um espaço que tornou-se transverso, se delimitando entre a soberania estatal e a cooperação internacional e mudando a perspectiva tradicional da ligação entre território e soberania. “Essa transversalidade permite entender o espaço ocupado pelas políticas da segurança-insegurança como um campo que transcende a divisão interno-externa ou nacional-internacional imposta pela perspectiva do Estado territorial soberano.” (MACHADO, 2011, p.17).

Conclusão

Portanto, pode-se perceber as intensas mudanças que o narcotráfico causa ao território e as dinâmicas que se estabelecem nele, tanto em aspectos internos quantos externos. Sua atuação transforma e cria fronteiras dentro do território nacional, rompendo com a lógica pré-estabelecida do Estado-nação, além de se manter constantemente como um gerador de institucionalidade, o qual possuí e instiga o seu reconhecimento perante aos espaços dominados, que convivem simultaneamente entre o legal e o ilegal.

Dessa maneira, suas táticas de ação influenciam as mudanças que se dão em contexto internacional, alterando a conduta da comunidade em relação a sua existência, que passa a ser considerada como crime de ameaça global. Suas atividades não mais são vistas apenas com foco e efetividade local, uma vez que passam a ser reconhecidas como um constrangimento a segurança nacional de todos os países. Estas dinâmicas não afetam somente a população do Estado de origem do movimento, mas sim a conjuntura do sistema internacional como um todo, se consagrando com as rupturas territoriais que realiza.

Sendo assim, o narcotráfico apresenta-se como um fenômeno de caráter transnacional e transfronteiriço, rompendo com o ideal tradicional de território, o transfigurando e resignificando de acordo com seus interesses. Seus atos o colocam como um dos principais atores da atualidade que contestam a posição soberana do Estado, impondo-se, assim, ao desafiar sua governança, como um problema não mais local, e sim global.

Referências

AMORIM, Francisco de Paula Rocha. Fronteiras inscritas pelo narcotráfico na América Latina: estudo sobre a transterritorialidade em nove cidades de Brasil, Colômbia e México. 2018.

AYERBE, Luis Fernando. Os territórios não governados na agenda de segurança dos Estados Unidos: afirmação da ordem mundial estadocêntrica?. Política Externa, p. 107-114, 2012.

DUFFIELD, Mark. Total war as environmental terror: Linking liberalism, resilience, and the bunker. South Atlantic Quarterly, v. 110, n. 3, p. 757-769, 2011.

FONT, Joan N. e RUFÍ, Joan V. Geopolítica e complexidade. In: Geopolítica, Identidade e Globalização. São Paulo, Annablume, 2006.

Intituto Nacional de Medicina Legal y Ciencias Forenses. Comportamiento del homicídio, Colombia 2017. In: Forensis 2017, Datos para la vida. Bogotá, D. C., República de Colombia.

MACHADO, Lia Osorio. Espaços transversos: tráfico de drogas ilícitas e a geopolítica da segurança. Geopolítica das Drogas (Textos Acadêmicos), 2011.

ROCHA, Andréa Pires; TOMÉ, Tauany Santos Castro. Reflexões sobre território: disputa de poderes que se materializam em territórios ocupados pelo narcotráfico.

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