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ENTREVISTA | Segurança europeia em debate: a Guerra na Ucrânia (Parte 2)

Maria Raquel Freire | Universidade de Coimbra


· Por Hasan Boscariol e Victoria Ennser - graduandos em Relações Internacionais pela PUC-SP e bolsistas do Programa de Educação Tutorial (PET-RI)

Fonte: The Guardian


Biografia: Maria Raquel Freire, doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Kent, Reino Unido, em 2002, é investigadora do Centro de Estudos Sociais e professora de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. É Coordenadora do Centro de Excelência Jean Monnet da Universidade de Coimbra (Relações de Paz, Ontologias e Narrativas na Europa: EU and its Eastern Neighbors | PRONE). Ela também é Professora Visitante no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. É Presidente da Assembleia da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e membro do Conselho Científico de Ciências Sociais e Humanas da Fundação Portuguesa para a Ciência e Tecnologia. Os seus interesses de investigação centram-se nos estudos da paz, particularmente na manutenção da paz e na construção da paz; política externa, segurança internacional, União Europeia, Rússia e espaço pós-soviético. Ela tem publicado extensivamente sobre esses tópicos (Fonte: Centre for Social Studies, University of Coimbra)


Nota ao leitor: esta é a Parte 2 da entrevista com a Profa. Maria Raquel Freire, da Universidade de Coimbra. Acesse a Parte 1 aqui.


O isolamento geopolítico da Rússia tem sido bastante comentado pelos acadêmicos de RI. Em paralelo, o governo ucraniano tem se movimentado para mobilizar seus parceiros do bloco europeu em relação às sanções, tendo inclusive feito um discurso diretamente ao governo português em parlamento nacional cerca de duas semanas atrás. Você acredita que esta posição russa é sustentável diante das sanções que estão sendo colocadas?


A questão das sanções é, de fato, uma questão interessante neste contexto. Primeiro, porque, em 2014, a União Europeia mostrou uma grande dificuldade em responder àquilo que foi a anexação da Crimeia demorando a acordar um conjunto de sanções, que na realidade foram criticadas como sendo muito leves e efetivamente não tendo grande impacto na economia russa. Na realidade, naquele momento, as sanções também visavam algumas personalidades e não permitiam a livre circulação.

Na situação atual, parece-me que o cenário é um pouco diferente. A União Europeia já está no seu sexto pacote de sanções que são mais intensas. Eu acho que tem havido, de fato, resultados concretos. Obviamente, a Rússia nos últimos anos e desde 2014, em particular, foi se preparando e, portanto, as suas reservas monetárias estavam bem sólidas, a Rússia estava minimamente preparada para enfrentar as sanções . E há uma grande interdependência na cena; sabemos que as sanções naquilo que é a área que mais afetaria a Rússia têm a ver com o petróleo e do gás natural, que em 2014 não foram afetadas e agora está a haver grande dificuldade em aplicar sanções a este nível.

O fato da interdependência na área energética entre a Europa Ocidental e a Rússia ser enorme vem desde o período da Guerra Fria. Não se fala muito sobre isto, mas os primeiros gasodutos foram construídos na década de 50, num contexto em que as relações entre a União Soviética e o Ocidente eram tensas. Mas foi sempre considerado que isto era negócio e que deveria ser diferenciado daquilo que é a área política, sendo os gasodutos e oleodutos construídos, basicamente, a rede que temos atualmente e que tem sido expandida, demonstrando, portanto, uma lógica de interdependência muito grande desde o período da União Soviética.

Com o adensar de alguma tensão nas relações entre a União Europeia e a Rússia, em particular, também da NATO e da Rússia, foi posta em marcha aquilo que era chamado de uma política de diversificação e isso quer na Rússia, quer no quadro ocidental e portanto, não é novidade que a Rússia tem negociado acordos energéticos com a China, com a Índia, etc, que agora foram reforçados, mas também para não ficar dependente do mercado europeu, porque de fato era o principal mercado para os recursos energéticos russos. Da mesma forma, a União Europeia há vários anos tem também estado a diversificar. O caso de Portugal, por exemplo, é interessante, pois mais de 90% do nosso gás natural vem da Argélia; ou seja, o sul da Europa é menos dependente da Rússia do que o leste da Europa em matéria energética. Mesmo com o desenvolvimento de energias verdes, a Rússia tem investido muito nesta área, tal como a Europa também tem estado a investir muito. Mas, apesar de tudo, o ritmo desta diversificação não consegue eliminar a interdependência evidente. Apesar de, no contexto atual, a Rússia ter ameaçado cortar o abastecimento, na prática não cortou ainda, porque precisa também de que a Europa continue a comprar energia a estes preços elevadíssimos a que está neste momento.

