Por Ana Beatriz Mori e Maria Eduarda Alonso - graduandas em Relações Internacionais pela PUC-SP e membras do Programa de Educação Tutorial (PET-RI)
Diante de grande crise pandêmica e econômica, mais de 8 mil pessoas deixaram Marrocos no dia 18 de maio para buscar refúgio na cidade espanhola de Ceuta, em território africano, realizando travessias tanto a nado, quanto pelos muros que os separam. Sendo este número superior à quantidade anual de imigrantes recebidos pela Espanha em condições de normalidade, a massiva emigração foi motivada por uma grave crise diplomática entre as duas nações, em que o governo espanhol ofereceu asilo a um líder separatista da oposição de Rabat. Pouco depois de um dia, mais da metade dessas pessoas foram repatriadas, o que foi aprovado pela União Europeia, mas milhares de crianças ainda tinham seu destino como incerto.
Disponível em: www1.folha.uol.com.br. Acesso em: 19 jun. 2021.
As pessoas que buscaram refúgio são em sua maioria marroquinos. Uma morte foi relatada pelos oficiais espanhóis em decorrência de complicações na travessia. O grande fluxo de imigrantes em um único dia é inédito para Espanha, que não demorou em buscar reforços para o policiamento da cidade e acelerar o processo de devolução dos migrantes sem documentação. Pelo menos 5600 refugiados foram deportados num período de dois dias, mas 800 menores de idade ainda permanecem em território espanhol. Pouco menos de uma semana após a crise de Ceuta, grupos de imigrantes tentaram também deixar Marrocos pela entrada na cidade de Melilla, outra cidade autônoma espanhola em território africano.
Disponível em: infomigrants. Acesso em: 19 jun. 2021.
A atual desavença entre Marrocos e Espanha teria iniciado depois que o país europeu ofereceu asilo e tratamento para COVID-19 a Brahim Ghali, 73, líder separatista da Frente Polisário. O grupo em questão é considerado como terrorista por Rabat e luta pela soberania do Saara Ocidental, antiga colônia espanhola incorporada pelo país norte-africano em 1975, de forma que o Marrocos considerou inaceitável a postura espanhola, alertando que haveria consequências ao país por terem auxiliado o líder do Polisário. Foi relatado, então, que a migração foi facilitada pelas autoridades marroquinas como resposta, que teriam flexibilizado o controle das fronteiras naquele dia específico para pressionar a Espanha a interromper o tratamento de Ghali. As autoridades da União Europeia e oficiais do governo espanhol acusam Marrocos de usar politicamente seus migrantes como forma de garantir da Espanha maior apoio financeiro, referente a controle de fronteiras, e político, quanto a seu posicionamento na questão do Saara Ocidental. No entanto, podem ser questionadas as procedências das deportações expressas apoiadas por ambos, em que grupos defensores dos direitos humanos apontaram como realizadas sem um processo legal devido.
Saara Ocidental: aspectos históricos e embates diplomáticos
O Saara Ocidental encontra-se localizado ao Norte da África, voltado para o Oceano Atlântico e fazendo fronteira com o Marrocos ao Norte, com a Argélia ao Leste e Mauritânia ao Sul.
Disponível em: umpouquinhodecadalugar.com. Acesso em: 19 jun. 2021.
Como supracitado, o território foi previamente ocupado pela Espanha até 1975, quando Marrocos anexou a colônia. Tal movimento desencadeou, no mesmo ano, uma guerra entre o governo marroquino e a Frente Popular para Libertação (Frente Polisário) - que busca, até os dias de hoje, a autodeterminação de seu povo - levando, em 1991, a um acordo de cessar-fogo entre ambas as partes.
Essa questão voltou a ser debatida em dezembro de 2020, quando o então presidente norte-americano, Donald Trump, reconheceu a soberania marroquina sobre o território do Saara Ocidental, estimulando, como consequência, Rabat a estabelecer pressões sem precedentes sobre a Espanha e a União Europeia. Não obstante o aumento das tensões, González Laya, Ministra das Relações Exteriores da Espanha, afirma que o país não mudará seus posicionamentos a respeito do território disputado, rechaçando o reconhecimento estadunidense e ponderando que “A Espanha permanece firmemente comprometida com uma solução política dentro do quadro oferecido pela Organização das Nações Unidas”. Ademais, argumenta, assim como as forças de segurança espanholas, que as guardas marroquinas apresentaram uma “passividade incomum” em suas fronteiras. O governo espanhol, através de seu primeiro-ministro, demonstrou a necessidade de defender sua integridade territorial, partindo, em particular, para a busca de apoio da União Europeia, prometendo que serão adotadas “todas as medidas necessárias para reverter a situação extraordinária e excepcional”.
A crise migratória e a externalização das fronteiras
O discurso espanhol referente à inação do governo marroquinho sobre o controle de suas fronteiras leva também à discussões sobre a Política de Vizinhança, implementada desde 2003 pela Comissão Europeia. Tal política caracteriza-se por fornecer maiores oportunidades ao alcance dos objetivos estratégicos e geopolíticos da União Europeia, com projetos de governabilidade externa conduzidos por um amplo sentimento de insegurança. Isto porque os países da União - especialmente aqueles que são também signatários do Espaço Schengen - consideram suas zonas vizinhas, e não pertencentes à União Europeia, potencialmente perigosas, reunindo esforços para controlar essa “inseguridade” diretamente nos países não-membros, alimentando o processo de externalização das fronteiras.
Como parte desse processo, o controle de fluxos migratórios passou a ser conduzido, geograficamente, para além das fronteiras do território europeu, passando a função para países terceiros - de onde a grande maioria dos imigrantes e refugiados são oriundos - e constituindo uma fortificação para a União Europeia.
Assim, torna-se notório que o tratado de 1992, assinado entre Espanha e Marrocos a respeito da circulação de pessoas, não estabeleceu a estrutura necessária para essa questão, nem para possíveis desenvolvimentos positivos para a mesma. A rápida deportação dos refugiados causou grande receio em ativistas, que demonstraram preocupação quanto à possibilidade de violação de direitos humanos no processo. No entanto, não é aparente que a União Europeia partilhe da mesma apreensão: “a Espanha tem todo nosso apoio e solidariedade… As fronteiras da Espanha são as fronteiras da Europa”. Ademais, a atual crise migratória presente nas cidades de Ceuta e Melilla levanta diversos questionamentos a respeito dos verdadeiros interesses da Espanha sobre o país africano, sendo possível concluir que a instrumentalização do território marroquino por parte do país europeu tem como objetivo primordial o favorecimento da segurança de suas fronteiras no que tange ao combate ao terrorismo e à imigração, em detrimento da real busca e contribuição para a estabilidade do Marrocos.
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