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A Violência do Estado Brasileiro sob a Perspectiva de Raça e Gênero

Updated: Apr 2, 2021

Figura 1 – Mães de Maio e familiares

Fonte: Periferia em Movimento

Por Priscila Paiva Gomes


A violência do Estado Brasileiro, é algo comum e regular no dia a dia dos brasileiros. “Morrer é natural, ser assassinado é um fenômeno comum de Estados democráticos de direito fictícios.” (Movimento Mães de Maio, 2012). Um dos episódios mais cruéis que demonstram que o estado de São Paulo é genocida foram os “Crimes de Maio”. Tais crimes ocorreram entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, e em média 500 pessoas foram mortas ou tidas como desaparecidas. Estas vítimas, como sempre em nosso país, faziam parte da população mais humilde – negros, periféricos e pobres. Nesses terríveis dias, policiais e paramilitares de extermínio assassinaram inocentes. Até hoje, a justiça não foi feita, pois nenhum policial foi investigado, julgado e punido de acordo com a nossa constituição.

Por causa desse descaso com essas mortes, as mães dessas vítimas criaram o movimento “Mães de Maio” inspiradas na associação “As Mães da Praça de Maio” da Argentina. As Mães de Maio da Argentina são mais antigas, uma vez que elas lutam contra os episódios que massacraram os seus filhos na ditadura militar de seu país, nas décadas de 1970 e 1980. Unidas por meio de suas lágrimas, tanto as mães paulistas, quantos as argentinas ainda lutam por respostas e justiças sobre a mortes de seus filhos. Juntas lutam para que a morte de seus filhos seja justiçada e lembrada. A Figura 1 é uma foto de um dos protestos das Mãe de Maio que “Incansáveis, caminham por dia, meses e anos” (GONÇALVES,2013, p.1) para assegurar, como escrito no cartaz, “nosso mortos têm voz”, ou seja, elas serão as vozes de seus filhos.

Além dos movimentos das Mães de Maio de São Paulo e da Argentina, existem inúmeros outros casos de Estados que cometeram e comentem violências contra mães e seus corpos. Por exemplo, o caso das ex-guerrilheiras das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), muitas foram obrigadas a entregar os seus filhos aos seus superiores. Em resposta, essas mães se uniram em prol de encontrar os seus filhos. Outro episódio é o desaparecimento de 43 estudantes de uma comunidade de Ayotzinapa no México. Ainda hoje, essas mães procuram seus filhos. Logo, podemos observar, que existe um ponto transnacional na resistência e luta de mulheres pelo mundo.

Os Crimes de Maio foram uns dos episódios de violência do Estado Brasileiro contra a sua própria população. Diariamente os cidadãos mais vulneráveis, isto é, negros, pobres e favelados, sofrem com as desigualdades e com a violência policial, que sempre os perseguem. Desigualdades estas, que englobam todos os aspectos em uma vida como a falta de saneamento básico, educação de qualidade, e principalmente o direito à vida.

“A violência contra as mulheres não desapareceu com o fim das caças às bruxas e a abolição da escravidão. Pelo contrário, foi normalizada” (FEDERICI, 2019, p.92). A escritora italiana Silvia Federici aborda em suas obras a atemporalidade da violência contra a mulher. Tendo como exemplo, a Idade Média em que o povo caçava e assassinava mulheres, dizendo que eram “malucas” e com poderes sobrenaturais, logo eram “bruxas” e mereciam a morte. Já mais recentemente com a escravidão, em que tal sistema “definia o povo negro como propriedade”. Especialmente as mulheres escravas, que além de sofrerem o preconceito de raça sofreram e sofrem o de gênero. Como salientou Davis (1981) “Como mulheres, as escravas eram inerentemente vulneráveis a todas as formas de coerção sexual”. Seus corpos femininos, são a manifestação mais clara que o corpo é a propriedade do outro. E como propriedade, pode sofrer violências e estupros. Seu corpo é uma expressão ostensiva do domínio econômico de seu dono. Além disso, as escravas “tinham outros aspectos de sua existência ofuscadas pelo o trabalho compulsório” (DAVIS, 1981, p.17). Ou seja, as mulheres não podiam ser mães, esposas, donas de casa, mulheres, mas apenas trabalhadoras, pois não tinham tempo para sequer pensar em ser alguém.

