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Crianças Esquecidas: a Criminalização das Vítimas de Exploração Sexual Infantil nos EUA

Crianças Esquecidas: a Criminalização das Vítimas de Exploração Sexual Infantil nos EUA

 Hoje, dia 18 de maio, é marcado como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Essa temática é uma problemática muito grande no Brasil, um dos países em que mais existem crianças sujeitas às redes de prostituição. Nos últimos anos, o Brasil tem sido defensor dessa causa nas convenções internacionais. Nos EUA, a exploração sexual infantil também é bastante expressiva, contudo, será que essa temática também é  uma preocupação recorrente do Estado norte-americano?

Os Estados Unidos são conhecidos por sua bandeira de defesa dos direitos humanos, marcando presença na maior parte dos tratados e operações que se referem a essa temática. No entanto, quando se fala em Direitos das Crianças, o país mostra-se reticente à ratificação de acordos relevantes ou o faz com muitas reservas, deixando de assimilar princípios importantes desses documentos e favorecendo a ocorrência de impasses de condutas a serem tomadas quando se trata das crianças e adolescentes do país.

Os Estados Unidos ainda não ratificaram, por exemplo, a Convenção do Direito da Criança de 1989 -um dos principais mecanismos de proteção de tais direitos- e apenas a sua assinatura, em 1995, levou a uma oposição pública nos estados norte-americanos. Revela-se, pois, ainda hoje, o receio de que ela fira a sua soberania federativa do sistema legislativo, minando a função dos estados de regulação dos direitos da infância, ou ofendendo o “parental rights”, os direitos dos pais inteiramente sobre seus filhos, sem a influência do Estado ou quaisquer tratados que limitem esse controle.[1]

 Essa posição americana se expressa em uma contradição entre as leis estaduais e as leis federais que tentam regular os direitos da criança, culminando em condutas problemáticas nos estados, como a dupla criminalização de crianças e jovens que, segundo as convenções e protocolos internacionais do direito da criança, deveriam ser vistos como vítimas de violações aos seus direitos. Dissolve- se, assim, a fronteira entre criminoso e vítima. Um dos quadros que revelam esse paradoxo são as crianças envolvidas em redes de exploração sexual comercial visto que, todos os anos, acerca de 1.7 mil menores de idade – que são abusados sexualmente nas ruas para fins comerciais – são presos no Sistema de Justiça Juvenil dos Estados Unidos, sob a acusação de prostituição, julgados como criminosos e não considerados vítimas de abuso sexual. A essas crianças se oculta o direito de voz e as marginalizam, sem lhes dedicar planos de recuperação e reintegração, algo que parece pouco contribuir ao fim das redes de exploração sexual infantil, de acordo com as pesquisas feitas no Sistema de Justiça Juvenil.

Vale questionar, no entanto, será que prendê-las é a solução para o fim das redes de exploração infantil, ou pelo menos um paliativo? Ou pioram a situação? Não deveria haver algum projeto para reintegrá-las na sociedade, ao invés de puni-las? Afinal, elas são vítimas ou criminosas?


conversando com policiais antes de serem presas em Dallas, acusadas de prostituição nos EUA Fonte: Site da

Meninas conversando com policiais antes de serem presas em Dallas, acusadas de prostituição nos EUA Fonte: Site da “Center For American Progress”


Um Conflito de Legislações: Da Condição de Vítima à Criminalização

Os Estados Unidos tem um duplo sistema de leis, ou seja, existem leis federais -que valem para os 50 estados- e leis estaduais sobre as quais o âmbito federal tem poder limitado. Usualmente, quaisquer tentativas do governo federal de interferir em tópicos que dizem respeito à legislação estatal enfrentam uma forte oposição pública. É o caso da lei familiar, da lei de proteção criança, bem como da lei que trata da prostituição que são de competência dos estados e dificilmente são modificadas por ações federais.

