Por Giovanna Barreto
A Roll Back Malaria (RBM) é um fundo global apoiado por organizações bilaterais, multilaterais, não-governamentais e privadas. A premissa dessa iniciativa, que teve início em 1988, era erradicar as mortes causadas por malária na África até 2010. Isso deveria ser feito através de três mecanismos principais: o uso de inseticidas, distribuição de mosquiteiros para a população e desenvolvimento de medicamentos. Os anos passaram e a campanha demonstrou ser um total fracasso: em 1998 o número de mortes pela doença no continente era maior que no início do projeto.
A Malária é uma doença causada por diferentes tipos de protozoários e transmitida pela picada de mosquitos ou pelo compartilhamento de agulhas e objetos cortantes de maneira indevida. É uma enfermidade mais comum em áreas tropicais, já que o mosquito transmissor se reproduz mais facilmente no calor. O índice de mortalidade é alto, apesar de existir cura por meio de medicamentos. Nos dias atuais, ainda não há uma vacina eficaz que previna a doença. Os tratamentos em prática na atualidade estão datados, muitos medicamentos utilizados, como a Cloroquina, já adquiriram resistência; da mesma forma, os mosquitos vetores já são resistentes a muitos tipos de inseticidas. Segundo a OMS, cerca de 80% da população da África que vive em locais onde o risco de transmissão de Malária é alto dorme com mosquiteiros protegidos com inseticidas, com o fim de evitar a picada de mosquitos transmissores, contudo, isso não é capaz de melhorar significativamente a situação da patologia no continente. Os níveis de alta mortalidade e transmissão da doença na África, principalmente na região subsaariana, onde a doença possui caráter endêmico, tornaram-se preocupações da comunidade internacional a partir da década de 1980. Desde então, diversas iniciativas de parceria público-privada e de setores multistakenholder lançam campanhas para o combate a Malária, como é o caso da Roll Back Malaria. Todavia, a utilização de métodos tradicionais sem eficácia, escassez de estudos e subfinanciamento fizeram com que tais projetos tornassem um insucesso completo.
Desde o processo de globalização, a governança multisetorial, mais conhecida como multistakenholder, se faz cada vez mais presente nas relações internacionais. Elas surgiram com força devido as limitações dos Estados-nacionais e do sistema multilateral, a exemplo na Organização das Nações Unidas (ONU), em agirem face a grandes problemas do cenário internacional. Esse novo tipo de governança global se caracteriza pela participação de atores privados e públicos, e reúne uma coalizão de agentes que detém tipos variados de poder e, quando juntos, buscam encontrar soluções para os mais variados problemas sociais que afligem o mundo desde as últimas décadas do século XX.
No caso da Roll Back Malaria, se trata de uma governança multisetorial focada em um projeto específico. Nele participam representantes de governos, como autoridades nacionais e locais, assim como organizações da comunidade local e ONGs internacionais ligadas a desenvolvimento social e ambiental. No âmbito privado, tem-se a presença das principais corporações investidoras, bancos multilaterais, além de empresas e organizações domésticas. Esse tipo de iniciativa se aproveita de países com instituições políticas enfraquecidas e que detém menos poder para conseguir investimentos lucrativos, ao mesmo tempo em que se apropriam de uma imagem benéfica de instituição de caridade. Dessa forma, a legitimidade adquirida pelo sistema multistakenholder é baseada na relação de poder assimétrica do sistema internacional.
A atuação de grupos multistakenholder levanta questões acerca da confiabilidade, responsabilidade e legitimidade diante do sistema internacional. Essas coalizões não estão submetidas ao Direito Internacional, e seus projetos não são fiscalizados, tampouco possuem responsabilidade institucional. Dessa forma, tais grupos setoriais realizam projetos com uma roupagem de caridade, tornando o voluntarismo uma característica intrínseca ao multistakenholderim. Como consequência, não há qualquer garantia sobre a eficácia dos programas, muito menos o grupo é responsabilizado por sua omissão ou fracasso, sendo a RBM um exemplo.
