Por Helena Winter, graduanda em Relações Internacionais pela PUC-SP e bolsista no Programa de Educação Tutorial (PET-RI)
Durante a COP 26, realizada entre 1 e 12 de novembro de 2021, a sociedade civil alertou que as mudanças climáticas alimentam o trabalho escravo – e vice-versa. O processo descrito e assinado por 58 organizações da sociedade civil e universidades atuantes ao redor do globo expõe uma realidade da dimensão humana do aquecimento global que é pouco discutida: o deslocamento de pessoas vulnerabilizadas pela mudança no clima para locais marginalizados, onde são mais expostas à escravidão moderna ou condições de trabalho extremamente precárias. Este processo é realidade no mundo todo, apesar de afetar mais significativamente as populações marginalizadas e em países do Sul Global. Este artigo procura focar em como casos em países como Bangladesh e Brasil explicitam essas relações.
O documento de apelo da sociedade civil alerta:
“Trabalho escravo é frequentemente encontrado em setores destruidores do clima. Em muitas partes do mundo, modelos de desenvolvimento baseados no extrativismo e no agronegócio voltados para a exportação estão piorando a vulnerabilidade à escravidão moderna ao monopolizar a terra e recursos naturais, poluindo o solo, o ar e a água, destruindo ecossistemas e causando migração.” (SAKAMOTO,n.p., 2021)
Assim, fica claro que existe um ciclo vicioso onde os escravizados atuam em setores que desmatam florestas e ecossistemas, alimentando as mudanças climáticas, criando mais secas, inundações e desertificação e causando mais vulnerabilidade social, levando ao deslocamento para novos lugares marginalizados e criando mais refugiados ambientais. A degradação ambiental acaba exacerbando as vulnerabilidades e desigualdades existentes nas populações locais, deixando-as mais suscetíveis às práticas trabalhistas exploradoras. Enquanto as mudanças ambientais são fatores na decisão de migrar, a vulnerabilidade é um fator para a aceitação de ofertas de trabalho enganosas.
Na região do mangue arbóreo de Sundarbans, em Bangladesh, e em algumas partes da Índia, as taxas de tráfico humano são altas por conta dos efeitos negativos das mudanças climáticas nas possibilidades de renda para as famílias, além do efeito direto nas casas e na área como um todo. Quando comunidades inteiras enfrentam dificuldades, as economias locais podem ser comprometidas muito além dos agricultores e pescadores de subsistência. Segundo o relatório "Policy Brief Climate, Crime and Exploitation: the gendered links between climate-related risk, trafficking in persons and smuggling of migrants" do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, Bangladesh é o 7º país mais vulnerável às mudanças climáticas, com um futuro de intensificação dos impactos climáticos à vista nas próximas décadas. Só em 2018, Bangladesh documentou 355 resgates de vítimas do tráfico humano internamente, 1.400 interceptações de fronteira e 119 repatriações somente da Índia – números que os especialistas consideram subnotificados.
O mesmo relatório traz evidências de 25 entrevistas com sobreviventes do tráfico humano, representantes do governo, da sociedade civil e privada, assim como do setor da justiça criminal em 2022, em quatro distritos da Divisão Khulna de Bangladesh: Bagerhat, Jashore, Khulna e Satkhira. Um dos sobreviventes relata em sua entrevista como as perdas relacionadas ao clima podem aumentar à exposição a condições de trabalho precárias e de abuso: “during floods, I used to live in complete poverty with insufficient food… when someone promised me a high income [through work abroad] … I thought she was just thinking about my family” (UNODC, 2022, p.32)
O relato do entrevistado pela UNODC expressa uma de milhares das vivências de pessoas cujas vidas foram impactadas por desastres naturais causados pelas mudanças climáticas. No Brasil, a realidade do trabalho escravo em áreas e setores destruidores do clima também é frequente. A ONG Repórter Brasil destaca a vivência de Jonas, trabalhador liberto do trabalho escravo, que compartilha sua história:
"Perdeu a conta das vezes que passou frio, ensopado pelas fortes chuvas amazônicas, debaixo de uma tenda de lona amarela que servia como casa durante os dias de semana. Trabalhava com motosserra, transformando a floresta em cercas para o gado do patrão, a partir de árvores tão grossas que dois homens adultos não conseguiam abraçá-las. Passou fome, experimentou dengue e durante dois anos não recebeu um centavo pelo serviço, só comida." (SAKAMOTO, n.p., 2010).