 No caso da prostituição, por exemplo, a maior parte dos estados criminaliza não apenas os consumidores do serviço sexual e “os cafetões” por trás das redes de prostituição, mas também aqueles oferecem a atividade sexual, mesmo que seja considerado um delito leve.[2] De acordo com dados do Departamento de Justiça dos EUA, foram feitas em 2010, por exemplo, acerca de 63 mil prisões por comércio sexual. Contudo, não se define uma idade mínima para a detenção dos que cometerem esse delito, permitindo que menores de idade sejam frequentemente penalizados pelo Sistema de Justiça Juvenil. Estima-se de 1-2% das prisões por comércio sexual seriam de menores de 18 anos, algo que varia de 1 mil a 1.7 mil detidos no Sistema Juvenil, anualmente.[3]

Tendo em vista a oposição dos estados à regulação federal do direito da criança e da prostituição, as tentativas federais de interferir nessas temáticas em favor da percepção dessas crianças como vítimas não obtiveram muito sucesso e pouco contaram, de fato, com um grande esforço do governo em enfrentar os estados para implementá-las. Um exemplo claro disso é que apesar da existência de atos federais como o Trafficking Victims Protection Reauthorization Act de 2008 (TVPRA)- que tentou empreender programas de proteção das vítimas de tráfico (incluindo as cidadãs americanas)- e a lei federal de estupro de menores, as crianças e adolescentes envolvidos em redes de exploração sexual comercial continuam a ser presos por prostituição, nos Estados norte-americanos.[4]

Assim, leis estatais ao não definirem uma idade mínima para a detenção das pessoas envolvidas nas redes de exploração sexual comercial acabam conduzindo à prisão de menores por cometerem o suposto delito, ignorando as leis federais e internacionais que as consideram vítimas e, sobretudo a realidade de exploração que essas crianças e adolescentes enfrentam diariamente nas ruas, marginalizando-as, deflagrando a opressão de grupos de minoria social e impedindo que recebam um tratamento de reintegração após se desvincularem das redes de tráfico. Vale, pois questionar-se: Quem são essas crianças e adolescentes detidos?

Vozes Esquecidas

“Talvez você nunca tenha sido preso ou condenado (…) nunca tenha considerado tirar as roupas apenas para sobreviver (…). Eu vou te contar o que fizemos. Talvez nunca tenhamos passado da oitava série. Nós apanhamos e fomos presas pelo sistema. Fomos abusadas por nossos namorados.” (Dominique, 17 anos)[5]

Assim como muitas outras, Dominique é mais uma criança explorada sexualmente para fins comerciais que foi presa nos Estados Unidos sob a acusação de prostituição. Dominique não é a única. Tami, de 15, foi detida em Los Angeles por prostituição infantil. Sandra, de 12 anos também foi presa na Flórida sob a mesma alegação.[6] Sônia, com 14, já foi presa pelo menos quatro vezes em diferentes estados.[7]Jasmine, também de 14, foi estuprada pelo policial que a prendeu, em troca de sua liberdade.[8]

A análise do perfil das crianças envolvidas nas redes de exploração sexual comercial revela um padrão de situações de risco que é bastante preocupante pelo número de jovens sujeitos a serem recrutados que atinge. O Quadro I, representado abaixo é o infográfico da ONG GEMS (Girls Education Mentoring Services) em que se estima que de 100 mil a 300 mil crianças e adolescentes nos EUA estão sujeitos a serem traficados para fins comerciais. A imagem indica também que 85% das “crianças prostituídas” são meninas, geralmente, entre 13 a 17 anos, que fugiram de suas casas (“runaways”) por enfrentarem situações adversas como violência doméstica, alcoolismo e uso de drogas, pobreza e, sobretudo, relações abusivas (70% a 90% já sofreram abuso sexual). [9]

QUADRO I

Infográfico da ONG GEMS (Girls Education Mentoring Services)


