Por Murilo Da Silva
A localidade opõe-se à globalidade, mas também se confunde com ela. O mundo, todavia, é nosso estranho. Pela sua essência, ele pode esconder-se; não pode, entretanto, fazê-lo pela sua existência, que se dá nos lugares. No lugar, nosso próximo, superpõem-se, dialeticamente, o eixo das sucessões, que transmite os tempos externos das escalas superiores, e o eixo dos tempos internos, que é o eixo das coexistências, onde tudo se funde, enlaçando, definitivamente, as noções e as realidades de espaço e de tempo.SANTOS Milton. O Lugar e o Cotidiano. In: A Natureza do Espaço. p. 218
Em documento recentemente publicado pelo Programa Mundial de Alimentos (PMA) das Nações Unidas, que estuda a fenômeno da insegurança alimentar, foi avaliado que haitianos usam mais de um terço da renda diária para comprar um prato de comida. Entre as muitas variáveis que explicam essa situação em vários países do mundo, o relatório aponta que o fator conflito é chave para a situação de fome[i]. A intervenção no país – a MINUSTAH –, baseada no capítulo VII da Carta de ONU[ii], cujos objetivos eram restabelecer a ordem e atenuar a situação conflituosa, deixou um legado controverso, sobretudo à luz dos dados sobre a segurança alimentar do país centro-americano.
No contexto do desastre haitiano, que balizou a incitação de forças globais transnacionais, como as agências filantrocapitalistas (Bill & Melinda Gates, USAID…), a ocuparem o país, configurou as organizações não-governamentais como a ponta de lança[iii] da governança em saúde no Haiti. Dado que esse movimento permutou prerrogativas outrora estatais, transformando a paisagem política, ele escamoteou a visibilidade de articulações que tivessem o protagonismo e a representatividade da sociedade civil de facto. É feito aqui algumas considerações sobre o Fórum Patriótico, organizado no país como uma reação às implicações sociais da presença estrangeira e do contexto histórico de um país colonizado.
Nesse quadro, de associativismo e organização social de categorias políticas da vida haitiana, são trazidos alguns dados que buscam compreender os motivos dessa configuração, considerando-a um produto das várias formas de reconhecimento, entre si, dos povos sujeitos a esse grau de interferência. Nesse texto, eles são pensados como uma forma de resistir, em face a crise representacional política que o atual governo haitiano institucionaliza.
A paisagem local
Grande parte da literatura reitera a noção de que “a falência do Estado haitiano” levou a uma predominância das ONGs nas principais capacidades de execução de políticas de interesse público no país, o que inclui também o aumento da presença privada nos mecanismos de promoção da saúde, como mostrado na imagem 1:
Imagem 1: Top 10 donors for health projects (1985-2020) NGO Aid Map: Haiti – elaboração própria
A representação geométrica mostra a expressiva presença de atores privados no Haiti, em especial pelo declínio significativo da capacidade de investimentos públicos na área da saúde, tendo em 2014 atingindo 0.05%, em constante queda, segundo dados da Pan American Health Organization. O que a imagem revela é que o setor privado ficou responsável pela realização de dezenas milhares de projetos, que reorganizaram o cenário político na sociedade haitiana, dando uma nova faceta às estruturas de poder responsáveis pelas políticas públicas que visavam garantir o bem estar social. As intervenções humanitárias foram centrais na construção dessa nova paisagem local, ao passo que legitimou, frente as institucionalidades da comunidade interacional, esses atores privados como os fornecedores de serviços essenciais.
A ajuda internacional, em grande medida, se concentra no repasse para essas organizações e agências, que direcionam as implementações dos projetos, seguindo suas próprias prioridades e motivos, que por não necessariamente criarem espaços de diálogo com a sociedade, acabam não sendo representativos, tampouco democráticos. Entre os que atuam nesse sentido, destaca-se a United States Agency for International Development (USAID) que concentra 18,5% das doações para projetos na área de saúde; ou Bill & Melinda Gates que ocupa 9% dessa parcela, conforme os dados da NGO Aid Map, na imagem 1. Tal quadro, certamente, ocasiona em uma interpretação automática acerca da “morte” do Estado haitiano.
Em paralelo à questão grave da saúde, a insegurança alimentar é outro fenômeno que chama atenção no Haiti. A existência de um relevo irregular, a vulnerabilidade da localização territorial que expõe o país aos efeitos desastres naturais como terremotos e furacões, bem como uma fragilidade ao avanço das mudanças climáticas causam no país danos severos, como acontece com a degradação do solo e a dependência de um regime pluviométrico consistente, sobretudo por boa parte do seu PIB estar atrelado a agricultura. Além disso, existe uma população, concentrada na região central que vive de agricultura de subsistência, assim todos esses fatores são incisivos para a manutenção da vida nessa área, uma vez que boa parte dos recursos e da ajuda humanitária se concentra em outro lugar, na região de Porto Príncipe[iv].
