Por Beatriz Eugênio Ferreira
Reunião de Vladimir Putin e Donald Trump em 30 de junho. Anadolu Agency/Getty
Em um ano no qual se comemora o centenário da Revolução Russa, o foco da atenção da mídia mainstream estadunidense voltou-se para a Rússia largamente devido a sua conexão com o governo de Donald Trump. A vitória de Trump em novembro do ano passado colocou em destaque questionamentos acerca de uma possível interferência do governo russo na eleição presidencial estadunidense e na disseminação das chamadas “fake news”, expressão cuja importância cresceu exponencialmente desde 2016 e que se tornou parte do vocabulário político atual. Dentro de uma conjuntura em que a relação entre EUA e Rússia se mostra novamente como protagonista, torna-se relevante explorar o papel representado pela mídia em sua cobertura.
A propagação da ideia de que a campanha de Trump pode ter contado com a colaboração direta do governo russo foi, e é, realizada largamente por meios de comunicação estadunidenses ditos “liberais” ou “centristas”. Um dos primeiros jornais a explorar tal questão abertamente, por exemplo, foi o New York Times, por meio de um op-ed de Louise Mensch na metade de março de 2017. Mensch, após afirmar a necessidade de se investigar conexões entre Trump e o Estado russo, termina seu artigo afirmando que “[n]unca na história americana um presidente foi suspeito de colaborar com uma força estrangeira hostil para ganhar uma eleição”.
Nos meses após a eleição de Trump, ainda, o que o jornalista Keith Gessen chama de Putinology, uma prática para ele já bastante generalizada, ganhou força entre membros da mídia estadunidense. Por meio de artigos de opinião e comentários em grandes publicações, jornalistas se encarregam de dissecar aspectos comportamentais e psicológicos de Vladimir Putin, presidente russo desde 2012. Putin, por exemplo, é muitas vezes identificado como um gênio imperialista com aparente influência sobre o Brexit, a Grécia e, finalmente, os EUA.
É comum também que artigos da mídia mainstream estadunidense façam referência ao fato de Putin ter feito parte da agência de segurança soviética KGB, o que evoca o período da Guerra Fria. Como argumentado pelo jornalista Glenn Greenwald, tal cobertura midiática sobre a relação entre Trump e o governo russo muitas vezes reproduz o macartismo ocorrido na época, apontando a presença de atores russos em diversos espaços da política estadunidense e colocando a Rússia como “por trás de todos os males” dos Estados Unidos.
Ao mesmo tempo, a cobertura de grande meios de comunicação sobre o envolvimento da Rússia na eleição presidencial estadunidense foi marcada às vezes pela divulgação de informações equivocadas, pouco informadas, ou provenientes de fontes questionáveis. Um claro exemplo disso é uma matéria do Washington Post do final de novembro de 2016, com o título de “Russian propaganda effort helped spread ‘fake news’ during election, experts say”. Nela, o autor utiliza de um grupo anônimo chamado PropOrNot e outros ditos especialistas para afirmar que mais de duzentas plataformas online americanas foram exploradas por russos para “atacar a democracia dos EUA em um momento particularmente vulnerável”. Pouco tempo depois de sua publicação, porém, foi adicionada uma nota de edição ao artigo dizendo que o jornal não teve como confirmar a validade das descobertas do PropOrNot, cuja página na internet não explicita o nome de nenhum de seus membros nem suas credenciais para falar sobre o tema.
A percepção de que uma importante causa da vitória de Donald Trump foi o envolvimento russo não se limitou somente ao ciclo de notícias estadunidense. Vários membros do partido democrata começaram também a abraçar a ideia, a utilizando como justificativa para a derrota, vista por muitos como chocante, de Hillary Clinton. Donna Brazile, ex-presidente do Comitê Nacional Democrata (DNC) referiu-se, no final de março de 2016, à interferência russa na eleição presidencial chamando-a de um “ato de guerra”. A própria Clinton, em uma conferência da ONG Women for Women International ocorrida no início de maio deste ano, atribuiu sua perda a forças externas, entre elas a atuação de “hackers russos” no vazamento de emails de sua campanha semanas antes da eleição.
Delineia-se, então, um contexto político e midiático marcado pela difusão de noções de interferência de uma “força estrangeira hostil”, como escrito por Mensch em seu op-ed, no processo democrático dos Estados Unidos. Nesse sentido, questionamentos sobre possíveis consequências de tais noções na visão de estadunidenses sobre a Rússia, assim como na própria relação entre os dois países, em seus aspectos políticos, diplomáticos e econômicos, tornam-se essenciais. Afinal, pode-se argumentar que a Rússia se tornou, para um número significativo de políticos e membros da mídia dos EUA, uma obsessão e também a maneira mais utilizada para se criticar a administração de Trump.
No popular canal de notícias MSNBC, geralmente reconhecido como liberal, o programa da apresentadora Rachel Maddow é marcado pela cobertura do governo de Trump predominantemente a partir de sua ligação com o Estado russo. Como exposto pela publicação digital The Intercept, de 20 de fevereiro a 31 de março, 53% do programa giraram em torno do que Maddow chama de “the russian connection”, no mesmo período em que o presidente estadunidense tomava decisões sobre migrantes não documentados e o chamado “Muslim ban”. Pode-se associar isso com a revista Politico, também vista como liberal, que lançou em abril de 2017 um artigo delineando os ditos “ laços” entre Trump e Putin por meio de gráficos contendo imagens ligadas por setas. Tais gráficos podem levar alguns a pensar em como o comentarista político conservador Glenn Beck explicava em seu programa da Fox News suas alegações infundadas contra o ex-presidente Barack Obama, por exemplo.
Gráfico com o título da matéria da Politico Magazine. Captura de tela.
No que se refere a percepções e reações a esse tipo de tratamento dado por meios de comunicação e políticos estadunidense à Rússia, é interessante explorar os efeitos percebidos por russos, ou descendentes de russos, que vivem nos Estados Unidos. Em um artigo do Washington Post do final de março de 2017, intitulado “For Russians in Washington, the spy jokes are getting old”, membros da comunidade russa nos EUA expressam suas preocupações com sentimentos generalizados de suspeita entre americanos a respeito da Rússia. Um homem de 52 anos que emigrou da Rússia em 1992, por exemplo, argumenta que todos os russos estão sendo tratados de maneira generalizada. Masha Gessen, uma jornalista russa-americana que hoje se posiciona como uma forte crítica ao governo de Putin, escreveu também em março de 2017 um artigo no qual ela adverte para o fato de que a Rússia se tornou uma “arma retórica” da política estadunidense. Para a autora, especulações sobre a relação EUA-Rússia propagadas por meios de comunicação mainstream obscurecem as reais medidas tomadas por Trump.
Não se pode negar que a noção de que a Rússia possa ter tomado ações que influenciaram diretamente o processo eleitoral dos EUA é algo bastante sério, trazendo efeitos a nível internacional. Porém, é necessário também analisar as consequências trazidas pela cobertura realizada pela mídia estadunidense em relação à Rússia e o governo de Trump, a qual envolveu em grande parte especulações e referências ao período da Guerra Fria. Nessa corrida midiática para se dar novamente à Rússia o papel de maior ameaça aos Estados Unidos, resta saber o poder e a influência que o governo russo realmente tem para desempenhá-lo.
Comentários