Por Estevão Pessoa e Victoria Ennser - graduandos em Relações Internacionais pela PUC-SP e integrantes do PET-RI
Fonte: Norwegian Refugee Council
Referida sucessivamente como a “maior crise humanitária do mundo”, a crise no Iêmen completa sete anos em 2022. Mas, apesar de sua magnitude alarmante, faltam esforços e recursos para responder à situação pela comunidade internacional. Segundo a ONU, são necessários $4.3 bilhões para responder à crise de insegurança alimentar, desnutrição e saúde que afeta mais de 17 milhões de pessoas no Iêmen, cifra pouco provável nas previsões orçamentárias dos principais doadores da ajuda humanitária no mundo, além de distante das intenções de países interessados na Península Arábica.
Contexto histórico
Considerado um dos países mais pobres da península arábica, o Iêmen é, cada vez mais, abarcado pelo espectro da morte, seja pela cólera derivada da falta de saneamento básico, por bombardeios, ou pela falta de água e alimentos. Para compreender a presente crise, contudo, é preciso visitar o passado, recordando os desdobramentos dos eventos de contestação política ocorridos no ano de 2011.
A Primavera Árabe, nesse sentido, é central para se entender os eventos ocorridos no Iêmen. Tendo a Tunísia como palco, a série de manifestações da Primavera Árabe percorreu vários países, como o Egito e a Síria, propagando um sentimento de insurreição contra os regimes autoritários instalados nesses territórios. Com o intuito de derrubar os regimes ditatoriais na região, revoluções se disseminaram pelos países árabes, espalhando a palavra da democracia como alternativa.
Com sua população inconformada e cansada da sujeição à opressão, o Iêmen também recebeu o fantasma da revolução; revoltas e manifestações contra o governo insurgiram no Iêmen. No ano de 2012 opositores derrubaram o então presidente Ali Abdullah Saleh; o sunita Abd Rabbuh Mansur Al-Had - vice-presidente de Saleh, assumiu a posição de chefe de Estado.
Mas o fato de Al-Hadi ter raízes no governo anterior gerou ainda mais problemas internos, acentuando a crise existente. Contrario aos Houthis, empreendeu severas medidas repressivas contra essa minoria. Insatisfeitos com o governo, os Houthis estabeleceram polos de contestação pelo território levando a uma mobilização que alcançaria e dominaria a capital, Sanaã. Em 2015, acuado pelo avanço dos Houthis, Al-Hadi deixou o país em direção à Arábia Saudita, restando ao Iêmen uma Guerra Civil que perdura até hoje.
Potências regionais do Oriente Médio, a Arábia Saudita e o Irã são países interessados no Iêmen; afinal, este tem uma localização geoestratégica - situado próximo da rota comercial de navios petroleiros, abrangida pelo Mar Vermelho, o Estreito de Bab El Mandeb e o Golfo Pérsico, que atravessam o Canal de Suez. Aliada dos sunitas, a Arábia Saudita quer Al-Hadi no poder, enquanto o Irã, de forma mais implícita demonstra certo apoio aos Houthis, gerando uma disputa para além das fronteiras iemenitas. Com o intuito de recuperar a capital do país, Sanaã, portanto, a Arábia Saudita tem empreendido esforços, bombardeando zonas no Iêmen, além de efetuar bloqueios comerciais que prejudicam os Houthis — que atualmente comandam parte do país, como a capital Sanaã.
Fonte: Terra Notícias
O cenário hoje
De acordo com o Programa Mundial para Alimentação, se no Iêmen houvesse apenas 100 pessoas, 80 precisariam de assistência humanitária, 66 não teriam acesso a alimentos, 67 não teriam acesso à água, 59 não teriam acesso a cuidados de saúde e 11 estariam subnutridas. A questão é que no Iêmen vivem 30.5 milhões de pessoas; ou seja, além da dimensão gigantesca da crise, uma sobreposição complexa de questões assola a população iemenita, distanciando cada vez mais a realidade de uma ajuda humanitária eficaz no atual cenário.
Mas estes números não têm um único culpado. São vários os atores responsáveis pela manutenção da crise no Iêmen. Além da referida (referenciar parte do Estevão), segundo Kate Kizer, escritora da revista Foreign Policy e especialista em Direitos Humanos, quanto mais o conflito dura, mais ele se torna internacionalizado, com os Houthis recebendo apoio militar externo do Irã após a intervenção da coalizão do Golfo e com a comunidade internacional fazendo mais para alimentar em vez de resolver o conflito. A vizinha Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, por exemplo, têm desenvolvido suas próprias agendas no território iemenita, financiando milícias por procuração e colonizando partes do leste e do sul em busca de oleodutos e projeção de energia.
