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ENTREVISTA | Segurança europeia em debate: a Guerra na Ucrânia (Parte 1)

Updated: Jun 13, 2022

Maria Raquel Freire | Universidade de Coimbra


· Por Hasan Boscariol e Victoria Ennser - graduandos em Relações Internacionais pela PUC-SP e bolsistas do Programa de Educação Tutorial (PET-RI)

Fonte: European Council of Foreign Relations


O conflito na Ucrânia tem gerado debates inéditos e revisitado questões de longa data sobre o papel de importantes atores no mundo pós-sovietico, nomeadamente a NATO, as principais lideranças políticas da União Europeia e o próprio Kremlin. Putin tem enfatizado sua posição sob ameaça ao invadir a Ucrânia, mas as respostas do Ocidente têm usado o mesmo argumento na agenda de expansão da NATO. Para entender melhor as dinâmicas do conflito e de segurança na Europa entrevistamos a Profa. Dra. Maria Raquel Freire, especialista no assunto e docente de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. A entrevista foi concedida no dia 06 de maio de 2022 e foi conduzida pelos graduandos em Relações Internacionais da PUC-SP em intercâmbio na Universidade de Coimbra, Victoria Ennser e Hasan Boscariol, como parte do Programa de Educação Tutorial de Relações Internacionais.




Biografia: Maria Raquel Freire, doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Kent, Reino Unido, em 2002, é investigadora do Centro de Estudos Sociais e professora de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. É Coordenadora do Centro de Excelência Jean Monnet da Universidade de Coimbra (Relações de Paz, Ontologias e Narrativas na Europa: EU and its Eastern Neighbors | PRONE). Ela também é Professora Visitante no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. É Presidente da Assembleia da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e membro do Conselho Científico de Ciências Sociais e Humanas da Fundação Portuguesa para a Ciência e Tecnologia. Os seus interesses de investigação centram-se nos estudos da paz, particularmente na manutenção da paz e na construção da paz; política externa, segurança internacional, União Europeia, Rússia e espaço pós-soviético. Ela tem publicado extensivamente sobre esses tópicos (Fonte: Centre for Social Studies, University of Coimbra)



A guerra na Ucrânia reviveu o debate sobre a adesão de novos membros à NATO. Finlândia e Suécia - historicamente neutras na ordem pós-soviética - demonstraram interesse em formalizar suas candidaturas à Aliança nos próximos meses. A profa. entende que a NATO de fato representa uma ameaça à segurança russa? Nesse sentido, qual a implicação da expansão da NATO para este conflito e para o futuro?


Eu diria que em termos da narrativa russa e daquilo a que temos assistido é, claramente, a representação da NATO como o inimigo; e portanto, esteve sempre muito presente a ideia de que, com o final da União Soviética e o desmoronamento do Pacto de Varsóvia, a NATO - que foi criada naquele contexto de Guerra Fria - deveria, também, desmobilizar-se no sentido em que sua existência deixava te fazer sentido já que a outra aliança militar não existia mais.

No entanto, a NATO de alguma forma reinventa-se, mantém a sua existência, alarga a sua agenda e se alarga, também, em termos geográficos, alcançando novos Estados. Diante disso, a Rússia reage com certa cautela à permanência da NATO e àquilo que vemos na narrativa russa, crescentemente ao longo dos anos; isto é, a identificação da NATO como uma organização inimiga.

Tive a oportunidade de participar numa destas apresentações do Ministério da Defesa de Portugal em Moscovo e a forma como o governo russo fala da NATO é exatamente esta: de que se tem um conjunto de bases militares em torno do do seu território e, portanto, há uma ideia de política de cerco. É por isso que a Rússia, rodeada desta aliança militar a entende como inimiga, isso tem sido claro.

Já em 2008 a Rússia mostrou-se muito descontente com a proposta da NATO de incorporação da Geórgia e da Ucrânia, e nos documentos que foram apresentados pela Rússia no final do ano passado, de revisão da ordem internacional, que apresentam claramente a ideia de que a NATO deveria ser reduzida naquilo que é o seu papel. A Rússia, neste sentido, sublinha sempre que a ordem internacional e a segurança internacional devem ser da responsabilidade das Nações Unidas, primariamente, onde no Conselho de Segurança a Rússia tem um assento permanente.

Fazendo uma revisão histórica, da evolução das relações pós-soviéticas, logo no início do ano 2000, quando Vladimir Putin assumiu a presidência da Rússia, ele deu entrevistas e fez comentários, dizendo, que se “a NATO faz parte da cultura europeia”, o mesmo se pode dizer da Rússia, que também se sente parte desta cultura alargada” chamada civilização europeia. Portanto, há uma narrativa - inicialmente - que não é absolutamente contrária e que não retrata a NATO de uma forma tão agressiva. Tanto que, ainda com Yeltsin na presidência, a Rússia adere à Parceria para a Paz em 1994 no âmbito da NATO; participa de operações da NATO nos Balcãs com forças militares e, tem-se, nos anos seguintes à continuação de diversos acordos de cooperação e amizade entre NATO e a Rússia, a criação do Conselho NATO-Rússia em 2012; e, no âmbito deste Conselho, a Rússia tem acesso às reuniões da NATO. Obviamente não tem direito de voto nem de veto, mas a ideia através do órgão é que se crie uma política de confiança e transparência entre a Rússia e a NATO e, portanto, uma ideia de desmontar o inimigo.