Como é comum em países da América Central e Latina, a desigualdade regional é uma realidade, muito disso se deve ao caótico processo de acelerada urbanização durante o século XX. Esse processo deixa marcas que escancaram disparidades sociais relevantes; a região de Centre no Haiti, por exemplo, é uma das regiões que mais sofrem com a mortalidade infantil (9.0%), ultrapassando a média do país como um todo, que já é significativamente alta, na casa de 8,3%, conforme informações do Global Hunger Index.
O mesmo indicador, a partir de uma metodologia que incorpora outras dimensões como a mortalidade infantil, a adequação de suprimento de alimentos e a subnutrição são consideradas para avaliar os países na escala abaixo, ilustrada pela imagem 2. O que já é desalentador, se torna ainda pior. Atualmente, a tendência numérica do indicar é o crescimento, somado à pandemia de covid-19, o quadro tende a ficar calamitoso. A subnutrição é o principal desafio que os haitianos enfrentam, com 49,3% da população não conseguindo atingir o nível mínimo de calorias diárias. Essa situação compromete seriamente a infância, o que torna difícil a organização do país em torno de uma perspectiva acerca de qualquer projeto de futuro.
Imagem 2: Global Hunger Index | Haiti: posição 104º entre 107 países, 2020
É a partir da problematização desses dados que compreendemos o crescente protagonismo do Fórum Patriótico no Haiti. Sua atuação também nos leva a indagar sobre esses arranjos de associação no país caribenho, uma vez que a paisagem de organização política vem sendo modificada e marcada pela instabilidade. Voltando olhar para esse grupo como possível chave interpretativa, na próxima parte, objetiva-se extrair e tentar se aproximar de uma experiência empírica dessa dialética entre o local e o global no Haiti. Além de encontrar potencialidade nesses movimentos que desafiam as forças transnacionais tradicionais.
A política é feita no espaço: o Fórum Patriótico haitiano
A mutação da paisagem político-social no Haiti, decorrente da presença estrangeira se materializa no apoio do Fundo Monetário Internacional e dos próprios Estados Unidos ao governo atual, incorporado no presidente Jovenel Moïse, qual o Fórum Patriótico rejeita patentemente. A mobilização ocorreu na cidade Papaye; não à toa, uma vez que já era conhecida internacionalmente, entre outros destaques, pela mobilização do Mouvman Peyizan Papay (MPP)[v], movimento social de origem em 1973, localizado na região de Centre Plateau no Haiti, cujas reivindicações se aproximavam da soberania alimentar e em programas de saúde. Além disso, o histórico de desigualdade regional, somado aos problemas concentrados na região explicam mobilização. O departamento Centre Plateau apresenta o maior número de crianças que sofrem com problemas de crescimento ocasionados pela má nutrição, cerca de 30%[vi].
A reação a isso é a Declaração de Papaye, de agosto de 2019. O documento é sintomático da redescoberta da cidade histórica Papaye, por seu passado de mobilizações sociais, sobretudo de camadas mais pobres e ruralizadas. A retomada dessa localidade é também simbólica, no sentido de que ela já representou relevância internacional, à medida que que conseguiu reunir milhares de pessoas e estabelecer conexões transnacionais relevantes, como Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) brasileiro. A Brigada Internacionalista Brasil da Via Campesina foi batizada em homenagem à Dessalines, herói da independência haitiana de 1804. Uma das frentes de atuação da Brigada junto aos haitianos é o de oposição ao atual presidente, cuja linha política é classificada como neoliberal e ausente no cotidiano da população.
Entre os principais pontos abordados no documento do ano passado estão àqueles vinculados à grande preocupação com a saúde, muito em parte efeitos da presença humanitária das Nações Unidas no país, como a reintrodução da cólera, reconhecida somente em 2016. O Fórum que ocorreu em Papaye reuniu políticos e movimentos diversos como MPP, KROSE, MPNKP, entre outras organizações dedicadas às mulheres, direitos humanos, o movimento estudantil e o operário. De forma ainda mais incisiva, o documento mostra grande oposição às forças capitalistas internacionais e dá ênfase particular à “comida de péssima qualidade que é produzida no nível internacional”, igualmente denunciado o problema da seca, das inundações, do desemprego.