Outro ator central são os Estados Unidos. Apesar de o governo Trump a política sobre o Iêmen não ter sido tão incisiva em seu território, os EUA tiveram forte iniciativa em uma campanha massiva de sanções contra o Irã, em uma tentativa de forçar Teerã a voltar a conversar sobre seus programas e atividades nucleares e de mísseis no Oriente Médio. Vale ressaltar também que, desde 2002, os EUA mantêm operações contra a Al-Qaeda na Península Arábica, o que dita certo envolvimento do país na guerra do Iêmen.
Pouco tempo depois de ser eleito, o atual presidente Joe Biden disse: “esta guerra tem que acabar”. Para afirmar o compromisso, anunciou o fim de todo o apoio a operações ofensivas no Iêmen, incluindo vendas de armas relevantes. No entanto, afirmou que os EUA continuariam a fornecer apoio defensivo à Arábia Saudita — parceira de longa data na compra de armamentos estadunidenses, como revive um contrato de US$500 assinado pelas partes em outubro de 2021 — contra-ataques de mísseis e drones de forças Houthis apoiadas pelo Irã, além de manter sua política antiterrorismo na região.
A crise no Iêmen, hoje, alcança extremos de desnutrição, fome, destruição de infraestruturas hospitalares e escolares; sofre com a recorrente epidemia de cólera e outras doenças infecciosas, incluindo a falta de recursos para responder à pandemia de COVID-19. O acesso a serviços básicos já não existe; um cenário de sobreposições junto a uma guerra civil que vem se agravando conforme atores internacionais financiam o conflito. A falta de ajuda humanitária, portanto, tem sido alvo de críticas em uma situação que tem tudo para ser a prioridade para muitas organizações.
Comoção seletiva na guerra
Em um mundo desigual, a seletividade é algo cada vez mais suscetível, sobretudo quando o assunto são os conflitos internacionais. O ano de 2022, em seus primeiros meses, presenciou a invasão da Ucrânia pela Rússia, causando uma comoção muito particular, sobretudo pelos países do Norte global. A grande importância concedida à crise humanitária iniciada na Ucrânia, oculta infelizmente a existência de outros conflitos internacionais, como a Guerra Civil do Iêmen.
Na posição de país do Sul Global, o Iêmen vivencia diariamente os efeitos da negligência internacional a respeito das problemáticas que assolam o território; a ajuda humanitária é insuficiente e o conflito mostra pouca previsão de um fim.
Esta comoção seletiva da guerra é, portanto, evidente quando se aplica um fator comparativo entre o conflito russo-ucraniano e o iemenita. Vale a pena ressaltar que embora os EUA condenem a Rússia pela guerra em território ucraniano — principalmente por fatores ligados à violação dos direitos humanos — Washington apoia a Arábia Saudita no conflito do Iêmen, a despeito das evidentes violações de direitos humanos pelo governo saudita. Esse caso mostra, mais uma vez, que quando o assunto são os conflitos internacionais, os interesses dos estados permanecem como premissas fundamentais; e isto implica deixar a vida, a dignidade humana e os direitos humanos em segundo plano.
Fonte: UK Parliament, 2018
Guerra sem fim. Ajuda insuficiente. E agora?
Como pôr fim à crise no Iêmen? Esta não é uma pergunta simples de se responder, como este artigo tenta mostrar. No melhor dos cenários, a Arábia Saudita e os demais países interessados deveriam frear suas investidas na guerra do Iêmen. Isto seria apenas o cumprimento esperado do Direito Internacional Humanitário. Entretanto, trata-se de países que violam histórica e sistematicamente os direitos humanos, incluindo o próprio Iêmen. Não parece um cenário provável, portanto.
A grande questão, a despeito da visualização de um fim à guerra, é que o povo iemenita não pode esperar. A dignidade humana não pode esperar. Aos milhões de deslocados, sobreviventes e doentes é preciso garantir assistência mínima. Infelizmente, agências da ONU e do Comitê Internacional da Cruz Vermelha têm deixado bases de apoio no país por falta de financiamento.
Segundo o escritório humanitário da ONU, o plano de ajuda humanitária para o Iêmen em 2021 recebeu US $2,27 bilhões dos US $3,85 bilhões necessários, o nível de financiamento mais baixo desde 2015. O plano de 2022, por sua vez, não foi divulgado. Em janeiro deste ano, quase dois terços dos principais programas de ajuda da ONU foram reduzidos ou fechados, enquanto as zonas de combate se multiplicaram.
Felizmente, em abril passou a vigorar um cessar-fogo de dois meses, mediado pela ONU. A esperança é que se proporcione uma espécie de “passagem livre” para as agências de ajuda humanitária, permitindo que a assistência chegue, inclusive, às zonas mais afetadas pelo conflito. O problema que persiste é a insuficiência da ajuda, limitada por recursos. Sem o apoio da comunidade internacional através de doações, os iemenitas continuarão sofrendo em condições precárias e indignas. Resta o apelo, para que a crise humanitária no Iêmen receba a devida e tão necessária atenção.
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