O presente artigo começou a ser escrito há mais de um mês e trazia, de imediato, uma reflexão acerca das profundas discrepâncias que existiam entre as declarações de responsáveis pela segurança pública de São Paulo e a pesquisa de acadêmicos a respeito do Primeiro Comando da Capital (PCC). Enquanto os estudiosos afirmam que o PCC é “um importante ator político”, o outro grupo insistia em negar que a facção possuísse qualquer relevância. Sobre o ataque a várias bases da PM em maio de 2007 – exatamente um ano após o mais intenso período de confronto entre a Polícia e o PCC -, o então Secretário da Segurança Pública de São Paulo, Ronaldo Marzagão, afirmou que aquilo havia sido feito “por pessoas que querem criar um clima de tumulto, um ambiente de pânico. São oportunistas que não pertencem a nenhuma facção.”. A primeira versão desse artigo insinuava que esse tipo de posicionamento demonstraria a preocupação do Estado em manter-se como o garantidor da segurança no imaginário social, evitando a ideia de que sua eficiência e poder estivessem ameaçados e, mais do que isso, de que haveria um grupo rival a ele.
No entanto, há cerca de um mês, o cenário sofreu uma importante reviravolta. No dia 11 de outubro o jornal O Estado de São Paulo trouxe a seguinte manchete: “Maior investigação da história do crime organizado denuncia 175 do PCC – Ministério Público fez um raio X do Primeiro Comando da Capital e pediu à Justiça a internação de 32 chefes no Regime Disciplinar Diferenciado”. De forma inédita, portanto, uma investigação dos órgãos públicos os forçou a admitirem estarem cientes da existência, da dimensão e da estrutura do PCC. “O PCC é uma realidade” declarou, finalmente o atual secretário de Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella.
A investigação revela muito do que estudiosos já diziam há algum tempo: O Primeiro Comando da Capital está presente em 22 estados do país, controla 90% dos presídios de São Paulo, monopoliza o tráfico de drogas no Estado e domina um enorme capital e arsenal bélico. Trás, ainda, uma novidade que alarmou as autoridades: A facção chegou a planejar a morte do governador Geraldo Alkmin ainda nesse semestre.
A reação dos agentes de segurança em relação ás providências que devem ser tomadas para combater o Comando foram rápidas. A primeira delas foi a solicitação de transferência de 32 detentos para o Regime Disciplinar Diferenciado – que consiste na detenção do indivíduo em uma cela solitária durante 22 horas por dia, sem qualquer contato com o mundo externo, em um período que pode durar até 1/6 da sua pena. Outra medida anunciada foi a apuração sobre o envolvimento de alguns policiais com a facção, que agiam, sobretudo, chantageando seus membros.
Contudo, a investigação do ministério público não trás outras conclusões elaboradas por cientistas sociais: A ascensão do PCC está intrinsicamente ligada á redução de 72% do número de homicídios do Estado desde o final da década de 90 – já que a sua supremacia põe fim aos sangrentos conflitos entre grupos traficantes rivais, que aconteciam cotidianamente na periferia de São Paulo. Esse dado nos leva ao seguinte questionamento: Acabar com o PCC significa acabar ou ao menos diminuir a violência urbana? Ou seja, estaria sendo cumprido o papel do Estado e das forças de segurança como provedores dessa mesma segurança?
Temos mais dados históricos e sociais para nos auxiliar na busca dessa resposta. São Paulo é o Estado com a maior população carcerária do Brasil (que, por sua vez, ocupa o 4º lugar no ranking mundial dos sistemas carcerários mais lotados). Do total de 71 mil presos, 87% estão detidos por crimes contra o patrimônio e por tráfico de drogas. Agora, sobre a história do PCC, sabe-se que a facção nasceu no interior do sistema carcerário no ano de 1993 (logo após o Massacre do Carandiru), como uma organização que buscava a união dos presidiários contra os amplos abusos e maus tratos proferidos contra eles pelos policiais diariamente. Ele foi responsável, por exemplo, por coordenar uma rebelião simultânea em 74 unidades do sistema prisional em 2006. Ele proibiu o estupro dentro do presídio com o objetivo de incentivar uma relação de respeito entre os “irmãos”. No mesmo sentido, o crack foi restringido com a intenção de preservar a saúde e o controle sobre o corpo e a mente. Em muitas prisões, o PCC é responsável até mesmo pela distribuição dos alimentos, o que significa uma quebra na lógica segundo a qual os presos dependem da polícia para se manterem vivos na reclusão, o que antes atrelava a prática de chantagens, extorsões e violências físicas sem limites contra eles. Fora da reclusão, o Comando ampara financeiramente as famílias de seus membros.
Em suma, o PCC assumiu alguns dos papéis deixados vagos pelo Estado, acima de tudo dentro das prisões. É o Primeiro Comando da Capital que provem segurança e amparo aos presidiários e suas famílias, por exemplo. Para combater a organização parece ser necessário, portanto, que o Estado assuma esses papéis que nunca foram realmente encarados como tais. Não precisamos nem entrar no campo da discussão moral sobre se é “correto” ou não imprimir maus tratos, torturas e punições desproporcionais aos criminosos para percebermos que tais atos não são nem ao menos eficazes. E deriva daí a questão final: Qual é a serventia do uso do Regime Disciplinar Diferenciado no combate ao PCC? Não é justamente a resistência á violência sofrida dentro do cárcere que faz que o PCC nasça, se legitime, cresça e se fortaleça a cada abuso policial que seus membros sofrem? Assim, essa medida prova se assemelhar mais a uma tentativa de vingar a ameaça ao Sr. Governador do que de fato um mecanismo que traga maior paz á sociedade.
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