As mulheres até o século passado, tinham como sua função principal na sociedade a reprodução. O tal “sexo frágil” não era totalmente indispensável, necessitavam dele para conceber mais seres a serem explorados. A filósofa Angela Davis (1981), mostra em sua obra Mulheres, Raça e Classe, a relação da maternidade e escravidão:

“Quando a abolição do tráfico internacional de mão de obra escrava começou a ameaçar a expansão da jovem e crescente indústria do algodão, a classe proprietária de escravos foi forçada a contar com a reprodução natural como método mais seguro para repor e ampliar a população de escravas e escravos domésticos. Por isso a capacidade reprodutiva das escravas passou a ser valorizada” (DAVIS,1981, p.19)

A maternidade negra e escrava, era um instrumento “biopolítico”. Tal termo Foucaultiano, mostra que a biologia do ser, ou seja, a condição de nascer mulher e negra, implica na sua condição política na sociedade. Isto é, antes do seu nascer, por causa de sua raça e gênero, as mulheres negras, estão conduzidas a exploração, racismo e escravidão. Ademais, a capacidade reprodutiva das escravas era muito valorizada, porque, aos filhos das mulheres escravizadas, eram automaticamente escravizados também. Desta forma, já que as mães já sabem o destino de seus filhos, elas deveriam evitar gerar novas vidas, pois como na prática com as mães de maio, essas vidas são matáveis em nosso país.

Algo que evidencia essa biopolítica do poder é o levantamento “Mapa de Desigualdades (2019)” um estudo que mostra o “Desigualtômetro” entre os estados, cidades e bairros no Brasil. Precisamos falar em desigualdade não apenas por causa do desiquilíbrio da distribuição de renda, mas também por causa das suas diversas formas de se expressar – na desigualdade de gênero, desigualdade racial, e em desigualdades regionais. O gráfico mostra que os 50% mais pobres no Brasil possuem apenas 13,9% do rendimento bruto total do país, enquanto 1% dos mais ricos, possuem mais que o dobro que os mais pobres. O estudo mostra também diversos índices em que a maior parte da população preta e parda possuem os maiores indicadores em viver periferias, em tempo de espera para consulta médica, gravidez na adolescência, idade média ao morrer

Figura 2 – Contexto da desigualdade no Brasil

Fonte: Mapa de Desigualdades 2019

Já nos dias de hoje, a violência contra a mulher negra é manifestada de outras formas. Não apenas em situações extremas como o das “Mães de Maio”, em que mães perdem brutalmente seus filhos. Mas também em situações estruturais de nossa sociedade que são consideradas naturais/comuns. É tido como normal que mulheres negras recebam menores salários, sejam menos escolarizadas, engravidam na adolescência, sofrem preconceitos de raça e gênero e são mortas.

Por causa da nossa herança escravocrata no país e por ser um dos países mais desiguais no mundo, a relação de subordinação das mulheres negras ao outro ainda é evidenciado em muitos aspectos da nossa sociedade, como nas profissões das domésticas. O Brasil é o país com a maior população de doméstica no mundo, isso ocorre porque o racismo é algo velado no país, ou seja, algo natural, de sua estrutura. Tal relação patrão e doméstica mostra ainda que dominamos e controlamos o corpo da mulher negra. Apenas em 2013 foi aprovado o PEC das Domésticas (PEC 66/2012), que determina que a trabalhadora tenha direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas da saúde, higiene e segurança, e principalmente a jornada justa de trabalho de 8 horas por dia, isto é, só recentemente que tais mulheres foram comtempladas com direitos fundamentais do trabalhador. A professora estadunidense, Patricia Hill Collins explicita em seu livro essa relação:

Essas mulheres negras ainda limpam a casa de outra pessoa, essas mulheres negras ainda cuidam de idosos e dos doentes de outras famílias, antes de retornar às tarefas frequentemente ingratas de suas próprias solidões, de suas próprias famílias” (COLLINS, 2009, p. 291)

Antigamente ao nascer os filhos das escravas, eles eram separados de suas mães, pois esses filhos eram transferidos para outras casas. Hoje em dia, mesmo sem a escravidão, as mulheres negras são separadas dos seus filhos, pois precisam trabalhar muitas horas, para conseguir sustentar a sua família. Como evidenciado no trecho da obra de Collins, as mulheres negras criam os filhos dos brancos, limpam suas casas, cuidam quando estão velhos… e ao retornar a casa à noite, precisa ainda fazer todas as atividades domésticas. Logo, ainda nos dias de hoje a mulher negra não consegue ser alguém além de uma trabalhadora explorada. A filósofa brasileira Djamila Ribeiro em seu livro, Quem tem medo do feminismo negro mostra a vida dessas mulheres em seu trecho:

“Há aqui a confusão de atrelar valores democráticos a valores capitalistas. De confundir emancipações e ascensão econômica. Ela trabalha fora, mas quando chega em casa ainda é responsável por cuidar dos filhos e pelos afazeres domésticos. A mentalidade de fato não mudou – os mecanismos de opressão somente se atualizaram.” (RIBEIRO, 2019, p.129)

Diferentemente das mulheres brancas, as mulheres negras lutam para sem alguém, para ser humana, para ter felicidades, vivem para governar a vida e gestar a morte. As mulheres negras precisam viver em política de sobrevivência em uma sociedade que matam os seus filhos (Mães de Maio). Djamila Ribeiro evidencia essa contraposição entre as mulheres negras e brancas “Enquanto mulheres brancas lutavam, pelo direito ao voto ao trabalho, mulheres negras lutavam para ser consideradas pessoas” (RIBEIRO, 2018, p.52)

Isto posto, por causa das diferenças nas opressões vividas no corpo feminino negro e no branco, foi necessário nesse artigo escolher minunciosamente as autoras que falam do feminismo e resistência. É de extrema importância dissertar sobre as contribuições de Silvia Federici, mulher branca e italiana. Na medida que ela aborda também preconceitos vividos por mulheres, como as “bruxas” da Europa. Pois é insuficiente e citar apensas Federici é fundamental trazer as contribuições de autoras negras, para a melhor compreensão dos problemas vividos na “pele” por mulheres negras. Por isso, foi escolhido grandes nomes do feminino negro como as estadunidenses Angela Davis e Patricia Hill Collins. Não obstante, foi se escolhido uma feminista negra e brasileira, Djamila Ribeiro, para representar os autores dos países em desenvolvimento.

Djamila em sua obra, analisa o papel das mulheres na sociedade, ela aborda “O mito da mulher moderna”. Atualmente as mulheres conseguiram diversos direitos – como o de trabalhar, votar e também conquistaram leis que as protegem como a “Lei Maria da Penha”, contra a violência doméstica ou a “Lei do Feminicídio”, que torna hediondo o assassinato de mulheres por causa de discriminação de gênero. O mito da mulher moderna é de que as mulheres hoje em dia não sofrem mais dificuldades. Apesar dessas conquistas significantes, o preconceito e machismo ainda é algo presente cotidianamente na vida das mulheres, ainda mais no corpo negro.

Cresce cada vez mais o número de denúncias contra as mulheres em nosso país, cresce cada vez mais a escalda ao número de mulheres assassinadas diariamente, principalmente as indígenas e afrodescendentes. A “maternidade e esterilização compulsória, estupro, agressões físicas, encarceramento em hospitais psiquiátricos e o tratamento brutal das mulheres em prisões” (FEDERICI, 2019, p.12) são algumas das violências que as mulheres modernas são submetidas nos dias de hoje. Estamos vivendo um novo caça às bruxas, o “caça às mulheres modernas”.

Uma violência que cresce cada vez mais em nosso país, é violência nas prisões “É desnecessário falar diretamente de raça (hoje) porque falar sobre crime é falar sobre raça” (ALEXANDER, 2010 p.167). A escritora Michelle Alexander nesta frase de seu livro A Nova Segregação. Racismo e Encarceramento em Massa, resume a questão do sistema carcerário. Helena Fonseca, uma das mães de maio relata qual é o destino de seu filho “Meu filho já nasceu condenado por nascer em uma favela, por ser pobre e negro, dos 18 anos até os 31 eram 10 dias na rua e o resto na cadeia “. Para compreender a fala de Helena sobre o seu filho, podemos mais uma vez recorrer a biopolítica de Foucault. Mais uma vez, a condição de ser negro determina suas desigualdades. Já ao nascer, neste caso, eles possuem maiores chances de serem encarcerados. Logo, sua raça e classe impõe até suas chances maiores de ir nas prisões. A maioria estão presos por causa de terem sido pegos com quantidades mínimas de drogas, e enquanto o processo não sai, são submetidos a condições terríveis. “Queremos um sistema carcerário com condições humanas, não um sistema falido desumano no qual sofremos inúmeras humilhações e espancamentos. Não estamos pedindo nada mais do que está dentro da lei” (FELTRAN, 2018, p.267)

Já na relação mulheres e prisões, o escritor e médico Drauzio Varella mostra a resistência das prisioneiras:

“Quase por instinto de sobrevivência, a mulher é mais avessa à submissão aos superiores; desde criança aprende a subverter a ordem, de forma a moldá-la aos ensejos pessoais se dá a impressão de rebeldia, se possível. Não fosse essa aversão ao domínio e a destreza em manipular a vaidade dos mais poderosos e dos defensores de interesses que as desagradaram, ainda estariam confinadas ao lar, sem direito a voto e ganhar vida por conta própria” (VARELLA, 2017, p.20).