Houve aqui uma alteração importante que foi o caso da Alemanha. Portanto, o Nord-Stream, que traz o gás natural diretamente da Rússia para a Alemanha, e o Nord-Stream 2, já estava pronto, portanto, eram questões técnicas e de certificação que estavam a ser verificadas quando o governo alemão suspendeu o projeto. Houve uma altura em que não havia a certeza como é que isto ia ser gerido e teve um grande impacto em termos do planejamento russo e alemão. E, portanto, aquilo que nós vemos é um esforço enorme de ambas as partes para se tornarem o mais independentes possíveis. Claramente tem sido difícil, porque mesmo para a Rússia, que tem estado a negociar a construção de dois novos oleodutos para a China, no caso já temos o Power of Siberia e eles querem construir o Power of Siberia 2 e ainda um outro que vai pelo Cazaquistão até até à China, negociou recentemente acordos com a Índia e portanto está a vender petróleo, por exemplo, à Índia, na casa dos 30 dólares a 35 dólares por barril, o que é muito barato face aos mercados internacionais.

A Índia que assinou estes acordos de compra, obviamente tem todo o interesse em receber energia a estes preços e, portanto, é uma forma de a Rússia garantir que consegue continuar a vender. Mas aquilo que nós sabemos é que estes acordos e aquilo que tem vendido para a China diminuem os efeitos das sanções, mas não substituem a conexão junto a Europa e, portanto, há aqui uma relação grande de interdependência. Geralmente há uma tendência para colocarmos a Europa como independente da Rússia em termos energéticos. Às vezes, na Rússia há a narrativa de que Moscou é dependente da Europa e, portanto, temos que diversificar.

Na realidade, eu acho que é uma relação de interdependência muito forte, o que explica a resistência da Alemanha em romper com essa relação. Entendo que a União Europeia está a caminhar para sancionar o petróleo russo e isso já vai ter também um impacto grande na economia russa. O gás natural é um bocadinho mais difícil, mas se especula que a Alemanha vai arrendar os sistemas para receber o gás natural liquefeito enquanto está no processo de construir que demora algum tempo. E, portanto, claramente está a haver um esforço do governo alemão para diminuir a sua dependência do gás natural russo. Só acrescentar aqui se calhar uma nota interessante, obviamente que esta dimensão económica e energética é fundamental. Mas os “oligarcas russos”, têm vindo a público manifestar-se contra a guerra e contra estas sanções, porque obviamente têm afetado muito os negócios, porque há uma grande interdependência da Rússia com a União Europeia. Haviam muitos negócios, portanto, este corte nas relações têm impacto direto e, dessa forma, sente-se claramente o mesmo em termos dos produtos que a Rússia importa, tendo voltado-se muito mais agora para países como a Turquia, Índia, e China, para adquirir produtos que comprava nos mercados europeus. Mas, portanto, a narrativa de que as sanções não afetam a Rússia, que a Rússia tem capacidade econômica suficiente para aguentar, pode ser discutida. Ou seja, de fato, as sanções têm impactado muito a economia russa e, não esquecendo que o esforço de guerra é enorme junto ao fato de que a capacidade russa não é ilimitada, parece me que a continuidade no próprio esforço de guerra vai trazer maior pressão à própria economia nacional e não vai jogar favoravelmente a Moscou.

Em um último adendo, acredito que Zelensky tem desenvolvido uma forma de discurso público forte em relação a seus parceiros ocidentais. Eu acho que o presidente ucraniano, tem tido uma capacidade em termos da forma como coloca o discurso e como apela ao apoio ocidental em especial nos temas de armas, do apoio económico e como tem de fato mobilizado as elites políticas no Ocidente auxiliando neste exercício de agregação de apoio à Ucrânia e, portanto, também, fomentando uma discussão, em termos da entrega de armamento e do apoio como armamento. A discussão tem estado em termos da perspectiva da Ucrânia, sobre o direito à autodefesa. Portanto, como a Rússia teria invadido sem uma justificação coerente, sendo a narrativa da desmilitarização e da desnazificação uma narrativa pouco credível, isso tem permitido de alguma forma este apoio continuado ao regime ucraniano. É muito interessante ver na narrativa ocidental a defesa da democracia versus o eixo do autoritarismo e, portanto, este tipo de narrativa tem estado também muito presente e acaba por enquadrar o apoio que tem sido usado pelo Ocidente à Ucrânia nesta sua autodefesa face ao seu agressor, no caso a Rússia.