Em 2014, com a guerra na Ucrânia e a anexação da Crimeia, são suspensas as atividades no âmbito do Conselho NATO-Rússia. Mas, sucessivamente em 2016, 2017, 2018, 2019 e em janeiro deste (2022) ano houve algumas reuniões do Conselho NATO-Rússia de modo ad hoc, não tanto regulares, porque diplomaticamente há uma suspensão da Rússia, mas entendeu-se que deveriam ser mantidos alguns canais de diálogo. Por isso é interessante relembrar este processo bem como, do lado russo, a criação da Organização do Tratado de Segurança Coletiva, que é a aliança militar, digamos assim, que agrega a Rússia e alguns Estados do antigo espaço pós-soviético.

O que eu diria é que, apesar desta tentativa de criação de medidas de transparência e de consolidação de confiança, na realidade não se conseguiu criar verdadeiramente uma relação desta natureza. Isto é muito claro no caso da NATO onde a Rússia, ao longo do tempo, foi construindo uma narrativa na qual nas doutrinas militares, nos conceitos estratégicos de segurança e nos próprios conceitos de política externa é sublinhado que a NATO é a principal ameaça externa à Rússia. Consequentemente, com o alargamento da NATO e a aproximação de suas forças militares às fronteiras da Rússia vai-se reafirmando esta narrativa e a percepção que a acompanha.

O que me parece, portanto, é que as ditas parcerias estratégicas, com a NATO ou a União Europeia, que foram construídas ao longo das últimas décadas, se esvaziaram. De fato, na realidade nunca conseguimos criar a confiança necessária para não chegarmos a uma posição de atrito total como vivemos atualmente. Naturalmente, aquilo que nós temos neste momento é o entendimento na Europa Ocidental e na própria NATO de que a Rússia é uma ameaça à segurança europeia. Nisto, a Rússia - que sempre se posicionou em uma lógica de “temos de construir uma segurança europeia mais inclusiva e sinto-me excluída dos mecanismos” - nas tentativas que foram surgindo de maior inclusão da Rússia acabaram por falhar , assim como o Conselho NATO-Rússia.

Agora o que nós temos no Ocidente, de fato, é a Rússia sendo considerada uma ameaça à segurança europeia e, portanto, países como a Finlândia e a Suécia pedirem a adesão à NATO ocorre exatamente porque sentem que há uma alteração do contexto estratégico mais alargado e que, de fato, uma relação que tentava-se manter minimamente cordial - apesar das muitas dificuldades que às vezes havia nas relações entre a União Europeia e a NATO e a Rússia - toda a confiança foi quebrada. Portanto, estes pedidos de adesão seguem exatamente a lógica de que há uma situação de grande instabilidade, de grande ameaça e de que a segurança desses países poderá ser reforçada no quadro da NATO.

Obviamente que isto gera, se quisermos usar o dilema de segurança, mais em insegurança; isto porque para a Rússia a NATO é claramente o inimigo número um e o fato de mais Estados quererem aderir à NATO reforça esta dinâmica. Em termos da guerra em si, neste momento, o que está a acontecer na Ucrânia, desde que a guerra não escalou - no sentido de se tornar uma guerra que envolve a própria NATO ao ponto que se torne uma guerra alargada a toda a Europa - não me parece que a adesão destes dois países venha a alterar o cenário da guerra na Ucrânia, além de claramente reforçar o diferencial entre a NATO e a Rússia, entre o Ocidente e a Rússia.



Fonte: BBC News


A profa. tem se referido ultimamente a um "revisionismo militarizado da Rússia" nesta invasão à Ucrânia. Você acha que esse comportamento por parte do Kremlin é decisivo para uma tendência também cada vez mais militarizada no campo da segurança do bloco europeu?


Eu concordo plenamente que as questões de segurança e defesa no quadro da União Europeia foram sempre muito complexas e difíceis de articular, porque precisamos de decisão por unanimidade, levando em consideração os interesses de todos os Estados membros. Mas, de fato, esta invasão russa da Ucrânia levou a uma resposta muito rápida e muito coesa dos dos países da União Europeia. Estava já em negociação um novo documento estratégico de Segurança e Defesa, que é a Bússola Estratégica, aprovada no dia 21 de março deste ano, e já estava mais ou menos esboçada a invasão da Ucrânia e, portanto, a versão final foi ainda ajustada de maneira a refletir o novo contexto estratégico na própria Europa. Aliás, alguns analistas diziam até que o documento, mesmo antes de aprovado, já estava obsoleto, porque houve uma alteração fundamental na ordem de segurança europeia.

