Por Rafaela Ferreira
A crise sanitária causada pela pandemia do COVID-19 desafia os sistemas de saúde mundiais, tornando ainda mais importante observar essas estruturas e os processos políticos responsáveis por concebê-las. No Brasil, o Sistema Unificado de Saúde (SUS), apesar de muitos problemas, garante universalidade, gratuidade e integralidade no acesso à saúde e apresenta-se como a única alternativa para grande parte da população no contexto atual, constituindo-se, então, como imprescindível. Concomitantemente a pandemia, os últimos governos tem executado ações que exacerbam um projeto de sucateamento do SUS, como os 23 mil leitos perdidos durante o governo Dilma e mais 18 mil desde seu impeachment.
Nesse sentido, é possível aludir ao movimento da reforma sanitária, um movimento social arquitetado durante a ditadura militar, que lutou por uma reconstrução do sistema público de saúde, fomentando, futuramente, a criação do SUS, e se alinhou a luta pela redemocratização do país.
Proponho aqui uma observação do movimento da reforma sanitária, com ênfase na simbólica relação estabelecida entre democracia e saúde, tanto pelo caráter democrático do sistema que se pretendia construir, quanto pela luta conjunta por uma redemocratização do país em que o movimento se articulou e na formação de uma plataforma de cidadania que essa mobilização motivou. De resto, não pretendendo esgotar uma análise aprofundada acerca dos sistema de saúde e suas falhas, mas investigar os aspectos sociológicos, usando de teorias que explicam movimentos sociais urbanos para isso, e a importância que a história e motivações do movimento ainda desempenham.
Mobilizações coletivas, segundo MOISÉS (1985:26), são possíveis por conta de um processo de conscientização coletiva que gera aglomerados para reivindicarem seus direitos (apud RIBEIRO, 1989). Nesse seguimento, na segunda metade da década de 1970, a distensão do regime militar e a crise causada pelo fim do milagre econômico, segundo PAIVA (2014), permitiram que se sucedesse um impulsionamento de tensões e articulações públicas pedindo por mudanças políticas. No âmbito da saúde, iniciaram-se movimentações que identificavam a necessidade de uma reforma no sistema de saúde, partindo de várias razões, tanto pela discordância da maneira ultrapassada de se contemplar a saúde, quanto pela queda dos indicadores da população, evento conectado a instauração do regime autoritário no país.
A identidade de movimentos são construídas sob dois precedentes, sendo eles a dimensão cultural e a estrutural. O aspecto estrutural diz respeito à necessidade e reivindicação que fomentou essa estrutura (EVERS ET AL., 1985, APUD RIBEIRO, 1989). Por sua vez, a construção de uma idealização é o que adiciona o caráter cultural ao movimento (SCHERER-WARREN, 1987:40, APUD RIBEIRO, 1989). Assim, o chamado movimento da reforma sanitária defendeu uma ressignificação da saúde pública brasileira. Caracterizada por altos investimentos em iniciativas privadas, com crescimentos de hospitais e leitos, seguia um modelo previdenciário, que atendia apenas trabalhadores formais e muito baseada na relação saúde-doença (CARVALHO, DOS SANTOS, 2015), o sistema subordinava a população carente que não tinha acesso ao sistema de saúde e era pouco efetivo. Assim, desejava-se a adoção de uma análise da saúde por meio de seus determinantes sociais, físicos e mentais, ideias sintetizadas no conceito de saúde coletiva, além de fomentar a concepção de que a saúde é um direito de todos e o Estado é responsável por ela, ideia possível com um sistema gratuito, universal, unificado e que contasse com a participação social.
Acontecimentos internacionais já empregavam esses ideais e serviram de influência para o movimento brasileiro. Como o conceito de saúde assumido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1948, sendo a saúde “o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade”, por efeito dos problemas sociais, econômicos, políticos e culturais causados pela Segunda Guerra Mundial. Ainda, a conferência de Alma-Ata foi responsável por mobilizar o “surgimento de serviços que prestam os cuidados na atenção primária à saúde”, retratando a ideia de que a saúde é um direito fundamental e parte do processo de desenvolvimento da população.
A abrangência do conceito de saúde que o movimento, inicialmente pensado por médicos, estudantes e pesquisadores da área da saúde, utilizava foi responsável por mobilizar diversos atores da sociedade civil, que viram ali a defesa de seus direitos básicos, tal qual moradia, educação, transporte, entre outras dimensões da vida social que afetam diretamente a saúde de qualquer indivíduo. Produzindo, dessa forma, uma plataforma de cidadania, com indivíduos expressando sua voz política e pleiteando os seus direitos. Organizações como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) foram responsáveis por difundirem as idealizações do movimento da reforma sanitária e potencializarem essas conexões com a sociedade civil.
