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Do Marco Civil à Lei Geral de Proteção de Dados: uma genealogia da ação coletiva

Updated: Apr 2, 2021

Imagem em destaque: PET-RI PUC/SP

Por Murilo Da Silva

O debate acerca da governança global da internet vem sendo um dos mais importantes no que diz respeito aos produtos do mundo globalizado, sobretudo pelo alto potencial econômico identificado na rede e nas possibilidades da criação e uso de novas tecnologias de uma economia informacional, como queria Castells. Esse fato tem mobilizado a atuação dos Estados no plano internacional; seu reflexo está, por exemplo, nos esforços de alinhamento das prioridades de regulação digital nos frameworks dos países do chamado BRICS (Belli, 2020), ou ainda, nos debates na Assembleia Geral das Unidas sobre o direito à privacidade na era digital[1]. Igualmente, é um referencial de ação coletiva, no sentido de que conta com ampla mobilização de setores da sociedade civil[2].

Dessa maneira, o objetivo do texto, a partir da atenção à incorporação (e do conteúdo) dessas regulações normativas, é o de buscar olhar para processos que revelam a maneira como o Estado, o mercado e a sociedade civil interagem; além de questionar se a inflexão causada pelo impeachment de Dilma Rousseff e a posterior eleição de Bolsonaro levaram à uma reorganização dessas forças sociais, impactando diretamente nas discussões acerca da criação de novos marcos regulatórios nos níveis nacional e internacional. O método genealógico escolhido permite olhar para os acontecimentos buscando chamar atenção para possíveis descontinuidades, indo além da simples reconstrução histórica linear (Revel, 2002), focando na compreensão de possíveis clivagens das correlações de forças, que resultarão na formulação e incorporação desses marcos legislativos.

Desde a década de 1990, a política externa brasileira atuou no sentido de preconizar por uma participação em fóruns internacionais como a ICANN (Borges; Santoro, 2017), com o intuito de impactar a criação de normas que fossem representativas para suas necessidades domésticas; no passado recente, o país fez isso ancorado em uma retórica diplomática que, ao denunciar os escândalos internacionais de espionagem na década de 2010, como o escândalo de espionagem da Petrobrás, reivindicava um marco regulatório da arena digital (Abdenur; Da Silva Gama, 2015). Esse debate foi acompanhado de um intenso envolvimento da sociedade civil (Solagna, 2015), que desde o início dos anos 2000 passara a estar nos interstícios da esfera pública, catalisando a produção de legislações com certo grau de envolvimento popular. Isso ocorreu, principalmente, através de gestões do PT, em diversos níveis do poder, o que garantiu a mobilização do Estado para a concretização de políticas públicas significativas para atender às demandas da população brasileira. No entanto, essa forma de associativismo vem sendo mitigada, em paralelo as inflexões na conjuntura da política brasileira dos últimos anos.

O que são essas normas e onde está a sociedade civil?

No que se refere à legislação regulatória nacional, o Marco Civil da Internet, sancionado em 2014, consiste em um projeto de lei que busca endereçar direitos civis na Internet, bem como representa a legislação em torno da proteção dados pessoais, salvaguardando a privacidade dos usuários, um de seus pilares. É patente que ele é produto das diversas formas de associativismo entre a sociedade civil e o Estado, ocasionado pela ‘permeabilidade’ entre as díades fronteiriças dessa relação (Abers; Von Bullow, 2011). Destaca-se o papel importante do Fórum Internacional Software Livre para as discussões acerca do MCI (cf. Solagna, 2015 p. 67) e da sua multissetorialidade (Anastácio, 2016), com a atuação da sociedade civil como o Comitê Gestor da Internet, que teve que travar verdadeiras batalhas, sendo uma das mais conhecidas a contra as empresas de telecomunicação, ou ainda contra lobby da teles, como ficou conhecido. A aprovação do MCI se relaciona, também, aos esforços do governo Dilma, em uma estratégia multi-ministerial, que consistiu em uma diplomacia de dois níveis[3], sendo que no âmbito internacional foi o pleito pela regulação ao mobilizar uma agenda multilateral normativa; sinalizando um perfil de inserção que não existe mais.