Fonte: Banco de recursos do site da GEMS- NY

Fonte: Banco de recursos do site da GEMS- NY


Ademais, os dados apontam outro padrão, desta vez, relativo às detenções de fato desses menores: meninas jovens e negras estão mais sujeitas a serem detidas do que as outras crianças e adolescentes na mesma condição de “prostituídos”. O Departamento de Justiça Juvenil, por exemplo, divulgou que, das 1.1 mil prisões de menores por prostituição, em 2010, por volta de 650 eram negros, em contrapartida a 400 brancos nos quais se incluem também os hispânicos.[10] Revela-se, portanto, um padrão de conduta da polícia que trata de formas distintas as crianças envolvidas em redes de prostituição e, criminaliza, não apenas suas condições de menores prostituídas, mas também o fato de serem meninas e negras, trazendo à tona o debate do racismo na polícia, algo bastante protestado nos EUA, sobretudo, nos últimos meses. Será que a prostituição infantil nos EUA e a desmobilização do governo em implementar medidas eficazes de recuperação dessas crianças está relacionada com o fato de pertencerem a grupos de minoria social e oprimidos? A esse respeito Kristoff, autor do periódico NYTimes, lembra que “Quando uma menina branca de classe média desaparece, todos se mobilizam buscando a ‘missing beauty’. Contudo, quando uma menina negra ou latina desaparece de um bairro pobre, apenas os cafetões esboçam algum interesse”.[11]

O Abuso nas Ruas

Utilizando-se da vulnerabilidade dessas crianças e adolescentes, os cafetões os aliciam e prometem uma vida melhor, que se revela, na verdade, um ciclo de abusos e ameaças, caso decidam fugir. São obrigadas a venderem seu corpo de acordo com uma cota determinada por noite e o dinheiro acaba inteiro nas mãos dos seus aliciadores que lhes fornecem pouco, mas o suficiente para sobreviver em más condições. Anon, uma das meninas que foram exploradas sexualmente para fins comerciais explica como se dá a relação abusiva entre a criança prostituída e o cafetão:

“Muitas de nós fomos abusadas por nossos parentes, pela sociedade e por pessoas em que confiamos. Quando estamos mais vulneráveis, eles atacam. (…) Ele se torna nosso pai, nosso namorado até vermos o que ele realmente quer. Então ele nos intimida e nos lembra constantemente das conseqüências se fugirmos. (…) Os recursos são limitados e muitas não vêem uma saída.” (Anon, vítima de exploração sexual infantil)[12]

Mesmo que aparentemente sejam vítimas de exploração sexual e apesar de sofrerem violência por parte dos que estão por trás das redes de prostituição, os recursos para escapar dessas teias de abuso sexual são limitados, como disse Anon, e as chances dessas crianças serem presas é muito alta, sobretudo se elas forem negras e pobres. Assim, elas se vêem em um impasse entre continuarem nas ruas ou acabarem na prisão do Sistema Juvenil.

Diante das condições apresentadas, classificar tais crianças como vítimas de exploração sexual, tal como determinam as leis federais do estupro de menores e as leis internacionais parece mais coerente, sobretudo no caso das meninas negras em condições de pobreza que além de vítimas de abuso de sexual, de violência ainda são vítimas do racismo policial. Ao optar pela conduta de criminalizar essas crianças e detê-las no Sistema de Justiça Juvenil, os Estados Unidos recusam-se a considerá-las como vítimas, dificultando o seu próprio acesso às redes – visto que elas próprias não conseguem enxergar ajuda no Estado – impedindo que se dedique a esses jovens e crianças um plano de desvinculação das redes e reintegração social, perpetuando o ciclo de abuso e descaso que vivenciam os menores prostituídos.


