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Fogo cruzado: a presença da petroquímica Total S.A. em Moçambique e em outras zonas de conflito

Por Ana Luísa Calvo Tibério e Hadassa Silva - graduandas em Relações Internacionais pela PUC-SP e bolsistas do Programa de Educação Tutorial (PET-RI)



Moçambique enfrenta hoje uma grave crise humanitária de grande proporções. Segundo dados da Agência ONU para Refugiados (ACNUR), já são aproximadamente 700.000 refugiados, devido a conflitos armados na região da província de Cabo Delgado, entre as forças armadas do estado moçambicano e um grupo de insurgentes chamado Al-Shabaab. Tal disputa armada ocorre desde 2017, mas foi reconhecida como uma crise real pela Comunidade de Desenvolvimento da África Oriental em maio do ano passado.


Ao mesmo tempo, as empresas multinacionais, com liderança da petrolífera francesa Total seguem investindo bilhões de dólares em projetos de gás natural na região, cujo potencial exploratório de recursos naturais é bastante elevado. Nesse sentido, levanta-se o questionamento sobre a influência desta corporação multinacional em tal crise e sobre um possível padrão de ações semelhantes em outras regiões conflituosas do globo, como em Myanmar e no Saara Ocidental.


Projeto Moçambique GNL


O Projeto Moçambique GNL teve início em 2010, com a descoberta de grandes reservas de gás natural na costa norte do país. Nove anos depois, foi tomada a decisão final de investimento de US $20 bilhões - o maior investimento privado em curso na África - de modo que o projeto está encaminhado para entregar o primeiro GNL em 2021. A fim de explorar 65 trilhões de pés cúbicos de gás natural recuperável, serão construídas duas unidades de liquefação com capacidade para até 43 milhões de toneladas por ano.


O Projeto é operado pela petroquímica francesa Total S.A - a segunda maior operadora de GNL do mundo, com presença líder na África - com o compromisso de ajudar a responder à crescente procura global por fontes de energia sustentável. Ademais, conta com o financiamento de US $6.5 bilhões do Banco de Exportações e Importações dos Estados Unidos da América, indicando a busca por consolidação da influência econômica norte-americana no continente africano.


Fogo cruzado


Diante da expectativa da Total de faturamento de mais de US $40 bilhões, os credores mantiveram apoio ao Projeto Moçambique GNL mesmo em momentos de alta tensão na região de Cabo Delgado. Em agosto do ano passado, por exemplo, o porto da cidade de Mocímboa da Praia, que abriga as instalações do projeto, foi temporariamente tomado pelos insurgentes após intensos combates com o exército moçambicano. O acontecimento, contudo, não foi suficiente para que as ações da multinacional fossem interrompidas.


Entretanto, o agravamento dos conflitos armados, especialmente após o ataque do dia 24 de março à Palma, vila próxima ao campo do Projeto em Afungi, fez com que a empresa mudasse de postura. Mais de 180 pessoas ficaram detidas por três dias dentro de um hotel, moradores tiveram que fugir para a floresta e trabalhadores do projeto buscaram refúgio.


Diante disso, no último dia 2 de abril, a Total retirou, por via marítima e aérea, o resto do pessoal que mantinha no Projeto Moçambique GLN, incluindo empresas subcontratadas que se mantinham na área do maior investimento privado em curso na África. A estimativa é de que haja 23.000 pessoas refugiadas junto ao projeto. Não há ainda informações sobre o retorno das atividades.


Vista aérea do campo de Afungi, em Cabo Delgado, Moçambique.


Coincidência? A presença da Total em outras zonas de conflitos



Além de Moçambique, a Total opera os oleodutos do campo de gás natural em Yadana, situado a 60 km da costa de Myanmar. Após as eleições gerais de 2020, vencidas pelo partido Liga Nacional pela Democracia, o país asiático viveu um golpe de Estado e Min Aung Hlaing, comandante do Exército, assumiu o governo do país. Segundo dados da Associação de Ajuda a Presos Políticos (AAPP), pelo menos 570 pessoas foram mortas a tiro pelas forças de segurança e mais de 2.700 pessoas foram detidas, sem acesso a familiares e advogados.


Nesse contexto, houve constantes pressões na sede francesa para a interrupção das atividades que custeiam o regime militar. Entretanto, a Total argumenta que a paralisação de atividades traria riscos de trabalho forçado aos colaboradores da empresa e prejudicaria o fornecimento de energia à Tailândia. A petroquímica optou, assim, por manter suas atividades, apenas deixando de repassar US $4 milhões de dólares em tributos, e incentivou as demais empresas com participação nos campos de Yanada a fazer o mesmo.


Manifestantes seguram fotos das vítimas da Ditadura Militar instaurada em Myanmar em protesto na frente da sede da Total em Paris.


Outro destaque foi a presença da Total S.A. na região do Saara Ocidental. Entre 2001 e 2004, a empresa recebeu do governo do Marrocos a licitação para exploração e extração de petróleo e, entre 2011 e 2015, para a exploração sísmica de um bloco de mais de 100 km². Todavia, ainda em 1975 a Corte Internacional de Justiça havia determinado que a região Oeste do Saara era território em processo de descolonização, e que, portanto, o território não poderia ser ocupado.


Deste modo, as licitações obtidas e os valores pagos ao Gabinete de Hidrocarbonetos e Minas do Governo Marroquino foram considerados ilegítimos, pois seriam uma forma de financiamento a uma anexação territorial irregular. A multinacional só veio a sair do território após elevada pressão dos povos originários daquela região, os Saarauís, e inúmeras resoluções do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas e, afirma somente retomar suas atividades após definitivamente atestado pela instituição o fim do processo de descolonização.


Seria, pois, uma coincidência a presença da empresa nesses territórios conflituosos? Até que ponto é aceitável a presença de multinacionais que de alguma forma têm influência nesses acontecimentos? Qual a forma da comunidade internacional lidar com isso? Atuando apenas nas consequências, isso é, tentando o mínimo de proteção aos direitos humanos dos deslocados, ou agindo na raiz dos problemas? Quem são os Estados, empresas e grupos políticos que têm interesses no conflito? Embora não seja possível apontar uma conclusão precisa, são questionamentos que devem ser levantados a partir das notórias semelhanças entre os casos de Moçambique, Myanmar e Saara Ocidental.


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