Segundo informações da Brigada Dessalines, esse ano houve mobilização social para o lançamento de uma campanha que reivindica uma resposta ao legado deixado pelas intervenções humanitárias no país, como a indenização de haitianos infectados pelo vírus da cólera, mas também por crimes cometidos como estupros. Fica claro que as implicações da ocupação ainda vivem, acompanhadas de um enorme sentimento de injustiça. Somado aos efeitos da pandemia da covid-19, recentes mobilizações pediram, novamente, a deposição do governo, que não consegue administrar a crise. O acesso da população à alimentos é ainda mais escassos, com a inflação chegando a mais de 31,1%, segundo o Banco Mundial. Além disso, a quantidade de médicos no país para cada mil habitantes está em 2 médicos para cada 10.000 pessoas, de acordo com a mesma instituição, enquanto a Organização Mundial da Saúde estima que pelo menos 25 médicos são necessários para essa quantidade de habitantes, para providenciar um suporte adequado de saúde básica.
Podemos recorrer a uma lente[vii], para enxergar esse panorama singular, formado com base na sobreposição de fatores diversos potencializados pela presença estrangeira no país. A ideia do autor é de que essa materialidade, assumida pela presença física de atores diversos estranhos aos país, é capaz de despertar na coletividade um sentimento de unicidade, que para Santos “contribui para o necessário entendimento (e, talvez, teorização) dessa relação entre espaço e movimentos sociais”. Baseado na experiência associativista haitiana, percebemos que “na experiência comunicacional intervêm processos de interlocução e de interação que criam, alimentam e restabelecem os laços sociais e a sociabilidade entre os indivíduos e grupos sociais que partilham os mesmos quadros de experiência e identificam as mesmas ressonâncias históricas de um passado comum” (p. 5) Assim, as experiências comuns da tragédia e do descaso, foi capaz de unir, ainda que numa sociedade combalida, formas de associação que buscassem por melhores condições de vida.
Dessa maneira, a configuração política que vem se desdobrando no Haiti, desde a sua formação colonial e dos processos que lograram ao país a característica internacional periférica, é marcada por uma sucessão de acontecimentos, como a presença materializada do ímpeto transnacional da globalização no seu cotidiano e os processos seculares decorrentes da colonização francesa, como a concentração fundiária[viii]. Os efeitos práticos disso podem ser encontrados nas tragédias que assolam o país, mas também em suas resistências, que não são poucas. É preciso, em certa medida, dar um passo atrás para poder enxergar o que está para além dos debates mainstream das relações internacionais, buscando entender outras dinâmicas, no mínimo igualmente relevantes.
O espaço ocupado funciona “ao mesmo tempo, [como] uma condição para a ação; uma estrutura de controle, um limite à ação; um convite à ação. Nada fazemos hoje que não seja a partir dos objetos que nos cercam.” (p. 219) Assim, é possível dizer que as recentes articulações haitianas, com suas origens enraizadas na história, passam a tomar cada vez mais corpo, incitando mobilizações contra o governo, as forças internacionais, buscando garantir maior autonomia, segurança alimentar, saúde e melhor qualidade de vida. Isso é ocasionado por uma força identitária que une e aglutina setores da sociedade, como os que se encontraram em Papaye, que tem o potencial de assumir ainda mais proeminência na vida política haitiana.
[i] Agência da ONU ressalta disparidades no preço dos alimentos entre países. ONU News. Acesso 20 de janeiro de 2021.
[ii] DINIZ, Eugênio. (2006) O Brasil e as operações de paz. In: OLIVEIRA, H. A; LESSA, A. C. Relações Internacionais do Brasil: Temas e Agendas v. 2 São Paulo: Saraiva.
[iii] SEGUY, Franck. (2009) Globalização neoliberal e lutas populares no Haiti: crítica à modernidade, sociedade civil e movimentos sociais no estado de crise social haitiano. Pernambuco:Dissertação de Mestrado – CCSA UFPE, pp. 218
[iv] Food Security Aid Map. NGO AID MAP. Acesso: 20 de janeiro de 2021
[v] Grassroots International. Funding Global Movements for Social Change: Peasant Movement of Papaye (MPP). Acesso: 20 de janeiro de 2021
[vi] A closer look at hunger and undernutrition: Haiti. Global Hunger Index. Acesso 20 de janeiro de 2021.
[vii] SANTOS, Milton. (2003) O Lugar e o Cotidiano. In: A Natureza do Espaço. São Paulo: Edusp.
[viii] DESROSIERS, Ismane. (2020) Haiti: da desigualdade social às desigualdades socioespaciais na metrópole Porto Príncipe. (Dissertação) São Paulo: FFLCH, Universidade de São Paulo
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