Pôster “Child Prostitution”, de David Criado representando o trabalho infantil nos EUA e a contradição entre ser o país do personagem Mickey da Disney, um símbolo infantil e a existência de prostituição infantil Fonte: “The Social Communication

Pôster “Child Prostitution”, de David Criado representando o trabalho infantil nos EUA e a contradição entre ser o país do personagem Mickey da Disney, um símbolo infantil e a existência de prostituição infantil Fonte: “The Social Communication


Um Sistema de Justiça Juvenil Fracassado

“Quando fui presa, todos, desde os policiais ao juiz e meu próprio defensor público, me olhavam como se eu fosse um inseto ou algo assim, (…) era como se nunca tivessem conhecido alguém tão ruim quanto eu. Eu acho que muitas pessoas pensam que gostávamos daquilo e que há algo de errado conosco.” (Yana, 18 anos)[13]

Apesar de alguns defensores da lei de criminalização da prostituição afirmarem que prender as crianças é a melhor opção para protegê-las, algumas pesquisas indicam que a detenção não é eficaz em acabar com as redes de exploração sexual comercial infantil e acabam por fomentá-las. A prisão dessas vítimas as re-traumatiza e dificulta a sua saída das ruas.[14]

O ciclo de abuso dessas crianças, na realidade se perpetua, passando do abuso sexual que enfrentam nas ruas, ao abuso e negligência do Sistema Juvenil, como se pode verificar no depoimento de Yana, vítima de exploração sexual comercial. Ao serem detidas, as crianças, muitas vezes não têm lugar para passar a noite. Se não houver camas disponíveis (segundo a Congressista Caroline Maloney, há menos de 50 camas disponíveis para 100 mil vítimas de abuso sexual)[15], elas são deixadas na rua, sem cuidado ou tratamento algum. Se tiverem vagas, são conduzidas ao Sistema de Justiça Juvenil, em que as necessidades das vítimas de abuso sexual não são atendidas pelo Office of Children and Family Services (OCFS) que operam nas unidades de detenção e não há serviços de reabilitação e educação necessários.[16]O tratamento psicológico existente, por exemplo, é designado apenas para jovens em crises consideradas graves, como surtos psicóticos ou suicídios, deixando as vítimas de abuso sexual sem o acompanhamento psicológico adequado.

 As crianças e adolescentes não se recuperam ou reintegram na sociedade. Na primeira chance que têm, voltam às ruas e se sujeitam a um cafetão que lhes forneça maior segurança do que sentem que o sistema é capaz de prover. Em alguns casos, inclusive, meninas que estão nos abrigos por crimes não sexuais são recrutadas a prostituição pela primeira vez, enquanto detidas.

Em um relato a ONG ECPAT(End Child Prostitution, Child Pornography and Trafficking of Children for Sexual Purposes),Posadas, oficial do Sistema Juvenil, revela um caso de uma menina que estava no abrigo e repetia a história de que na rua, ela tinha como ganhar dinheiro para tomar um lanche na rede de restaurante Subway, mas no abrigo havia apenas meninas que a tratavam mal, se o seu cafetão a chamasse, ela entraria correndo em seu carro para fugirem.

Os problemas não param por ai. Uma vez, conscientes de que podem ser presas e temendo a sua dupla criminalização (visto que 75% das vítimas acabam envolvidas em outras atividades ilícitas como tráfico de drogas, em roubos e em pequenos crimes, muitas vezes a mando dos seus “clientes” ou do próprio cafetão, que acabam se tornando adendos à sua detenção) algumas crianças se culpabilizam pela situação em que estão e temem a própria polícia que seria sua melhor opção para desvincularem-se das redes abusivas. [17]Por vezes, os policiais, além de tratá-las como criminosas, ainda abusam sexualmente dessas crianças como forma de as chantagem em troca de sua liberdade, impedindo que recorram à polícia para seu resgate.

“Os policiais te xingam, certamente, (…) aparecem como johns[18] infiltrados e logo que você diz ‘sim’ eles se revelam como policiais(…) te tratam com uma atitude grosseira, como criminosa”.[19]

“O policial poderia ter a resgatado, (…). No entanto ele lhe mostrou as algemas e ameaçou prendê-la. E ela implorou e gritou para que não o fizesse. Então ele ofereceu sua liberdade em troca de sexo.”[20]

Outros Programas Federais que Pouco Fazem

Além do Sistema Juvenil, alguns programas de ação federal – com algum apoio ínfimo dos estados – têm tido pouco sucesso com suas operações de desmobilização dos jovens prostituídos. Novamente, a reintegração parece um projeto distante.