Fonte: Vox


Em entrevista recente ao jornal Times, o ex-presidente, e atual candidato a presidência brasileira, Luiz Inácio Lula da Silva tocou no assunto sobre o conflito Rússia e Ucrânia, afirmando que o mesmo é resultado de aspirações equivocadas de ambos os lados e que poderia ter sido solucionado com uma maior atuação diplomática de certos atores, incluindo na sua fala, os governos francês e alemão. Como a professora enxerga estas falas de Lula em relação ao atual posicionamento do governo brasileiro sobre a situação?


Em relação à política do Bolsonaro, é interessante que esta dita política de neutralidade, em que não condenamos expressamente, mas também não damos o nosso apoio expresso, não é única do Brasil. Tanto que há vários países que têm optado por esta por esta linha e é interessante como de alguma forma até os próprios BRICS foram reativados perante a Rússia a tentar encontrar aqui alguma forma de apoio, mesmo que não expresso, porque no caso da Assembleia Geral das Nações Unidas, de fato, nós não vimos estes países votarem ao lado da Rússia e isso é de alguma forma, sinalizador. E o que isto mostra é, de alguma forma, uma espécie de não alinhamento que permita margem de manobra a estes países para poderem manter relações e diálogos em canais com o Ocidente, como os Estados Unidos e União Europeia, enquanto mantém também canais de diálogo e de negócio com a Rússia. O caso do Brasil é muito interessante porque Brasília compra muitos fertilizantes da Rússia, sendo o Brasil um dos produtores mundiais de soja, por exemplo. Portanto existem relações comerciais que são muito importantes em termos da própria economia brasileira e manter-se se o fluir das relações económicas é essencial ao governo russo para que o mesmo possa fazer face às sanções, mantendo relações fundamentais neste período para a própria economia russa, sem necessariamente haver um compromisso destes países.

Em relação ao Lula e à falha da diplomacia de fato houve tentativas de tentar encontrar algum maior entendimento entre Rússia e União Europeia. Porém, o cenário já vinha se construindo. O último discurso anual de Putin, em 2021, foi um discurso de grande descontentamento e um discurso muito rígido na forma como fala sobre as relações com o Ocidente, já demonstrando alguma hostilidade, e falando sobre linhas vermelhas que poderiam virem a serem ultrapassadas e com as quais a Rússia nunca vai concordar. Não podemos esquecer que 2014 é um momento de ruptura com o que se passa na Ucrânia, com a guerra da Crimeia, a anexação da região e, portanto, as relações com o Ocidente deterioraram- se muito e nós não conseguimos desde 2014 até 24 de fevereiro de 2022 de fato, criar aqui uma narrativa mais amigável, digamos assim. De qualquer forma, o exercício diplomático vai estar lá constantemente, eu me referi logo no início da nossa conversa, ao Conselho NATO-Rússia, que apesar de suspenso, voltaria a ter reuniões. Houve muitos encontros de líderes ocidentais com o líder russo, ainda com Merkel, na chancelaria alemã, por exemplo. O próprio presidente Macron foi sempre um presidente que tentou manter o diálogo aberto com Moscou. A dada altura, penso que foi em 2019, Macron na reunião com os seus embaixadores, afirmava que nós temos que encontrar linhas de diálogo com a Rússia, não podendo isolar Moscou porque senão vamos estar a empurrá-la para a China e isso não é estrategicamente interessante para a Europa.

Portanto, avalio que houve, no quadro da diplomacia europeia alguma tentativa de manter diálogo e canais diplomáticos, mesmo depois de as relações se deteriorarem. Claro que 2021 é um ano muito difícil. Temos o artigo que Putin assina no verão de 2021, em que claramente ele fala desta irmandade eslava e retira de alguma forma que a Ucrânia é uma parte integrante deste mundo e, portanto, retira aquilo que a Rússia entende que é a legitimidade da Ucrânia existir enquanto um Estado independente. E, portanto, há claramente uma alteração na narrativa que vai preparando o caminho para aquilo que depois seria a invasão em fevereiro. Portanto, eu acho que há um crescendo na narrativa russa e no posicionamento russo em termos da forma como se começa a posicionar em termos do que é este espaço eslavo.

