Clara Lhullier Lotito
Visão geral da vigésima sexta sessão do Conselho de Direitos Humanos. 26 de junho de 2014. UN Photo / Jean-Marc Ferré
Os debates internacionais acerca da participação da sociedade civil na tomada de decisões dos estados em relação a temas de direitos humanos têm sofrido amplas transformações após a implementação do mecanismo Revisão Periódica Universal (RPU) aos 193 países membros das Nações Unidas (ONU) no ano de 2011. Este processo é constituído por diferentes ciclos, em que cada governo dos países membros deverá realizar recomendações relacionadas a temas de direitos humanos que julgar pertinentes a outros estados, os quais poderão aceitar, ou apenas considerar o que foi recomendado. Posteriormente, no ciclo seguinte, é avaliado o cumprimento do que foi aceito, seguido por uma nova rodada de recomendações – as quais podem ser alteradas ou permanecer as mesmas em relação ao ciclo anterior.
Com base na iniciativa de discutir a relevância deste tema e de aprofundar a pesquisa do Programa de Educação Tutorial (PET) da PUC-SP em relação ao processo de participação das organizações não governamentais no âmbito da Revisão Periódica Universal, foram elaborados dois projetos em parceria com a instituição Conectas Direitos Humanos durante períodos específicos dos anos de 2015 e 2016. Em primeiro, foi realizada no dia 26 de maio a roda de conversa intitulada Sociedade civil do Sul Global e suas estratégias de engajamento em política externa, em que foram recebidos seis ativistas de direitos humanos provenientes de países distintos.
Em segundo, a partir do programa de voluntariado na Conectas, foi desenvolvida uma pesquisa de mapeamento e análise das recomendações brasileiras realizadas aos outros Estados no primeiro e no segundo ciclos da RPU. Tal estudo foi dividido em etapas de trabalho a serem cumpridas conforme o cronograma estipulado, as quais foram realizadas entre os meses de outubro de 2015 e março de 2016 pelas voluntárias Clara Lhullier e Karina Altavila. Ambos os projetos serão abordados abaixo separadamente para que seja possível compreender seu escopo e seus resultados.
1. Voluntariado na organização Conectas Direitos Humanos O Brasil e a Revisão Periódica Universal: o que recomendamos e como?
Como o mecanismo de Revisão Periódica Universal surge como uma maneira de rever a situação de direitos humanos dos 193 países membros a partir das recomendações realizadas diretamente a cada um dos Estados, ele também pôde ser encarado como uma maneira de recuperar a legitimidade perdida pela antiga Comissão de Direitos Humanos da ONU, estabelecida em 1946 e substituída em 2006 pelo Conselho de Direitos Humanos. Deste modo, todos os países envolvidos possuem o direito de emitir recomendações aos estados que desejam, ainda que elas possam ou não ser aceitas por aqueles em revisão.
Tendo em vista as questões postas acima referentes às decisões dos Estados acerca dos direitos humanos, a presente pesquisa possuiu como objetivo compreender e registrar as características das recomendações brasileiras aos outros países, o que permitiu a identificação de padrões e a comparação em relação ao que era recomendado. Além disso, por meio do mapeamento da temática e do conteúdo de cada recomendação, também foi possível analisar em que medida tais temas se relacionam com as demandas da sociedade civil em cada estado.
Seu início se deu a partir do desenvolvimento de uma tabela matriz com base nas informações dispostas nos sites United Nations Human Rights: Office of the High Comissioner, que contém a base de dados oficiais das Nações Unidas, e UPR-Info, cujas informações foram reunidas pela ONG que recebe o mesmo nome. Tais informações foram selecionadas de acordo com oito critérios decididos previamente em conjunto com a Conectas, os quais foram: nome do país, ciclo (primeiro ou segundo), quantidade de recomendações, conteúdo das mesmas, natureza (genérica ou específica), status (aceita ou considerada; na linguagem de ONU, accepted ou noted), tema e região. Em seguida, foram elaborados gráficos e análises posteriores com base nos dados registrados.
Dentre as conclusões obtidas a partir da pesquisa e dos gráficos produzidos (ao final do artigo), observou-se que os temas mais recorrentes das recomendações realizadas pelo Brasil foram respectivamente, instrumentos internacionais (adesão e ratificação), direitos da criança, direitos das mulheres e tortura e outros tratamentos/comportamentos cruéis, desumanos ou degradantes (CDD) no Ciclo 1. No Ciclo 2, os temas mais recorrentes se mantém os mesmos, porém a ordem entre o segundo e o terceiro mais utilizados é inversa à do primeiro ciclo, de modo que o tema referente aos direitos das mulheres aparece de forma mais recorrente do que os direitos da criança.
