por Victor Melo
Os líderes militares da Intervenção colocada em prática nas favelas do Rio, prometeram diminuir a criminalidade nesses territórios no prazo de um ano. O projeto tem atraído a atenção da mídia e dos brasileiros em geral; mas fato é que, desde a execução do mesmo, no início de 2018, a violência aumentou na metrópole carioca. Às custas de quem este objetivo final será alcançado? Tal operação é uma das melhores soluções para um problema social complexo e antigo?
Mãe e filha na favela da Rocinha, ao lado de militares com metralhadoras (Fonte: Exame).
Alguns objetivos e características da operação
A intervenção militar executada desde o início de 2018 no Rio de Janeiro, é um dos principais planos de segurança pública da história da cidade. Bilhões de reais foram repassados do governo federal para o estado fluminense; um exército militar foi designado para a missão e todos os holofotes midiáticos se voltaram para o projeto. O mesmo se apresenta como a principal solução para a onda de violência e criminalidade nas periferias.
Justificativas e planejamentos divulgados pelos militares após a aprovação da intervenção, são pautados em um discurso problemático e poderoso; portador de uma mensagem técnica e de solução para um problema histórico e estrutural da cidade do Rio. A não menção dos militares à práticas direcionadas a defesa dos direitos humanos, como será demonstrado ao longo do presente artigo, salienta o caráter da operação.
As manifestações do principal comandante, Walter Braga Netto, como também do porta-voz da operação, Carlos Cinelli, ressaltam as estratégias elaboradas pelas forças militares e a expertise da mesma para resolver o problema da violência. No entanto, a intervenção será realizada em localidades que abrigam cidadãos detentores de direitos e que necessitam de proteção; ainda mais em um território que praticamente se tornou uma zona de guerra entre a polícia e os traficantes de drogas.
O plano intervencionista quase não dá importância para a defesa dos indivíduos vulneráveis ao antigo conflito entre as forças militares e o crime organizado. Isso porque, a urbanização carioca foi um processo desgovernado associado à produção de territórios fora do controle estatal. Consequentemente, esses espaços e seus habitantes foram excluídos do aparato estatal de proteção e, portanto, enquadrados em formas de governança social alternativas e, frequentemente, violentas (MOULIN[1] e TABAK[2], 2014).
Militares e moradores da favela Kelson’s, no Rio. (Fonte: Danilo Verpa/Folha Press).
O interventor-chefe, Braga Netto, afirma que com alto investimento e com operações bem organizadas e equipadas será possível vencer criminalidade e acabar com a violência na metrópole fluminense. As estratégias do exército perpassam pela tecnicidade e experiência dos militares; pelo oferecimento de soluções sob medida para um problema social secular do Estado; além do apelo pela transparência e participação da comunidade que vive nas periferias, no que diz respeito ao apoio à intervenção. Sendo assim, o plano do general é mesmo a solução para o principal problema de segurança pública do estado carioca? A promessa de sucesso é convincente, porém a prática de tais ações impactam violentamente no dia a dia da comunidade favelada.
Declarações e práticas interventoras no Rio de Janeiro: a violência nas favelas
Os militares discursam sobre as operações nas favelas do Rio de Janeiro com muita certeza de que se tiverem as ferramentas certas, conseguirão dar uma solução para um dos mais complexos problemas dos territórios periféricos. Há anos a criminalidade, o tráfico de drogas e a atuação policial fazem parte da realidade das regiões marginalizadas das metrópoles brasileiras, causando inúmeras mortes e propagando ondas de violência para os indivíduos que lá residem.
Diante disso, a fala dos militares é persuasiva, um discurso técnico e solucionador para um problema profundamente difícil, Braga Netto salienta: “Nossa missão é baixar os índices de criminalidade no Estado do Rio de Janeiro”. Em outra entrevista, o mesmo general ressalta: “As inteligências, elas sempre funcionaram. Quando você centraliza e unifica o comando, a tendência é que isso agilize o trabalho de inteligência. O Rio de Janeiro é um laboratório para o Brasil”.
Braga Netto (ao centro), juntamente com dois outros líderes da Intervenção (Fonte: O Dia).
O intuito do projeto de intervenção fica evidente nas falas do general. A operação propõe uma saída para a questão da violência nas favelas cariocas e, segundo ele, a inteligência militar se for colocada corretamente em ação resultará em uma diminuição da criminalidade nesses territórios. Além do mais, Carlos Cinelli, um dos principais porta-vozes da intervenção, chama a atenção para o empreendimento da força e para atividades de cunho humanitário: “A operação vai da ação humanitária ao uso mais intensivo da força. Essa expertise das forças armadas brasileiras foi uma das razões para o sucesso no Haiti”. A intervenção foi fundamentada em uma noção de emergência temporária e, por isso, apresentou uma natureza reativa. Logo, os militares garantem que conseguirão obter bons resultados até o final deste ano, data em que o projeto federal chega à sua validade.