A “Innocence Lost National Iniciative”, campanha lançada em 2003 pelo FBI, por exemplo, fez pouco progresso até agora, apresentando baixos índices de abrangência e adequação. Apesar de ter desvinculado diversas crianças traficadas, recuperou 2.7 mil, apenas[21], o que indica que a reincidência nas teias de prostituição é bastante alta.

De acordo com a ONG ECPAT USA, o “Domestic Minor Sex Trafficking Deterrence and Victims Support Act” que visava o investimento em iniciativas centradas nas vítimas, com tratamento adequado foi entravado pelo Senado e a “House of Representatives”, refletindo a dificuldade em se aprovar algo que vá contra as legislações estatais, novamente impedindo a criação de projetos que enxergassem essas crianças prostituídas como vítimas que necessitam de cuidados.

Ainda outra iniciativa, as “Safe Habor Laws”, lançadas por alguns estados norte-americanos – que dão imunidade exclusivamente às crianças traficadas, impedindo que sejam indiciadas- também apresentam problemas. Como se observa no Mapa I, a abrangência dessas leis ainda é limitada a 22 estados ( representados em azul escuro e azul turquesa). Desses estados, em tese, 15 (sinalizados com o azul escuro), forneceriam uma proteção legal integral, ou seja, imunidade e serviços de reabilitação, enquanto 7 estados (os que estão em azul turquesa) forneceriam apenas um desses aspectos. Mesmo assim, de acordo com o Polaris Project,  as Safe Labor Laws só vem sendo aplicada adequadamente em três estados.[22]

MAPA I

“Status das Safe Harbor Law por estado”


Fonte: New Republic Magazine

Fonte: New Republic Magazine


Já o Quadro II, apresenta o progresso do Estado Americano em acabar com as redes de exploração sexual infantil. Pode-se observar, na terceira linha que indica os serviços especializados para crianças em redes de exploração sexual comercial, que pouca ação estatal se direciona aos programas de prevenção, aos abrigos e ao aconselhamento psicológico direcionados às vítimas de abuso sexual para fins comerciais (indicados em vermelho), bem como uma ação parcial (indicada em amarelo) relativa aos serviços médicos disponíveis a essas crianças.

 QUADRO II

“Progresso dos EUA em Relação a Proteção das Vítimas de Tráfico para Exploração Sexual Comercial Infantil”


Fonte: Global Monitoring EPCAT-USA

Fonte: Global Monitoring EPCAT-USA


Diante desse quadro do fracasso do governo americano e, mais especificamente dos estados em tratar das vítimas de abuso sexual comercial infantil, as organizações não governamentais e as entidades privadas se encarregam de alguns projetos de cuidado e reabilitação dessas crianças.

A ação da sociedade civil organizada e entidades privadas diante do fracasso dos Estados

Embora o quadro dos Estados Unidos, contenha alguma excepcionalidade no quesito do tratamento criminal à essas crianças, reflete uma tendência observada também nas convenções internacionais relativas aos direitos das crianças que se focam no controle e na penalização dos responsáveis pelas redes de tráfico e exploração sexual infantil comercial e seus consumidores, mas não no tratamento de recuperação e reintegração das vitimas.

