Por Larissa Pinz
Os anos de 1990 na América Latina foram marcados pela emergência de redes transnacionais de movimentos sociais em um contexto crítico no campo, devido a forte onda liberal que atingiu o subcontinente com privatizações, programas de desregulação e liberalização. Assim, com uma discussão socioterritorial, proponho nesse estudo um olhar para os movimentos sociais e as redes transnacionais de cooperação das quais fazem parte e a sua articulação na luta contra o neoliberalismo, dando um enfoque na construção da Via Campesina e na atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Nas duas décadas anteriores, os movimentos sociais da região ainda atuavam fundamentalmente no interior de suas fronteiras nacionais, com uma agenda voltada na luta pela redemocratização – visto o contexto latino americano no período de transições de governos autoritários – e pelos direitos humanos. Como dito brevemente acima, há uma mudança na década seguinte, os anos 90 apresentaram o surgimento de uma perspectiva mais ampla e um eixo de luta renovado, abrindo novas fronteiras de alianças e articulações, vindo por estabelecer entre os movimentos sociais novas formas de coalização.
Após uma marginalidade e até mesmo ausência das dimensões espaciais dentro dos estudos dos movimentos sociais, é na primeira década de 2000 que as teorias explicativas dos movimentos sociais emergem com força renovada, utilizando-se conceitos desde a psicologia social, como da sociologia, ciência política e vários da geografia clássica – território, fronteira, espaço e lugar.
A Via Campesina e o MST apresentaram uma nova percepção dos militantes do movimento em direção às dimensões supranacionais da problemática da luta pela terra, ao mesmo tempo em que redimensionam a importância de pensar a territorialização dos movimentos sociais em suas estratégias de luta. A relevância da escolha dos movimentos sociais para esta discussão se evidencia uma vez que o MST desempenhou e continua desempenhando um papel central na articulação da resistência camponesa latino-americana em um contexto neoliberal, e a Via Campesina pois foi o maior referente no plano global das lutas camponesas.
As redes transnacionais de movimentos sociais
As redes transnacionais não apenas transcendem os limites do Estado-nação construindo um marco de resistência espacial supranacional na região como também se acentua a tensão entre Estado e movimento social. O Estado deixa de ser visto como o único locus relevante para diálogo para formulação de políticas públicas, dando lugar para novas formas organizativas, interesses e interações transfronteiriças e emancipatórias, num processo de identificação de novos interlocutores. Ou seja, essas redes podem ser vistas como a expressão de um novo sujeito social, deslocando sua escala de intervenção política a fim de lutar pela justiça social global. (BRINGEL; 2008)
É válido ressaltar que não devemos olhar as redes de movimento apenas e exclusivamente como organizações formais, mas dar atenção da mesma maneira à rede de relações informais que conectam núcleos de indivíduos e grupos a uma área mais ampla de participações. Muitas vezes, as redes transnacionais não acabam se convertendo em movimentos sociais, apenas surgem para reagir à uma ameaça e oportunidades de curto prazo, transformando-se em coalizações de papel, ou seja, como manobra estratégica dentro da política transnacional.
Caracterizadas pela articulação de atores e movimentos sociais e culturais, pelo pluralismo organizacional e ideológico, a atuação nos campos cultural e político e principalmente, por um marcado traço transnacional, as redes transnacionais de movimentos sociais têm sua importância na construção subjetiva de resoluções de necessidades e lutas como um direito e não como um produto de uma atividade mercantil. (BRINGEL; 2008)
Com o marco de reestruturação espacial na América Latina, pretende-se pensar o lugar das redes transnacionais como um referencial de resistência espacial supranacional. Como dito pelo autor Bringel (2008) em seu texto “Redes transnacionais de movimentos sociais na América Latina e o desafio de uma nova construção socioterritorial” é importante pensar em:
Uma abordagem para onde confluam a análise dos agentes sociais participantes, o espaço social do qual emergem, as práticas sociais e ações coletivas que realizam e as subjetividades coletivas e dinâmicas que desencadeiam, com um olhar que vislumbre a convergência transnacional de suas práticas, assim como as horizontalidades, sociabilidades e territorialidades que vão sendo construídas, pensando o lugar (espaço geográfico) das disputas por hegemonias e a mudança social. (BRINGEL, 2008, p. 278)
Esses agentes uma vez inseridos nesse contexto, têm o desafio de incorporar o plano transnacional de atuação, supondo consequentemente, os processos de ressignificação permanente em um espaço de disputa hegemônica. Logo, é perceptível a existência de uma contradição no processo de construção de redes e articulações transnacionais, pretende-se estabelecer a potencialidade e a capacidade de construção de outra hegemonia.
Ainda que exista um plano de atuação transnacional e que as ações das redes ou coalizações tenham um alcance internacional, os movimentos sociais não deixam, em momento algum, de ter fortes vínculos com o âmbito doméstico ou de exercer influência nos processos de luta por direitos. A atuação desses movimentos se faz dentro e fora do território do Estado-nação, assim, conseguem tanto pressionar instituições e organizações nacionais e multinacionais, quanto as estratégias políticas que em um marco supranacional, estimulam sua territorialização e a construção de novas subjetividades coletivas.