O município de São Félix do Xingu, no Pará, é um dos campeões nacionais em área desmatada e, ao mesmo tempo, campeão nacional em número de operações de resgate de trabalho escravo e um dos campeões em rebanho de gado, ainda de acordo com dados da Repórter Brasil. No Brasil, as atividades econômicas relacionadas à extração, produção de carvão e carne – que mais provocam impactos no clima – são os setores que mais contribuem para a escravidão moderna no Brasil.
Ainda assim, esse cenário foi deteriorado sob o governo de Jair Bolsonaro, em um panorama de desmonte da governança socioambiental e das políticas de redução do desmatamento no Brasil, exemplificados por:
“cortes de orçamento do Ministério do Meio Ambiente, a lei da mordaça e perseguição a servidores do Ibama, pressão pela aprovação da tese do Marco Temporal no STF, os ataques ao Inpe, o apagão nas multas ambientais e a criminalização de ativistas, servidores, indígenas, quilombolas e lideranças comunitárias” (BELMONT, 2021, n.p.)
Os dois casos explicitam, portanto, o nexo entre a crise climática e a escravidão moderna: a realidade de Bangladesh coloca ênfase na dimensão migratória das populações marginalizadas, explicitando o ciclo vicoso entre a migração por causas ambientais e o tráfico humano. Já o caso brasileiro coloca em foco como o tráfico e a escravidão moderna residem especificamente nos setores que mais influenciam na emissão de gases de efeito estufa e, portanto, deixa claro que enquanto não houver fiscalização efetiva e investigação sobre as atividades ilegais agravadas pelo desmonte do sistema ambiental brasileiro no último governo, as perspectivas continuarão sendo de um bioma brasileiro destruído por mãos cativas.
Referências:
BELMONT, Mariana. Três anos de desmonte ambiental de Jair Bolsonaro. ECOA Uol. 28 de outubro de 2021. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/mariana-belmont/2021/10/28/tres-anos-de-desmonte-ambiental-de-jair-bolsonaro.htm. Acesso em: 8 de dezembro de 2023.
UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. "Policy Brief Climate, Crime and Exploitation: the gendered links between climate-related risk, trafficking in persons and smuggling of migrants". Outubro de 2022. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/GLO-ACTII/UNODC_Climate-TIP-SOM_Policy_Paper.pdf . Acesso em: 25 de outubro de 2023.
SAKAMOTO, Leonardo. Trabalho escravo alimenta mudança do clima, alerta sociedade civil na COP 26. Repórter Brasil. 9 de novembro de 2021. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2021/11/trabalho-escravo-alimenta-mudanca-do-clima-alerta-sociedade-civil-na-cop26/ . Acesso em: 16 de outubro de 2023.
VERITÉ. FAIR LABOR WORLDWIDE. Exploring Intersections of Trafficking in Persons: Vulnerability and Environmental Degradation in Forestry and Adjacent Sectors. Agosto de 2020. Disponível em: http://verite.org/wp-content/uploads/2020/08/Capstone-Findings-Report-–-Verité-Forestry.pdf. Acesso em: 25 de outubro de 2023.
UNIVERSITY OF NOTTINGHAM (Rights Lab). Modern slavery, environmental degradation and climate change: present and future pathways for addressing the nexus. Roundtable Report, [s. l.], 17 jun. 2021. Disponível em: https://www.nottingham.ac.uk/research/beacons-of-excellence/rights-lab/resources/reports-and-briefings/2021/august/modern-slavery-environmental-degredation-and-climate-change.pdf. Acesso em: 23 out. 2023.
MALINOWSKI, Radoslaw L.; SCHULZE, Mario. Natural Disaster, Human Trafficking and displacement in Kenya. HAART Kenya , Nairobi, ed. 3, 2017. Disponível em: https://haartkenya.org/wp-content/uploads/2018/11/Malinowski-and-Schulze-2017.pdf. Acesso em: 18 out. 2023.
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