top of page
Writer's picturePET-RI PUC-SP

Dumping Ético na Saúde: A Violação dos Direitos Humanos no Rastreamento de Câncer Cervical na Índia

Updated: Mar 30, 2021

Imagem em Destaque | Fonte: The News Minute (2018)

Por Letícia Marinho


Introdução

Embora as pesquisas médicas tenham cruzado as fronteiras nacionais no período colonial, é com o fenômeno da globalização, na década de 90, que a saúde passou a ser considerada como um fator importante para o crescimento econômico-social, com reflexos na política externa, na soberania, segurança nacional e nos programas de meio ambiente. Todavia, ainda que a criação de ferramentas de combate à desigualdade e compartilhamento de práticas clínicas e tecnologia, por exemplo, tenham sido desenvolvidas no âmbito da saúde global, em especial sob a tutela de instituições internacionais como a OMS, os processos de interdependência provocaram uma série de efeitos deletérios em matéria de direitos humanos, como as práticas de dumping ético.

Nesse sentido, na esfera da bioética, o termo refere-se às pesquisas conduzidas pelos países desenvolvidos, em nações de baixa e média renda na periferia global, a fim de reduzir os custos financeiros a partir da exploração das vulnerabilidades legais e institucionais dos Estados, bem como de suas populações, violando, com isso, padrões éticos (Schroeder & al, 2018). A partir de tais reflexões, cabe ressaltar que, no século XXI, o caso do rastreamento de câncer cervical na Índia, entre 1998 e 2015, foi um dos mais emblemáticos em termos de descumprimento dos direitos humanos. Logo, o produto visa averiguar as irregularidades nos padrões éticos e legais, na realização do rastreamento de câncer cervical na Índia, financiados por filantropias como a Bill & Melinda Gates, bem como propor alternativas para que casos similares de dumping ético não se repitam no país.


Dumping Ético: o caso indiano

Em meados dos anos 1990, o Estado indiano, em detrimento das nações mais desenvolvidas, não conseguira implementar com sucesso o exame de detecção de câncer de colo no útero no sistema público de saúde – Papanicolau. Isso porque problemas com a infraestrutura, escasso treinamento de profissionais, como citotécnicos e patologistas, e baixo financiamento foram responsáveis pela tentativa do governo indiano em buscar alternativas mais baratas para o teste. Desse modo, entre 1998 e 2015, a Índia deu início a um programa de ensaios clínicos em três regiões urbanas e rurais – Mumbai, Osmanabad e Dindigul – por meio do método da inspeção visual, com a aplicação de ácido acético (VIA) para realçar lesões pré-cancerosas, com o intuito de reduzir a incidência e a taxa de mortalidade do câncer cervical (Srinivasan & al, 2018).

As consequências da substituição dos testes conhecidos e eficazes pelo VIA, contudo, foram desastrosas. Os ensaios foram realizados em aproximadamente 374.000 mulheres, das quais em torno de 141.000 não foram expostas a triagem. A maioria dessas mulheres eram pobres e cerca de 254 morreram devido ao cancro no colo do útero uma vez que não ele foi detectado e tratado a tempo. Tais testes não seriam permitidos nos EUA, mas foram aceitos por seus financiadores, o Instituto Nacional do Câncer e, principalmente, a Fundação Bill e Melinda Gates, já que foram realizados em outro país a custo da precarização da vida em prol de interesses próprios.


Filantrocapitalismo: o papel da Fundação Bill e Melinda Gates

Dentre os órgãos que compõem o quadro de financiadores dos testes de rastreamento na Índia, o ator mais relevante é a fundação filantrópica Bill e Melinda Gates, dos EUA, dado que foi responsável por fornecer recursos, promover e aprovar a realização da pesquisa nas três cidades indianas. Segundo o Office for Human Research Protections (OHRP), os testes apresentam práticas de dumping ético que exploram as deficiências regulatórias locais e as desigualdades econômico-sociais dos participantes (Suba, 2014).


Embora o episódio tenha uma série de deficiências éticas, a principal área de risco de exploração é com relação a utilização de um método que pode ser considerado placebo. Isso porque caso já exista um tratamento ou teste comprovadamente eficaz para a doença em estudo, como o Papanicolau, o uso de um padrão de atendimento mais baixo é configurado como placebo. Tal determinação foi oficializada, assim como diretrizes rígidas foram desenvolvidas, por diversos documentos nacionais e internacionais publicados apenas depois de 1998 (WMA 2008; ICMR 2000, 2006; CIOMS 2002), o que deu margem, portanto, para a atuação predatória da B&M Gates.


O papel do Estado: falhas éticas e legais

Logo, a primeira implicação e efeito negativo mais direto dos testes, como já pontuado, são as mortes das mulheres que foram utilizadas como cobaias para atender à agenda da saúde dos financiadores internacionais. Era sabido que, por morarem em regiões precárias e possuírem menos acesso à atendimento básico, elas já estavam em maior incidência de desenvolver câncer cervical, e negar a elas um bom rastreamento as colocava em um risco previsível de desenvolver a doença e morrer em decorrência disso.