Já a Lei Geral de Proteção de Dados, em termos gerais para a discussão proposta, pode-se dizer que ela representa a especificação de alguns pontos do MCI, conservando seus vetores de proteção ao usuário, mas emergindo de uma necessidade de equivalência internacional a outros países, como os Estados Unidos e a Europa. É possível dizer que esse esforço vem de um projeto de inserção internacional do Brasil via “modernização de sua legislação”, em paralelo ao pedido de acessão à OCDE e suas muitas exigências.  Essa Lei, portanto, relaciona-se à um processo diferente, uma vez que nasce também num contexto distinto de atuação externa brasileira. Argumenta-se aqui que o doméstico e o internacional não são caixas herméticas, mas se retroalimentam. O que desencadeou, à nível global, a regulação normativa da proteção de dados atual foi o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, da União Europeia (Bioni, 2018). A LGPD foi decisivamente inspirada no framework da lei europeia. Olhando para esse conjunto de fatores, vale dizer, a nova Lei altera alguns pontos significativos do MCI, tomemos como exemplo as sanções administrativas, o que já consegue, em alguma medida, expressar que o lugar da sociedade civil no novo governo é outro.

A partir de vetos presidenciais, a legislação sofreu algumas modificações. Sanções administrativas que seriam aplicadas pela Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD), aprovadas em Congresso, foram vetadas. O governo fez isso sob o argumento de que poderiam causar insegurança aos responsáveis por essas informações, conforme texto da SERPRO a seguir, onde manter as sanções poderia:

“(…) impossibilitar o uso e o tratamento de bancos de dados essenciais a diversas atividades privadas, a exemplo, segundo o presidente, das aproveitadas pelas instituições financeiras”[4].

É razoável associar essas modificações à presença de grupos específicos de interesse, que buscam ingerir em legislações, ainda que passe por cima de pautas da sociedade civil e, consequentemente, da própria sociedade brasileira. É uma inferência usual, tratando-se de mais um dos inúmeros processos inerentes à da prática política; e não somente brasileira.

A reorganização das forças sociais a partir da incidência do lobby

A experiência europeia, a título de exemplo, levou Viviane Reding, na época membro da Comissão Europeia, a classificar as operações de lobbying acerca da proteção de dados como “absolutely fierce” (Telegraph, 2012). É uma constatação pertinente ao pensarmos na rentabilidade financeira do uso da rede e no surgimento de uma “Economia Política do Big Data”, se podemos chamar assim, onde dados pessoais são tratados como mercadoria. Esta afirmação é plausível, à medida que, segundo publicado pela própria empresa, os lucros mais sólidos da gigante de tecnologia, a Microsoft, passaram a ser puxados pela nuvem[5], serviço que lida com gerenciamento e armazenamento de dados. A pandemia de covid-19 levou ao expressivo aumento das atividades remotas, o que intensifica a circulação de dados e, por consequência, a demanda por esse tipo de serviço.

Chegamos então na inevitável indagação acerca do quanto a Lei brasileira foi submetida ao constante lobbying, considerando os diferentes interesses dos ativistas, do Estado, instituições financeiras, empresas de telecomunicação, de mídias sociais etc. A presença central da atividade no Congresso Nacional é desregulamentada, o que a torna pouco transparente, sendo difícil enxerga-las às claras; contudo, é fato que muitos parlamentares brasileiros acabam migrando para a iniciativa privada, trabalhando com o lobby, onde familiarizados com o funciomento do Congresso, atuam no sentido de criar e identificar pontos de pressão para diversos setores da iniciativa privada,[6] desobstruindo eventuais entraves à atividade. Um dos principais veículos de atuação para a atuação do lobby é via a atuação de Frentes Parlamentares, que embora complexas demais para fazer tal generalização, é comumente um canal associado a prática. A Frente Parlamentar de Proteção de Dados Pessoais existe desde 2018 e é presidida por Bruna Furlan, do PSDB.