A Convenção dos Direitos da Criança (CRC), o mais importante mecanismo de proteção dos Direitos da Criança, recebe diversas críticas por considerá-las objeto de direito e não como seu sujeito, ou seja, por visar proteger tais direitos das crianças, mas não seu bem-estar, ignorando as diferentes realidades sócio-econômicas em que as violações de direitos ocorreram. Outros mecanismos como a Convenção contra o Crime Organizado Transnacional (Protocolo de Palermo) e o Protocolo para Prevenir, Reprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças de 2000 também recebem críticas por terem por objetivo o controle migratório e da regulamentação das vítimas de tráfico humano nas fronteiras e não propriamente o cuidado com elas que acabam marginalizadas e deslocadas, sem conseguirem se inserir nos grupos sociais em que são colocadas, ao se desvincularem das redes de exploração.[23]

Seguindo essa lógica, de acordo Asquith e Turner[24],a maior parte dos recursos de UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas) direcionam-se ao policiamento e controle do tráfico e das redes de exploração sexual infantil, e não aos programas de reintegração e recuperação das crianças.

Quando se fala em tratamento das vítimas, os custos dos programas nacionais de reintegração são onerosos e os governos ficam desmobilizados em despender fundos para tais projetos. Estima-se que 60% dos serviços estatais globais para crianças sob risco ou traficadas são limitados, inadequados ou não especializados, sendo que apenas 2% dos países consultados possuem serviços adequados e abrigos para as vítimas.

De acordo com os relatórios de países ao ECPAT e a OIT (Organização Internacional do Trabalho), faltam profissionais específicos para o tratamento de crianças como psicólogos, médicos, assistentes sociais, como demonstra o Quadro III, por exemplo, em que aparecem países como Áustria, Alemanha e França com esse problema. Faltam guias, programas e pesquisas que orientem esses profissionais.

O quadro ainda deflagra a falta de recursos e programas especializados para essas vítimas, em que esses países, geralmente modelos de programas como esses, são recorrentes na apresentação de gaps no tratamento de vitimas de abuso sexual.

 QUADRO III

“Gaps de Serviços de Atendimento às Vítimas de Exploração Sexual Comercial no Mundo”


Fonte: ECPAT International

Fonte: ECPAT International


Diante da desmobilização dos Estados em estabelecer programas de recuperação dessas vítimas, entidades não governamentais, sobretudo regionais, e entidades privadas se encarregam de fazê-lo, revelando que os outros 40% dos serviços de recuperação das vítimas de tráfico e abuso sexual para fins comerciais é feito por instituições não governamentais. Contudo, a sua abrangência é geralmente limitada e insuficiente diante da quantidade de vítimas dessa violação.[25]

No caso americano, a ação de ONGS e entidades privadas têm incidido sobre esses problemas tanto fornecendo abrigo e programas de recuperação (Children of The Night, Angela’s House, GEMS e My life, My Choice Project), quanto em campanhas nacionais para “descriminalizar” a imagem dessas crianças e declará-las vítimas da exploração sexual para fins comerciais (Together4Girls).

As atividades desses organismos, apesar de mais efetivas, regionalmente, também são limitadas por fatores como a falta de recursos. Estima-se, por exemplo, que o custo de sustento de uma criança em um ano nos abrigos é cerca de $24 mil a $50 mil, investimento esse que as organizações não dispõem.

Desta forma, mesmo que mais ativas no tratamento das crianças abusadas sexualmente, esses organismos não conseguem dar conta da demanda dessas vítimas.

Uma pesquisa do “National Colloquium Provider Survey” entrevistou 51 entidades acerca de seu serviço. Se por um lado 97% delas oferecem serviços de saúde reprodutiva, por exemplo, 69% não tinham serviços médicos locais e 62% não tinham programas para lidar com o uso de drogas. [26]

Assim, a reintegração das vítimas, apesar de mais freqüente quando passam por essas entidades, ainda é difícil, frente às limitações desses organismos locais. Novamente, as crianças ficam à deriva de si mesmas, sem muitas opções disponíveis para se desvincularem das teias de prostituição.