Este documento, é uma verdadeira bússola estratégica, porque tentava reposicionar a União Europeia em matéria de segurança e defesa de forma mais clara em diferentes áreas. A área da gestão de crises, por exemplo, é uma área onde a União Europeia tem se envolvido mais; a questão da resiliência, que tem a ver também com defesa neste momento; a questão das parcerias, que é muito importante e obviamente a questão dos Estados Unidos e sua relação com a NATO além disso, há a questão das capacidades, onde entra a maior fatia do investimento na área da defesa.

Neste momento nós temos um paralelo de esforços na Europa, já que os países membros da NATO não são exatamente iguais aos países membros da União Europeia, havendo um grande overlap, digamos assim, e há um compromisso muito claro no quadro da NATO de cumprimento dos 2% da defesa e é muito interessante o caso da Alemanha, porque a Alemanha fez uma alteração estratégica fundamental na sua política externa; foi um país que manteve uma política bastante cautelosa na área dos investimentos em termos militares; também pelo seu passado de uma política de normalização da Alemanha no quadro europeu. E neste momento temos o anúncio não somente de que a Alemanha está disponível para usar 2% do seu PIB em investimentos na área da defesa e da capacitação militar, mas que, além disso, a Alemanha aprovou uma linha extra-orçamental em termos de investimentos nesta área. Tudo isto avançando, significará que, a breve prazo, a Alemanha será, em termos de investimento militar, a terceira potência em nível mundial, depois dos Estados Unidos e da China. Isto é, de fato, uma alteração fundamental já que todos os países da União Europeia e NATO caminham para um processo crescente de investimentos na área de Defesa.

Avalio que há alguns desafios que se mantêm. O primeiro deles tem a ver com a implementação destes princípios da postura estratégica e da maior capacitação da Europa. Já houve outros documentos estratégicos e outras tentativas, mas é um pouco difícil mantermos esta união no quadro dos 12 Estados-membros. Neste momento, temos a guerra a acontecer, e a leitura da Rússia enquanto ameaça, o que tem permitido maior consensualização, mas sabemos que há países como a Hungria, por exemplo, que mantém uma política dual em relação à Rússia e, portanto, uma vez ultrapassado o conflito na Ucrânia, o quadro para a implementação voltará a alterar-se.

O outro grande desafio diz respeito à articulação entre a NATO e a União Europeia. Esta é uma velha questão na Europa e que se mantém até hoje e tem muito a ver com a necessidade da União Europeia desenvolver autonomia estratégica, para atuar independentemente do apoio e do envolvimento, quer dos Estados Unidos, quer da NATO. Portanto, há um desafio na nossa área de vizinhança; a postura estratégica sublinha muito esta dimensão da Europa regional, até mais, se calhar, do que a Europa global. Apesar de haver referências ainda ao Pacífico, há claramente um grande sublinhar desta dimensão de vizinhança da União Europeia e de nós termos capacidades para, se for preciso intervir sem ter que contar com as capacidades da NATO, ou com o envolvimento e o compromisso dos Estados Unidos. Esta discussão reforçou-se com Trump na presidência, quando ameaçou retirar-se da NATO e disse claramente que não estava disponível para se envolver em questões que são do foro europeu e, portanto, que têm que ser responsabilidade dos europeus. Assim, a forma como nós vamos ser capazes de efetivamente desenvolver esta autonomia estratégica não é completamente clara no quadro da União Europeia e tem muito a ver com a forma como nós nos vamos articular com a NATO. De alguma forma, o fato dos Estados Unidos terem regressado à Europa com esta questão da Ucrânia levanta questões adicionais porque retira algum espaço de manobra à própria União Europeia para desenvolver suas capacidades mais independentes, porque sente novamente a presença dos EUA. Mas este é o desafio; parece-me que é importante, de fato, a União Europeia desenvolver capacidades que lhe permitam alguma autonomia estratégica; acho que a União Europeia não se deve tornar uma potência militar, pois deve continuar a tentar afirmar-se no sistema internacional como uma potência civil.

Mas, por exemplo, a discussão a respeito do Exército Europeu parece-me que é uma questão prematura e mantenho algumas reservas em relação a isso. Acho que a questão da autonomia estratégica, da articulação das capacidades da União Europeia com as da NATO é interessante e relevante, até para não haver sobreposição de capacidades, duplicação desnecessária de investimentos nesta nesta matéria. Enfim, acho que neste momento estamos a assistir claramente a um compromisso com gastos na área da defesa e na área militar. Como é que isto se vai refletir em termos daquilo que será a nova ordem de segurança europeia para mim não é ainda completamente claro por causa destas questões que estão ainda em cima da mesa.


Nota ao leitor: a Parte 2 desta entrevista será disponibilizada em breve. Acompanhe as redes sociais e o blog do PET-RI para saber das próximas postagens.


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