Não se faz o argumento aqui de que a atividade é antidemocrática ou que deveria ser demonizada, uma vez que “em princípio, exclui a troca desonesta de favores” (Graziano, 1997. p. 4), mas questiona-se a extensão em que essa prática acaba por favorecer interesses específicos, como os de instituições financeiras, por exemplo, as que foram favorecidas pelas sanções administrativas aqui comentadas. Elas não necessariamente coadunam com o próprio caráter de regulamentações como a LGPD, que tem como princípio a defesa da privacidade dos usuários, frente ao crescente uso dessas informações como mercadorias, com alto potencial de rentabilidade. Nesse sentido, o lobby, exercido pela emergência de variadas forças sociais, com diferentes interesses, acaba por resultar em diferentes correlações entre os atores-chave, complexificando a relação e favorecendo atores privados.

O recrudescimento do autoritarismo


Divulgação: Tee Fury | Big Brother is Watching

Imagem: Tee Fury | “Big Brother is Watching”

A proeminência do lobby vem acompanhada do fechamento de canais de interlocução com a sociedade civil pelo governo atual, empobrecendo, paulatinamente, o rol possibilidades de associativismo e interação com o Estado, desde a publicação de decreto presidencial, Decreto 9759/2019, que suspendia a atuação de órgãos colegiados (Abers, 2019). Embora essa decisão do presidente tenha sido liminarmente impedida por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), a retórica do governo somente contribui para avançar uma agenda que não faz diálogo direto com a mobilização da sociedade civil das últimas três décadas. Essa pré-disposição ao confronto acaba por minar maiores participações nas instituições governamentais, o que acaba por desgastar a relação, até mesmo a ruindo, não estimulando diálogos que possam ser do interesse público.

A postura combativa do governo expressa a nova dinâmica da correlação de forças entre os atores-chave no processo de construção de marcos regulatórios. Àquela existente durante a promulgação do Marco Civil não mais se sustenta frente a, não somente a saída do PT do governo, mas o da ascensão de quadros mais conservadores, até mesmo reacionários, que focam seus esforços no desenvolvimento de uma agenda neoliberal que prioriza, por exemplo, o capital financeiro. Essa agenda consubstanciada em reformas, como a da Previdência, promulgada em 2019, a volta ao paradigma do alinhamento com a aproximação ideológica dos Estados Unidos e um projeto de inserção internacional extremamente conservador nos costumes. Afastando-se, ainda mais, da sociedade civil.

Os vetos presidenciais já expressam a maneira como o governo tem atuado em relação à normas legislativas como a LGPD, no sentido de salvaguardar instituições financeiras, ainda que isso distancie de preceitos governamentais republicanos, ao afastar da tomada de decisão setores da sociedade civil importantes, através de medidas que acabam por usurpar competência do próprio Congresso, ao passo que as sanções administrativas, por exemplo, já haviam sido aprovadas pelo poder legislativo. Trata-se de um projeto de poder que flerta com certo autoritarismo, quando não o é explicitamente.

Em conclusão, essa breve análise quis contribuir para uma genealogia da ação coletiva no período entre o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados; ambas as legislações tratam de temas correlatos e no caso do tema da privacidade, uma é a versão mais pormenorizada da outra. No entanto, ao olharmos para as inflexões na conjuntura brasileira e não desprezando a atuação internacional do Estado, observamos a reconfiguração das dinâmicas dos atores-chave; a partir disso nota-se que há uma crescente ascensão de um autoritarismo que não mais dialoga, de maneira saudável, com a sociedade civil, a mudança no perfil do governo levou a uma série de implicações, sendo esse afastamento de uma relação mais integrada com a sociedade civil uma das mais notáveis inflexões. Em tempos de pandemia, a privacidade dos usuários e a proteção deles de interesses privados deveria ser uma prioridade dos governos, uma vez que em situações de crise são acompanhadas do recrudescimento de medidas autoritárias e, consequentemente, da vigilância. Todavia, as decisões do governo atual sugerem o contrário.