As eleições na Bielorrússia, a contestação às eleições e a intervenção russa em apoio ao presidente Lukashenko acabam por levar a que a questão de que a Bielorrússia não consegue sobreviver sem o apoio russo. E depois há a questão da Ucrânia, que é uma questão que vai estar na agenda de Putin ao longo do tempo, no sentido de que temos que resolver a questão ucraniana e tem que ser resolvida aos olhos da Rússia nesta lógica de inclusão da Ucrânia na esfera de influência russa e, portanto, qualquer tentativa de aproximação ou de inclusão de Kiev junto de uma maior integração na União Europeia ou na NATO, obviamente tem que ser contida. Isto torna-se claro em 2014, porém acredito que em 2014 a Rússia perde a Ucrânia e, portanto, esta retórica dos irmãos eslavos. A partir do momento em que há a anexação da Crimeia e a instabilidade no Donbass, aquilo a que vamos assistir é uma sociedade ucraniana que até nem era muito necessariamente pró ocidental, começa a entender a Russia como agressor desenvolvendo um movimento nacionalista, numa lógica de a Ucrânia deve existir como um Estado independente.

Agora, obviamente, essa questão, com a guerra que se inicia em 2022, torna-se muito mais clara e muito mais evidente nas narrativas. Com isso, nós, Europa, poderíamos ter acautelado as preocupações russas de uma forma diferente? Sim podíamos. Se houve uma escalada na própria narrativa e na construção discursiva russa, em termos da forma como queria lidar com a questão ucraniana? Houve. Se reduziu o espaço político e o espaço de diálogo com o avançar das propostas maximalistas da parte da Rússia, retirando também alguma capacidade de resposta do Ocidente, não deixando grande espaço de manobra nem a NATO nem a União Europeia, levando a uma falta de uma postura de maior diálogo, em especial em relação a novas propostas. Então, se a questão é a revisão da ordem de segurança europeia, vamos repensar novos tratados de controle de armamento, novos tratados relacionados com medidas de consolidação de confiança que permitam enfim começarmos a pensar nesta ordem.

Mas na realidade nada disso vai ter acolhimento e portanto eu diria que no passado poderíamos ter de fato acautelado algumas das preocupações russas de uma forma diferenciada. Parece-me que houve algumas tentativas. A Rússia foi socializada, a Rússia chegou a fazer parte do G7, que passou a ser chamado G8, por exemplo. E, portanto, também aquela narrativa de a Rússia ter sido completamente excluída parece-me demasiado simplista. Parece-me que muitas vezes nas análises tudo isto é esquecido e apesar de tudo, estes momentos existiram. Houve algum espaço que depois se foi fechando devido a uma série de acontecimentos. Um elemento que eu acho que é muito importante e que tem sido muito esquecido nas análises é a própria política interna russa e a forma como a elite política, muito próxima de Vladimir Putin, olha o espaço pós soviético e desenhou esta ideia deste mundo eslavo que precisava de ser reconfigurado e recomposto de alguma forma. Mas é que este discurso muito mais claro em termos de negar à Ucrânia a sua existência enquanto Estado independente e autónomo, é uma narrativa que está presente em alguns momentos, porém, na realidade a Ucrânia é um Estado independente desde o final da União Soviética. Não houve nos últimos 30 anos um grande questionamento desta independência e, portanto, eu acho que é importante nós voltarmos a estes básicos, nunca esquecendo que a desagregação da União Soviética resultou de um acordo entre os presidentes da Rússia, da Bielorrússia e da Ucrânia, que assinam um pacto que leva à dissolução da União Soviética e propõe na altura a criação da Comunidade de Estados Independentes. E, portanto, aqui não é necessariamente uma intervenção ocidental, como alguns dizem em termos deste passado histórico.

Aliás, foi essencialmente uma questão interna de não funcionamento que acabou por levar à desagregação da União Soviética. E, portanto, parece me que há uma agenda agressiva russa que recupera, enfim, na história, tentativas de legitimação desta guerra e desta intervenção, mas que eu considero na minha leitura, não legítimas e, portanto, esta é uma agressão à ordem de segurança europeia e àquilo que eram as preocupações russas em relação à expansão da NATO em relação à sua exclusão da dita ordem de segurança europeia. Tudo o que poderiam ser, questões credíveis, legítimas da parte russa perdem toda a legitimidade a partir do momento em que a Rússia se torna o principal problema da segurança europeia, se torna um agressor. E, portanto, estamos a falar aqui de um caso de agressão territorial, no caso a violação da integridade territorial de um Estado independente.

Concluiria, dizendo o que um colega russo tem comentado neste quadro, que a invasão russa territorial da Ucrânia tornou-se a maior ação anti-russa deste século. Em suma, a Rússia que pretendia o seu reconhecimento enquanto uma grande potência, enquanto igual no sistema internacional, buscando o reconhecimento do seu estatuto e do seu prestígio internacional, acabou por perder em todas estas frentes, com a invasão da Ucrânia.


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