Ciclo Perpétuo: O Esquecimento das Crianças e a Violência Policial

Entre leis antinômicas que ofuscam as fronteiras entre a criminalidade e a condição de vítima de abuso sexual nos Estados Unidos, as crianças envolvidas em redes de exploração infantil para fins comerciais acabam esquecidas pelo Estado americano, algo que em alguma medida é conveniente ao governo, uma vez que os custos de assumir que essas crianças são vítimas e o empreendimento de projetos para recuperá-las e reintegrá-las são onerosos. Isso se reflete inclusive na falta de dados e pesquisas sobre esse tema, tornando as estimativas embasadas em informações dispersas coletadas por instituições não governamentais e abrigos que têm contato com os casos, sem rigor científico[27]. Deixa-se a questão na mão dessas organizações que também têm dificuldade de lidar com o número de casos.

Sem uma solução viável às suas contradições legais e aos altos custos dos programas de recuperação, os estados continuam detendo essas vítimas, se não as prendem por prostituição, as enquadram por problemas com drogas, ou crimes de furto. Os EUA revelam uma série de abusos policiais, negligência e racismo contra essas crianças que são ocultadas das questões a serem tratadas pelo país. A arbitrariedade da conduta policial nos EUA, com relação a jovens negros, inclusive, ganhou notoriedade e provocou revoltas, em 2014, com a morte de dois meninos negros, Michael Brown, de 18 anos, em Ferguson e Tamir Rice, de 12 em Ohio, que foram confundidos com criminosos pelos policiais que causaram sua morte, quando na realidade, tornaram-se vítimas da opressão racial e da violência policial.

Ao prender as vítimas de abuso sexual para fins comerciais, portanto, perpetua-se um ciclo de abuso dessas crianças e adolescentes que, inseguras e diante da negligência do Sistema Juvenil, acabam voltando às redes de exploração sexual comercial infantil em que encontram alguma liberdade e segurança, mesmo que essa venha acompanhada de vários tipos de abuso e violência.

Diante do número de crianças sujeitas ao tráfico e da recorrência comum das situações de riscos, bem como da conduta policial arbitrária e violenta, a posição americana é contraditória e essa questão se faz cada vez mais necessária para provocar discussões e mobilizar a população e os estados com relação a exploração sexual comercial infantil e o direitos das crianças nos EUA. O ciclo se perpetua e permanecem as dúvidas: Será que não é preciso ouvir essas vítimas? Quando elas serão enxergadas como tal? Quando vão receber o tratamento adequado? Quando as vítimas serão lembradas pelo Estado Americano? Quando o silêncio será quebrado?

“Escutem nossas histórias, pois agora estamos quebrando o silêncio”.

(Dominique, 17 anos, vítima de abuso sexual comercial)

[1]Amnesty International. “FAQ USA”. Disponível em <http://www.amnestyusa.org/our-work/issues/children-s-rights/convention-on-the-rights-of-the-child-0> Acessado em 06.04.15

[2]ECPAT-USA. “In The Eyes of  States”.Brooklin, 2011

[3]SNYDER, Howard N. “Arrests in the United States, 1999-2010”. US Department of Justice

[4] ECPAT INTERNATIONAL. “Global Monitoring: Status of Action Against Commercial Sexual Exploitation of Children USA”. Bangkok, 2012

[5] GEMS. “Breaking The Silence: Empowering Survivors”. Disponível em <http://www.gems-girls.org/about/what-we-do/survivor-voices> Acessado em 23.03.2015

[6] SAAR,Malika S. “There is no such thing as child prostitute”. Washington Post 17.02.2014 Disponível em <http://www.washingtonpost.com/opinions/there-is-no-such-thing-as-a-child-prostitute/2014/02/14/631ebd26-8ec7-11e3-b227-12a45d109e03_story.html> Acessado em 23.03.2015

[7]FRIEDMAN. Sara. “Who is there to help us! How the System Fails Sexually Exploited Girls in the USA”. ECPAT-USA. Brooklin, New York, 2005.

[8]KRISTOF, “Nicholas D. Girls on Our Streets”. NYTimes, 06.05.2009. Disponível em <http://www.nytimes.com/2009/05/07/opinion/07kristof.html?_r=2&> Acessado em 06.04.2015

[9] FLOWERS, R.B.“Runaway Kids and Teenage Prostitution:America’s Lost, Abandoned and Sexually Exploited Children”. Praeger Publishers. Westport, Connecticut, 2001.