Somando-se a isso, com relação ao Estado indiano, houve uma série de problemas mais técnicos relacionados, por exemplo, aos profissionais de saúde escolhidos, sendo que na realidade os testes eram feitos com trabalhadores comunitários com formação até a décima série, com pouco preparo para lidar com câncer cervical. E isso levou a um conjunto de violações como a falta de controle de triagem e acompanhamento do desenvolvimento do câncer nos pacientes. A tabela a seguir, com dados retirados da investigação do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA nas três cidades onde aconteceram os testes, revelam quais foram as principais consequências das irregularidades:

Fonte: Indian Journal of Medical Ethics, 2014

A Fundação Bill e Melinda Gates desenvolveu o teste com base na suposição incorreta de que as abordagens não citológicas, ao invés do exame do Papanicolau, são as soluções mais prováveis, em termos de prevenção, para o câncer cervical em países em desenvolvimento. Essa noção, no entanto, teve consequências implicitamente perigosas no processo de formulação das políticas na área da saúde no país na medida em que, em busca de um ensaio clínico mais barato, o Estado indiano cortou gastos com o treinamento de profissionais, por exemplo, para investir em placebo, dificultando, assim, a implementação do exame citológico cervical público.


Finalmente, a última implicação refere-se às fraquezas regulatórias dos instrumentos punitivos com relação às supostas instituições filantrópicas. Ainda que o Conselho Indiano de Pesquisa Médica reconheça que a negação do tratamento eficaz disponível para um grupo de controle é antiético, o princípio só é válido para testes que incluam drogas farmacêuticas. Todavia, uma vez que os ensaios não eram relacionados à fármacos, não foi necessária a permissão prévia do Controlador Geral de Drogas da Índia, ou seja, de uma supervisão legal estatal. Com isso, as funções regulatórias dos testes ficaram a cargo das próprias instituições envolvidas no processo de financiamento.


O OHRP, que compõe o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, buscou intervir e investigar as denúncias de violações de diretos humanos. Contudo, o órgão, embora tenha encontrado irregularidades, teve dificuldades de agir em relação às reclamações de pesquisas antiéticas visto que foram financiadas por uma fundação privada e não pelo governo norte americano. Desse modo, nota-se que o financiamento de uma quantidade substancial de pesquisas colaborativas em países de baixa renda, e sua falta de prestação de contas a qualquer autoridade, é um motivo de preocupação. Esse é um claro exemplo de como tais instituições conseguem mobilizar instrumentos legais a seu favor a fim de escapar da punição e da compensação dos participantes que sofreram lesões relacionadas ao estudo, sem mencionar, ainda, àquelas que perderam suas vidas.


Recomendações

  1. Garantir uma regulamentação legal para pesquisas e testes colaborativos: isso porque estudos envolvendo colaboração internacional só devem ser permitidos em países de baixa renda se houver mecanismos que garantem que os direitos dos participantes sejam respeitados, que as recomendações de saúde (placebo) sejam seguidas e que patrocinadores, pesquisadores, comitês de ética ou instituições, governamentais ou privadas, operem responsabilizando-se por suas atividades;

  2. Desenvolvimento de uma infraestrutura de saúde pública: isso porque boa parte dos testes de Papanicolau na Índia são fornecidos pelo setor privado, o que dificulta com que mulheres de comunidades mais pobres tenham acesso so rastreamento mais adequado. Então, o investimento na transferência desse procedimento da via privada para a pública seria o ideal, principalmente considerando que a Índia apresenta uma das maiores taxas de câncer cervical bem como de mortes;

  3. Fornecimento de compensação para lesões relacionadas à pesquisa: compensação por perdas, lesões, danos, sofrimento mental e físico, e despesas incorridas para as vítimas e suas famílias.


Referências

CIOMS. (2002). International ethical guidelines for biomedical research involving human subjects. Fonte: Council for International Organisations in Medical Sciences.

ICMR. (2000). Ethical guidelines for biomedical research on human participants. Fonte: Indian Council of Medical Research: http://web.archive.org/web/20010613180317/http://icmr.nic.in/ethical.pdf

ICMR. (2006). Ethical guidelines for biomedical research on human participants. Fonte: Indian Council of Medical Research.

Ravishanker, R. (30 de Janeiro de 2018). Cervical cancer is a big threat, but very few women in India get screened: Here’s why. Fonte: The News Minute: https://www.thenewsminute.com/article/cervical-cancer-big-threat-very-few-women-india-get-screened-heres-why-75615

Schroeder, D., & al, e. (2018). Ethics Dumping: Introduction. Em D. Schroeder, & e. al, Ethics Dumping Case Studies from North-South Research Collaborations (pp. 1-8). Springer Open. Fonte: https://library.oapen.org/bitstream/id/ceee0ec0-e484-4626-8907-8e0a34e07847/1002193.pdf

Srinivasan, S., & al, e. (2018). Cervical Cancer Screening in India. Em D. Schroeder, & e. al, Ethics Dumping Case Studies from North-South Research Collaborations (pp. 33-47). Springer Open. Fonte: https://library.oapen.org/bitstream/id/ceee0ec0-e484-4626-8907-8e0a34e07847/1002193.pdf

Suba, E. J. (2014). US-funded measurements of cervical cancer death rates in India: scientific and ethical concerns. Indian Journal of Medical Ethics. Fonte: https://www.rhobservatory.net/uploads/1/0/2/1/10215849/hpv-cervical_cancer.pdf

WMA. (2008). WMA Declaration of Helsinki: Ethical principles for medical research involving. Fonte: World Medical Association: http://ethics.iit.edu/ecodes/node/4618

2 views0 comments

Comments


bottom of page