A Roll Back Malaria contou com financiamento de diversos atores, sendo eles domésticos, internacionais, privados, entre outros. Devido ao caráter diverso de investidores, a arrecadação de recursos para o programa é prejudicada, sendo altamente vulnerável a mudanças no panorama político e às emergências de novos problemas internacionais. Quanto ao financiamento, estima-se que, de acordo com dados da Fundação Bill e Melinda Gates, são necessários cerca de 100 bilhões de dólares para erradicar a Malária até 2040. No entanto, segundo o relatório da RBM, de 2010 a 2016, foram arrecadados 2.7 bilhões de dólares, dado o qual coloca a erradicação da doença em um plano quase utópico. Tal situação demonstra que, através da busca por uma solução vertical, simplista, direta e rápida, a RBM apresenta metas muito ambiciosas diante da magnitude e complexidade do problema. Na realidade, o que acontece no interior dos países é que agentes de saúde mal remunerados e pouco qualificados se encarregam do trabalho na prática, com pouco qualquer suporte. Por isso, para além de obter os recursos necessários, é preciso que haja liderança, controle e planejamento e organização em âmbito local para que algum progresso seja feito.
Nesse quesito, uma das falhas mais graves do programa foi a carência de pesquisa. A Malária não é uma doença nova, mas se concentra nas áreas tropicais do mundo, no Sul Global. Por se concentrar em países periféricos, não houve recursos de governos para investir em pesquisa e soluções, além de que, por muito tempo não houve interesse da comunidade internacional no assunto. Outro fator agravante é que se trata de uma doença em constante evolução, circunstância a qual não é acompanhada pelos dados pesquisados. Não se sabe ao certo a taxa de mortalidade, pois essa varia em diferentes estudos, nem sequer há dados suficientes sobre a resistência de medicamentos diferentes da Cloroquina e sobre o quanto o uso de mosquiteiros pode ajudar no combate à malária. Vale ressaltar que apenas na África subsaariana, região onde a enfermidade é mais incidente, existem 47 países diferentes, cujos dados e taxas devem ser pesquisados separadamente.
A problemática acerca da estratégia escolhida pela Roll Back Malaria também deve ser pontuada. Todo o financiamento da campanha é direcionado a soluções de curto prazo e envolvem atores no plano geral, ou seja, são concentrados em nível global e nacional, quando deveriam focar distritos e vilarejos. O projeto visa erradicar a Malária em um continente inteiro, dentro do qual cada país enfrenta uma realidade diferente em relação a sistema de saúde, nível de urbanização, atuação do governo e situação do desenvolvimento da doença. No interior desses países ainda há diferenças relativas à população urbana e população rural, visto que na área rural o mosquito transmissor é mais presente, há menos hospitais e acesso à medicamentos. Além disso, não há monitoramento e controle sobre os tratamentos, muito menos estudos atualizados.
Assim como a erradicação da Malária envolve soluções específicas e focadas em regiões, também envolve problemas muito maiores, relacionados a desigualdade social derivada o colonialismo e preservada pelo capitalismo. Questões estruturais, como a precariedade da saúde e falta de recursos por parte de governos em alguns países do continente, parecem ser totalmente ignoradas pelo RBM. A complexidade dos vetores e transmissores, da geografia de diferentes países, aspectos culturais das populações e da infraestrutura e recursos disponíveis devem ser levados em conta ao tratar de uma doença.
O programa também peca ao reduzir a atuação dos Estados africanos no combate à Malária, visto que não inclui pautas sobre o sistema de saúde, além do fato de que a iniciativa busca uma solução baseada em decisões do Norte Global, sem trazer a perspectiva das nações que realmente sofrem com a enfermidade. Além disso, ao canalizar recursos e investimentos para um único programa, outras propostas, programas e áreas de investimentos são ignoradas. Todos esses fatores, característicos de iniciativas multisetoriais, não somente no combate à Malária, contribuem para o enfraquecimento dos sistemas de saúde e de soluções locais e nacionais.
Posto isto, conclui-se que as pautas propostas pela comunidade internacional em relação à saúde global incluem soluções globais para problemas enfrentados em realidades locais, o que, por conseguinte, não surte efeito positivo. No caso da Roll Back Malaria, soma-se a isso a insuficiência de investimento, a escassez de pesquisa e o direcionamento de recursos para soluções verticais e datadas, ao invés de focar em soluções de longo prazo que combatam problemas estruturais. Destaca-se também o modo com que o multistakenholderism propõe resolver problemas, o qual abrange as problemáticas acerca de sua confiabilidade e legitimidade, principalmente porque interferem em questões domésticas de nações periféricas. Por conseguinte, o debate da RBM vai muito além de ser um projeto fracassado, mas também coloca em dúvida a atuação da governança multisetorial e ressalta a desigualdade do sistema internacional.
Referências Bibliográficas:
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RENWICK, Danielle. Can Malaria Be Eradicated? Council on Foreign Relations. 2016. Disponível em: https://www.cfr.org/backgrounder/can-malaria-be-eradicated
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