[10]SNYDER, Howard N. “Arrests in the United States, 1999-2010.” US Department of Justice

[11]KRISTOF, “Nicholas D. Girls on Our Streets”. NYTimes, 06.05.2009. Disponível em <http://www.nytimes.com/2009/05/07/opinion/07kristof.html?_r=2&> Acessado em 06.04.2015

[12]GEMS. “Breaking The Silence: Empowering Survivors”. Disponível em <http://www.gems-girls.org/about/what-we-do/survivor-voices> Acessado em 23.03.2015

[13]FRIEDMAN. Sara. “Who is there to help us! How the System Fails Sexually Exploited Girls in the USA”. ECPAT-USA. Brooklin, New York, 2005.

[14] NEW YORK JUVENILE JUSTICE COALITION. “The Safe Harbor for Exploited Children Act: Facts and FAQ”. New York.

[15]FLOWERS, R.B.“Runaway Kids and Teenage Prostitution:America’s Lost, Abandoned and Sexually Exploited Children”. Praeger Publishers. Westport, Connecticut, 2001.

[16] NEW YORK JUVENILE JUSTICE COALITION. “The Safe Harbor for Exploited Children Act: Facts and FAQ”. New York.

[17]ECPAT INTERNATIONAL. “Global Monitoring: Status of Action Against Commercial Sexual Exploitation of Children USA”. Bangkok, 2012

[18]Johns são os “consumidores” de prostituição (infantil ou não).

[19]FRIEDMAN. Sara. “Who is there to help us! How the System Fails Sexually Exploited Girls in the USA”. ECPAT-USA. Brooklin, New York, 2005.

[20]KRISTOF, Nicholas D.“Girls on Our Streets. NYTimes, 06.05.2009. Disponível em <http://www.nytimes.com/2009/05/07/opinion/07kristof.html?_r=2&> Acessado em 06.04.2015

[21]FBI.OperationCross Country. In: Innocence Lost. 29.07.2013

[22]ROMERO, Juan. “Why Do We TreatChild-Sex-TraffickingVictims as Criminals”. New Republic, 04.12.2014. Disponível em <http://www.newrepublic.com/article/120418/underage-sex-trafficking-victims-are-treated-criminals-us>

[23]AUSSERER, Caroline. “Controle em nome da Proteção: Análise Crítica dos Discursos Sobre Tráfico Internacional de Pessoas”. Dissertação de Mestrado da PUC-RJ. Rio de Janeiro,2007.

[24]ASQUITH, S; TURNER, E. Recovery and Reintegration of Children from the Effects of Sexual Exploitation and Related Trafficking. Oak Foundation Child Abuse Programme. Genebra, 2008

[25]ECPAT INTERNATIONAL. “Examining Negleted Elements in Combatting Sexual Exploitation of Children. Journal Series no. 7. Julho, 2013

[26]“National Colloquium Provider Survey 2012 Final Report: Evaluation of The Current Shelter and Services Response to Domestic MinorSex-Trafficking”. Maio,2013

[27]Crimes AgainstChildren Research Center. “How Many Juveniles are Involved in Prostitution in the U.S.?”University of New Hampshire

Se quiser saber mais sobre a exploração sexual de crianças nos EUA:

  1. Documentário da ONG ECPAT: “What I’ve Been Through is Not Who I Am”, 2011.

  2.   Vídeo da ONG ECPAT-USA: “It Happens Here”, 2014.

  3. Video da UNICEF: “Child Sexual Exploitation Happens in the US too”, 2008.

  4. Documentário da ONG GEMS: “Very Young Girls”, 2007

  5. Livro da ONG GEMS: “Breaking The Silence: Empowering Survivors” 

  6.  SHER, Julian “Somebody’s Daughter: The Hidden Story of America’s Prostituted Children and The Battle to Save Them”.Chicago Review Press. Chicago, 2011.

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