A Via Campesina, o MST e as articulações em meio a um contexto latino americano neoliberal
A ampliação dos eixos de luta na América Latina nos anos 90 estabelece alguns movimentos sociais e várias coalizações e redes transnacionais que não devem ser deixados de lado nessa discussão do fluxo dos movimentos latinoamericanos, ainda mais sendo aqueles que intercedem pela transformação social e pela conquista de direitos como a Via Campesina e o Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). (TORREZ, 2010)
Criada em 1992, a Via Campesina coordenou organizações de pequenos e médios agricultores de trabalhadores agrícolas, mulheres e comunidades indígenas da Ásia, África, América e Europa. (TORREZ, 2010) Tanto a Via Campesina quanto o MST defendem os interesses de comunidades rurais e cooperaram transnacionalmente, por meio, por exemplo, do Fórum Social Mundial, graças ao desenvolvimento e difusão de uma estrutura de significados intersubjetivos compartilhados pelo universo de atores.
Em um contexto marcado pelo avanço do neoliberalismo e a implementação de suas medidas, pelas contradições inerentes ao sistema capitalista, pela sua crise sistêmica e a incapacidade desse modelo de suprir as demandas da população assim como a garantia de seus direitos, os países da América Latina em geral, passam por um momento de grandes lutas sociais e reinvindicações de direitos.
No processo de consolidação e expansão da Via Campesina, o MST constituiu na América Latina, um eixo central na difusão de ações coletivas devido à sua sólida base social construída ao longo dos anos, o MST é considerado o maior movimento social campesino da América Latina, agregando recursos, sobretudo sociais, humanos e políticos, fundamentais no aprofundamento dos laços transnacionais entre movimentos.
No caso específico do MST, as consequências do neoliberalismo foram muito visíveis, com as privatizações, o incentivo ao agronegócio, política implementadas que vão contra a reivindicação de soberania alimentar do movimento como à produção de transgênicos em terras brasileiras por empresas transnacionais. As ações coletivas contra essas empresas, como dito por Bringel (2008) servem de exemplo como: “símbolos da globalização capitalista” e supõem “a construção de uma nova percepção dos militantes do movimento em direção às dimensões supranacionais da problemática da luta pela terra.” (p.279)
A segunda metade da década de noventa marcou para o MST uma fase de projeção exterior, ainda que o espaço central de atuação do movimento seja o Estado-nação, no que concerne as ocupações, as tensões, cooperação e conflito. As suas demandas continuam tendo maior foco no território nacional político brasileiro e sua atenção voltada por exemplo para a reforma agrária, que há anos vem sendo deixada de lado como pauta pelos governos brasileiros. Ainda assim, é cada vez mais perceptível, ao passar dos anos, a multidimensionalidade dos processos sociogeográficos, e as articulações entre sociedade e espaço, que redefinem interesses, demandas e projeções que vão além do ambiente doméstico.
Desse modo, após 35 anos de existência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a atuação do movimento vai além do território nacional, dos 23 estados brasileiros onde atua fortemente. Razão pela qual o movimento se faz de ótimo exemplo para entender melhor as redes transnacionais de movimentos sociais, se torna fundamental vislumbrar as redes por ele tecidas, as sociabilidades e horizontalidades, mas acima de tudo, as estratégias que incentivaram sua territorialização e a construção de novas subjetividades coletivas em um marco supranacional.
Considerações Finais
Por fim, essas redes de movimentos sociais são complexas, transcendem organizações delimitadas e conectam sujeitos individuais que possuem a mesma luta e reivindicação de direitos. Nesse processo de diálogo se forma a identidade do movimento – podendo ser harmonização de interesses sociais, éticos, culturais ou político-ideológicos –, se define o adversário, se marcam os objetivos ou se constrói o próprio projeto político do movimento social.
As redes transnacionais de movimentos sociais já desempenharam papel chave nos processos de luta na América Latina. Porém, em um contexto atual se faz necessário repensar a efetividade desse meio de articulação, visto que os movimentos sociais vêm perdendo espaço de discussão nos governos neoliberais. Sendo assim, mais do que nunca, para combater as implementações de políticas neoliberais e o avanço da extrema direita na região, é necessário estar na sociedade em rede permitindo a construção de um diálogo no espaço de formulação de políticas públicas.
Referências Bibliográficas
BRINGEL, Breno; FALERO, A. Redes transnacionais de movimentos sociais na América Latina e o desafio de uma nova construção socio territorial. Cadernos CRH, v. 21, p. 269-288, 2008 TORREZ, María Elena Martínez. ROSSET, Peter M. La Vía Campesina: the birth and evolution of a transnational social movement. In: The Journal of Peasant Studies, 37:1, p. 149-175. BEZERRA, V. Amaral. A cooperação transnacional de movimentos sociais: o caso do MST. In: Fronteira: Revista De Iniciação Científica Em Relações Internacionais, 3(6), p. 109-133.
댓글