Este posicionamento revela a opção brasileira por priorizar os temas citados acima em ambos os ciclos. No entanto, parte significativa de tais recomendações – com exceção da mais recorrente – foi realizada de maneira genérica e imprecisa sem que fossem explicitados os meios para atingi-las, o que pode dificultar a implementação de tais medidas pelos estados em revisão.
Outra conclusão relevante para a pesquisa em questão é a opção tomada pelo estado brasileiro em manter certas recomendações, presentes nos Ciclos 1 e 2 de um mesmo país. Como hipótese, é possível considerar esta repetição como produto da permanência das violações, seja pela rejeição do país em relação ao que foi recomendado, seja pela sua aceitação desacompanhada de cumprimento. Exemplo disso é o caso de Israel, que recebe em ambos os ciclos recomendações que se referem ao encerramento de suas atividades nos assentamentos – ambas consideradas pelo país em revisão, como se observa nas tabelas abaixo.
Ciclo 1:
Ciclo 2:
2. Roda de conversa Sociedade civil do Sul Global e suas estratégias de engajamento em política externa e sua relação com o PET:
Roda de conversa na PUC-SP realizada pelo PET e pela Conectas Direitos Humanos.
Com o objetivo de discutir a participação da sociedade civil e de organizações não governamentais no que diz respeito ao seu envolvimento com temas de direitos humanos, fizeram parte da roda de conversa que se realizou no dia 19 de maio os seguintes ativistas: Joshua Loots, Olga Guzmán Vergara, Vinu Sampath Kumar, Haris Azhar, Iniayn Ilango e Ivy Fidelia Odia [1]. Cada um deles relatou suas experiências nas organizações das quais participam, que se especializam em diversas frentes conforme as demandas da sociedade em que atuam. Em seguida, foram realizadas perguntas por parte dos interlocutores, as quais criaram uma dinâmica de diálogo entre estes e os palestrantes.
Apesar da diversidade de objetivos que abrange as organizações em questão, tornou-se possível observar a recorrência de determinados temas em comum e de mecanismos e estratégias de pressão sobre o Estado. Exemplo disso é a Revisão Periódica Universal, ferramenta que atua diretamente no processo de reivindicação de determinados direitos por parte da sociedade civil a partir do seu diálogo com o Estado que irá realizar recomendações.
Conforme observado no relato de cada palestrante, esta relação pode ser dada de diversas maneiras: Haris Azhar destacou a importância do recorte temático da RPU para a identificação das ONGs com quem cooperar; em seguida, Ivy Fidelia Odia menciona este mecanismo como meio de ação e de engajamento da sociedade civil. Por último, em entrevista concedida [2] sobre as principais conquistas da sociedade civil mexicana durante o período entre o primeiro e o segundo ciclos da RPU no México, Olga Guzmán Vergara afirma que, em 2013,
“a mudança no panorama legislativo nos deu esperança e também foi parte das recomendações da RPU. Assim, isto nos deu esperança de estarmos enfrentando uma mudança importante no que concerne ao sistema criminal nacionalmente, como também países internacionais e órgãos internacionais estão nos dizendo que precisávamos realizar esta mudança porque nós necessitávamos de um sistema criminal com mais respeito no país”.
Ainda que tais relatos possam ser indicativos da relevância do mecanismo da RPU para a participação da sociedade civil, é necessário considerar que esta ferramenta não garante necessariamente a aceitação das recomendações dadas por parte do Estado em revisão e tampouco seu cumprimento mesmo que tenham sido aceitas. Esta relação evidencia a necessidade crescente de atuação da sociedade não apenas na etapa anterior à revisão, como também no momento de monitorar a implementação das medidas propostas.
3. Conclusões:
Após a análise realizada em ambos os projetos citados acima, tornou-se possível elaborar breves conclusões acerca da temática de direitos humanos diante do Estado e do funcionamento do mecanismo de Revisão Periódica Universal. Nesse sentido, ainda que a implementação da RPU tenha aberto novos espaços para a atuação de organizações não governamentais articuladas à sociedade civil neste tema – como observado a partir dos depoimentos dos palestrantes no evento citado – ela ainda apresenta lacunas em sua efetividade, que poderão ser supridas conforme o crescimento da participação de tais organizações neste debate.
Além disso, tendo em vista a atualidade de tais questões, observa-se que a análise produzida com base no desenvolvimento desta discussão pela Conectas e pelo PET – além de apresentar hipóteses – atua sobretudo como ponto de partida para a discussão deste tema. Desse modo, tais observações poderão ser exploradas novamente em contextos posteriores, em que se possa expandir tal debate e chegar à importantes conclusões acerca dos direitos humanos no Brasil e em âmbito global.
Gráfico 1: Primeiro Ciclo
Gráfico 2: Segundo Ciclo
[1] Nativos dos países (respectivamente): África do Sul, México, Índia, Indonésia, Sri Lanka e Nigéria.
[2] Entrevista com Olga Guzmán Vergara realizada pela autora no dia 19/05/2016.
Imagens:
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