Outrossim, consoante a RIBEIRO (1989), a cultura de movimentos sociais tendem a construir uma base crítica e anti-autoritária, a partir da constatação de dominação e opressão que marginalizam, de certa forma, suas demandas. Além disso, possuem a igualdade e democracia como um princípio, conforme apontou BANDEIRA (1987, APUD RIBEIRO, 1989). Desse modo, é possível perceber que a história do movimento da reforma sanitária possui uma relação muito próxima a opulência a ditadura. Muitos autores, como PAIVA (2014), afirmam que o movimento da reforma sanitária e a luta contra a ditadura militar são intrínsecos, sendo impossível dissociá-los. Os militantes do movimento entendiam que a formação de um sistema de saúde eficaz e democrático só seria possível com o fim do regime autoritário em curso, um possível indício disso é a queda dos indicadores de saúde e a ocultação dos números da epidemia de meningite. Sérgio Arouca, importante sanitarista, em seu discurso de abertura da 8ª Conferência Nacional de Saúde em 1986, enuncia a percepção de que aquele era o momento perfeito para se pensar em uma reformulação, uma vez que, com fim da ditadura militar, uma consciência profunda de que era necessário uma transformação no sistema de saúde desenvolveu-se, ultrapassando as barreiras partidárias e convertendo-se em um desejo de ordem política. Ademais, enunciou a importância de não só garantir condições básicas que garantam a qualidade de vida, mas também um aparelho governamental que assegurasse a liberdade de opinião e organização, segurança e não condicionasse seu povo ao medo, demonstrando inegável repúdio às práticas da ditadura militar no Brasil e na América Latina.
A 8ª Conferência Nacional de Saúde é entendida como uma espécie de concretização do movimento da reforma sanitária, uma vez que o documento lá produzido foi a base para o redigido na Constituição Federal de 1988, onde o Sistema Unificado de Saúde foi instituído. Contou com numerosa participação da sociedade civil organizada, com representações universitárias, associações de bairro, grupos eclesiásticos, sindicalistas e cidadãos que compareceram voluntariamente, exemplo de que o debate levantado pelo movimento da reforma sanitária conseguiu adentrar os mais diversos movimentos sociais. Sérgio Arouca, em seu discurso de abertura, reconhece a importância do comparecimento desses indivíduos, pois a representatividade faria com que fosse possível criar um sistema de saúde a partir da cultura e experiência brasileira. A decisão de promover a participação social é para permitir que diferentes movimentos pudessem reivindicar causas de acordo com sua realidade, permitindo que as pautas de diferentes movimentos sociais pudessem ser ouvidos de acordo com sua experiência em diferentes locais, aspecto esse sistematizado por Scherer-Warren (1987) ao pensar nos movimentos sociais urbanos (APUD RIBEIRO, 1989).
Da mesma maneira que a luta por uma reforma sanitária mobilizou vários atores da sociedade, por englobar seus direitos, o SUS é uma luta coletiva que incorpora diversos tópicos de interesse da sociedade civil, dado que provém tratamentos e serviços que beneficiam toda a sociedade. Muitos desses assuntos são questões abordadas por movimentos sociais, como o LGBT+, feminismo e negro. Um possível exemplo são os cuidados essenciais para saúde da mulher que o SUS oferece, como políticas públicas para o fortalecimento da saúde sexual e reprodutiva, cuidados obstétricos, atenção a mulheres em situação de violência, cuidado oncológico e ginecológico, pré natal e vacinas contra doenças manifestadas em mulheres. Desse modo, é indubitável que a perpetuação e melhora do SUS é uma questão de extrema importância para a população.
O estabelecimento do Sistema Unificado de Saúde é simbólico. Visto que uma movimentação pedindo por uma reforma sanitária formou-se durante o período autoritário, se juntou a luta contra a perpetuação do regime militar e atingiu, de certa forma, sua realização concomitantemente a redemocratização do país. O SUS é símbolo do despertar da democracia, a luta que o implementou é pela recuperação da democracia, a defesa do SUS tem uma relação direta com a defesa pela democracia.
É um pensamento comum que o SUS apresenta várias falhas, não apresentando-se como deveria, por isso sua defesa é mais importante do que nunca, a saúde é direito comum e o sistema é a ferramenta que garante isso. Para se entender a dimensão da magnitude do Sistema Unificado de Saúde, no momento de sua instituição em 1988, juntamente com a promulgação da Constituição Federal, é possível observar uma condução da política neoliberalista afetando o mundo, sobretudo a América Latina, agindo também nos sistemas públicos de saúde. Nessa conjuntura, levando em conta as circunstâncias atuais, faz-se essencial resgatar essa história e se apropriar dela, reproduzindo a idéia de que lutar por mudanças na saúde é lutar por democracia.
É possível perceber que o debate levantado pelo movimento da reforma sanitária continua muito atual. O movimento da reforma sanitária foi responsável por mobilizar a população, fazendo com que ela utilizasse sua “voz cidadã”, tornando-se um ator político e participando da construção de um Brasil redemocratizado. Atualmente, é importante defender o Sistema Unificado de Saúde, sua continuação e melhora, visto que ele é uma expressão de demandas sociais sendo ouvidas e, como pensado pelo movimento da reforma sanitária, a saúde é um dever de todos, portanto, é preciso salvaguardar os direitos do povo brasileiro e continuar lutando por uma efetivação do SUS como pensada anos atrás. Resgatar o movimento é preservar todos os princípios pelos quais se lutou. Em tempos tão difíceis, um sistema de saúde unificado e universal é essencial e reconhecer isso é o primeiro passo para a mudança.
Bibliografia
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