As mulheres mais uma vez precisam lutar contra o Estado. Drauzio Varella aborda um ponto em que a mulher encarcerada, está mostrando que ela não pode ser mais controlada, dominada. Para isso, precisam se rebelar contra os superiores em prol de serem escutadas e não mais caladas. Precisam por meio da luta e da resistência assegurarem o direito de ter direito, o direito de trabalhar, de ser mãe e de viver.

“Ao perderem seus filhos pelas mãos da Polícia Militar sob o respaldo do Estado, as mães passam a se unir em uma luta pela reparação, reconhecimento e responsabilização do Estado pelo assassinato de seus filhos.” (SANTIAGO, 2016, p.93). O Estado brasileiro para “proteger” essas vidas marginalizadas e matáveis, utiliza a sua força para deixar as cidades mais “seguras” para as populações:

“que se pode ver atualmente é uma tentativa do Estado em resgatar esse espaço da desordem e caos através de uma perspectiva militarizada de segurança pública que nos remete a um estado de guerra. Ainda que as políticas sejam de “pacificação” o Estado parece ver a questão como um campo de batalha em que territórios estão em jogo.” (SANTIAGO, 2016, p.86)

O internacionalista brasileiro Vinícius Santigo explicita na sua dissertação de mestrado A luta das mães nas favelas: margens, Estado e resistência, a relação do Estado com a violência. Ao instaurar políticas de pacificação, o Estado insere cada vez mais policiais nas ruas, porém as cidades ficam menos seguras, pois parecem um cenário de guerra e não de paz. Tal cenário de guerra é concretizado nos índices alarmantes de desigualdades e violências do nosso país. O Brasil como já apontado, é um dos países mais desiguais do mundo, com uma superpopulação encarcerada, altas taxas de homicídio e miséria. Esses índices sempre afetam mais a população marginalizada, a que necessita ser “pacificada”, a que é diferente e deve ser corrigida e ensinada na força que eles possuem um lugar na sociedade – o lugar dos esquecidos, o lugar das Mães de Maio.

Os movimentos de mães citados nesse artigo e os milhares pelo o mundo, possuem um ponto central de semelhança, Estados que cometem brutalidades contra o corpo feminino. Estados que “pacificam” suas cidades contra o “outro” e que assassinam pessoas diariamente sem enternecimento. Esses Estados violentam, excluem e matam as mulheres diariamente. Patricia Hill Collins, esclarece quando essas opressões ocorrem:

“A opressão não é simplesmente compreendida no pensamento – ela é sentida no corpo de inúmeras maneiras” (…) “o gênero de uma mulher pode sobressair quando ela se torna mãe; a raça; quando ela procura moradia; a classe social; quando ela tenta obter crédito; a orientação sexual, quando ela anda na rua com a sua companheira; e origem nacional, quando ela se candidata a um emprego. (COLLINS,2009, p.435)

Nesse sentindo, quantas mais Mães de Maio serão necessárias para que a opressão do corpo da mulher se acabe?

Bibliografia

ALEXANDER, Michelle. A nova segregação – Racismo e encarceramento em massa.1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro. São Paulo: Boitempo, 2019.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

FEDERICI, Silvia. Mulheres e às caças bruxas. São Paulo: Boitempo, 2019.

FELTRAN, Gabriel. Irmãos: Uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

FOULCALT, MICHEL. Nascimento da Biopolítica. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008

GONÇALVES, Renata. Do luto à luta: madres e mães de maio contra a violência de Estado. Gepal,2013.

MAPA DE DESIGUALDADES. Rede Nossa São Paulo. Disponível em <https://www.nossasaopaulo.org.br/wpcontent/uploads/2019/11/Mapa_Desigualdade_2019_tabelas.pdf>Acesso em: 05/11/2019.

MOVIMENTO MÃES DE MAIO. Mães de maio, mães do cárcere, a periferia grita. São Paulo: Movimento Mães de Maio, 2012.

RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

SANTIGO, Vinícius Wingler Borba. A luta das mães nas favelas: margens, Estado e resistência. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação de Mestrado – Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

VARELLA. Drauzio. Prisioneiras.1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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