Referências

Abers, R; Von Büllow, M. (2011) Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre estado e sociedade? Sociologias, vol. 13 no. 28, Porto Alegre.

________. (2019) Os movimentos sociais e o ativismo no governo Bolsonaro. Nexo Jornal: debate. Nexo Ensaios.

Abdenur, A., & Da Silva Gama, C. (2015) Triggering the Norms Cascade: Brazil’s Initiatives for Curbing Electronic Espionage. Global Governance, 21(3), 455-474.

Anastácio, K. A. (2016) Transnacionalidade na Rede: introdução à governança da internet. In: Marco civil e governança da internet: diálogos entre o doméstico e o global. Polido, F; Anjos, L. C. Instituto de Referência em Internet e Sociedade, Belo Horizonte.

Belli L. (2020) Data protection frameworks emerging in the BRICS countries.International Association of Privacy Professionals. New Hempshire. Acesso em 28 de maio de 2020.

Bioni, B. (2015) Xeque-Mate: o tripé da proteção de dados pessoais no jogo de xadrez das iniciativas legislativas no Brasil. GPoPAI/USP, São Paulo.

Borges, B. M; Santoro, M. (2017) Governança da Internet. In: WESTMANN, Gustavo (Org.) Novos olhares sobre a Política Externa Brasileira. São Paulo: Editora Contexto.

BRASIL. LEI Nº 12.965, DE 23 DE ABRIL DE 2014. Presidência da República: Casa Civil. Acesso 28 de maio de 2020.

_______. LEI Nº 13.709, DE 14 DE AGOSTO DE 2018. Presidência da República: Secretaria Geral. Acesso 28 de maio de 2020.

_______. DECRETO Nº 9.759, DE 11 DE ABRIL DE 2019. Presidência da República: Secretaria Geral. Acesso 28 de maio de 2020.

Castells, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. v. 1.

Evangelista, Rafael. (2014) O Movimento Software Livre no Brasil: política, trabalho e hacking. Horizontes Antropológicos, ano 20, n. 41, p. 173-200, Porto Alegre.

Graziano, L. (1997). O Lobby e o Interesse Público. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 12 (35)

Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Os vetos presidenciais da LGPD enquanto representação do distanciamento governamental.9 de setembro de 2019.Acesso: 25 de junho de 2020.

Revel, J. (2005) Foucault. Conceitos Essenciais. São Carlos: Claraluz. 96p.

Solagna, F. (2015) A formulação da agenda e o ativismo em torno do Marco Civil da Internet. Dissertação. Pós-graduação em Sociologia da UFRGS, Porto Alegre.

The Telegraph. EU Privacy regulations subject to ‘unprecedented lobbying’. Warman, M. 2012, UK.

 

[1] United Nations General Assembly. The Right to Privacy in the Digital Age. 55th Plenary, 2018. Disponível em <https://undocs.org/A/73/589/Add.2> Acesso 29 de Maio de 2020.

[2] InternetLab contribui no STF sobre o Controle de Dados por Provedores de Internet no Exterior. InternetLab. Acesso 28 de Maio de 2020.

[3] “Diplomacia de dois níveis” se refere ao termo utilizado para definir estratégias que ocorrem no doméstico e no internacional, paralelamente. (cf. Borges; Santoro, 2017)

[4] Lei que cria ANPD é sancionada com vetos. SERPRO 10 de julho de 2019. Acesso em 25 de junho de 2020.

[5] WARREN, Tom. The Verge. Microsoft reports increased PC demand during coronavirus and ‘minimal impact’ on revenue. Acesso 29 de abril de 2020.

[6] O Estado de São Paulo. Mandatos dão lugar ao lobby no Congresso Nacional. 11 de novembro de 2019. Acesso 25 de Junho de 2020.

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