Por outro lado, os desafios para as regiões faveladas podem criar consequências capazes de influenciar (e muitas vezes aumentar) a lógica da violência urbana; por exemplo, ao transpor o discurso da guerra – e consequentemente do inimigo – para contextos de vida urbana (MOULIN e TABAK, 2014). As intervenções humanitárias nesses espaços urbanos podem interferir em disputas locais sobre os direitos e territórios, alterando a relação entre os atores locais e, às vezes, até mesmo desempenhando funções tradicionalmente do Estado. A favela demanda proteção, mas também é um espaço de disputas políticas.
Portanto, a problemática dos direitos humanos é central na intervenção militar no Rio de Janeiro. Após a ocupação dos militares em algumas favelas cariocas, violações de direitos humanos começaram a ocorrer corriqueiramente, os tiroteios começaram a ser frequentes, assim como as mortes de moradores dessas comunidades. Além do mais, indivíduos que não estão envolvidos com o tráfico de drogas, vivem sob a tutela de um regime fortemente militarizado. O aplicativo Fogo Cruzado, que monitorou em tempo real os atos de violência, no período de 17 de fevereiro (data do início da intervenção) até 17 de março, 150 pessoas foram assassinadas na região metropolitana do Rio de Janeiro. Entre 16 de janeiro e 16 de fevereiro, o número de homicídios fechou em 126. As mortes aumentaram, como também a violência dentro das periferias cariocas, após o início da intervenção.
Dados do mesmo aplicativo indicam que, os dois meses pré-intervenção (janeiro e fevereiro) tiveram 1.299 tiroteios no Estado do Rio de Janeiro. Nos dois meses seguintes ao decreto (março e abril), o número aumentou para 1.502 trocas de tiros. “A culpa é desse Estado doente que está matando as nossas crianças com roupa de escola. Estão segurando mochila e caderno, não é arma, não é faca. Não estão roubando e nem se prostituindo, estão estudando!”, disse a trabalhadora doméstica Bruna Silva, mãe de Marcos Vinícius, um dos últimos meninos mortos pelas mãos de militares na operação policial na Maré, mais precisamente nas comunidades Vila do Pinheiro e Vila do João, a mesma contou com policiais civis e militares e soldados do Exército.
Crianças com uniformes da escola, rodeadas por soldados militares armados, no Complexo da Maré (Fonte: BOL, 2018).
O Coronel Roberto Itamar (um dos porta-vozes do projeto militar), respondeu à BBC Brasil, quando questionado sobre o desrespeito dos militares aos direitos das populações residentes das favelas que nada tinham a ver com tráfico de drogas: “Esse temor com relação à intervenção federal não se justifica, pelo argumento de que a intervenção é gerencial, administrativa. O braço de contenção dos índices criminalidade são as forças da segurança e a Garantia da Lei e da Ordem e esses são episódios de curta duração”. O número de mortes e as violações dos direitos humanos dentro das favelas, após o início da intervenção, são justificados e ignorados pela liderança do projeto, em prol de um bem maior de segurança pública.
Contudo, o propósito da intervenção é a utilização da força pela via militar, causando mais mortes, desrespeitando direitos de uma gama muito grande de pessoas e impondo um regime de grande opressão nos territórios ocupados. O discurso e o planejamento militar não levam em conta que os moradores das favelas são, primeiramente, moradores das cidades, para quem as soluções, prioridades e estratégias são definidas por e para aqueles impactados por tais práticas (Moulin e Tabak, 2014).
Sendo assim, quais humanos as práticas humanitárias militares estão tentando atender e proteger, os que residem na favela ou os que moram na cidade? O projeto intervencionista tem como foco principal trazer segurança para a periferia ou para as regiões mais desenvolvidas das metrópoles cariocas? A atuação da polícia e do exército no Rio auxiliam o entendimento desses questionamentos. De fevereiro à setembro de 2018 (período em que a intervenção já havia sido colocada em prática), 1024 suspeitos foram mortos em ações policiais no Rio, uma média de 4 mortes de suspeitos por dia (Portal O Globo, 2018).
Em 2018, uma a cada cinco mortes violentas no Rio de Janeiro aconteceu pelas mãos da polícia; dados do Instituto de Segurança Pública (ISP, 2018), mostram que, dos 4.133 assassinatos que ocorreram entre janeiro e julho deste ano, 895 — ou 21,7% — foram cometidos pelas forças de segurança e registrados como homicídios decorrentes de intervenção policial em regiões periféricas. Dessa maneira o plano técnico-administrativo é colocado em prática, sua base principal é perpetuar uma nova onda de violência, mascarada por discursos que apresentam uma convincente solução. A insegura, arriscada e mortífera realidade em que vive o povo favelado, não é levada em consideração. As tantas mortes não importam, somente o objetivo final que a todo custo precisa ser alcançado.
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[1] Graduada em Relações Internacionais pela PUC-Minas Gerais (2002). Mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio (2005) e PhD em Relações Internacionais pela McMaster University, Canadá (2009).
[2] Graduada em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2003), Mestre em Relações Internacionais na mesma Universidade (2009) e Doutora também em Relações Internacionais Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio (2014).
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